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Crônicas e Artigos
Ano 3 - N° 111 - 14 de Junho de 2009

MARCELO HENRIQUE PEREIRA
cellosc@floripa.com.br
Florianópolis, Santa Catarina (Brasil)

 

A religião e o direito
de decidir


Certa feita, o programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, exibiu matéria baseada em uma pesquisa do Ibope, demonstrando que a maioria dos jovens católicos do Brasil não seguia à risca as regras impostas pela Igreja. Por exemplo, 79% dos dois mil entrevistados diziam aprovar o sexo antes do casamento, prática condenada pela Igreja.  

Uma das razões para a recente visita do papa Bento XVI ao Brasil foi a constante perda de fiéis católicos para outras Igrejas (as chamadas neo-pentecostais, principalmente e, até mesmo, para a filosofia espírita) e a insistência da condenação pela religião romana de certas práticas consideradas “pecado”, mas que são adotadas pela Sociedade.  

Vale lembrar que a Igreja segue, claramente, sua ideologia ou filosofia teológica. Construiu, historicamente, a partir dos Concílios, regras e orientações, muitas das quais verdadeiros dogmas e, de modo muito inteligente, tem disseminado sua “forma de entender” o mundo aos chamados fiéis – e não somente a eles, já que, pelos meios de comunicação, é disseminada a crença católica, que, de certo modo, influencia mesmo quem não esteja albergado sob a religião, como adepto. 

A Igreja, também, historicamente, esteve durante muito tempo ligada ao poder temporal (político-social), influenciando não só a “formação” das leis, quanto o próprio modelo de gestão (administração) de inúmeros Estados. Em outros países, mesmo não atrelada aos poderes políticos, manifesta sua influência (vide a respeito a audiência do Presidente da República com o sumo pontífice, durante a visita, em que o Papa “cobrou” do Brasil o empenho em algumas matérias relevantes, considerada a visão católica dos mesmos), e ocupa espaços (inúmeros sacerdotes exercem ou já exerceram cargos políticos – no executivo e no legislativo – e há, ainda, adeptos do catolicismo formando “bancadas” no Congresso Nacional). Este não é um fenômeno exclusivo da religião romana, pois os evangélicos agem de igual maneira. Com isso, tentam influenciar a tomada de decisão (principalmente no campo da aprovação de leis e regulamentos) que sejam conformes à sua ideologia. 

Visivelmente, Bento XVI veio ao nosso país para fortalecer a “fé brasileira” (católica, evidentemente), já que o Brasil – considerado, em número de adeptos, o maior país católico do mundo – nunca havia tido um filho seu como “santo”. Seu discurso e suas encíclicas (já pronunciadas ou que estão por vir) tentam, também, aproximar a Igreja da Sociedade, tratando de temas que tenham visibilidade e apelo social. 

Neste aspecto, forma-se um “hiato” entre a filosofia católica e a práxis, já que o discurso religioso nem sempre é aceito pela maioria da população (veja-se, neste sentido, a recente Lei do Aborto portuguesa, em que a grande quantidade de profitentes da religião romana não conseguiu demover a população de responder favoravelmente ao plebiscito convocado para tal fim). No Brasil, igualmente, apesar dos protestos dos mais “fanáticos” religiosos de diversos matizes (católico, evangélico e espírita, principalmente), a tendência é pelo “afrouxamento” das vedações penais ao aborto, mesmo considerando que a reforma legal inclua a revisão das balizas contidas na Constituição Federal, que, a meu ver, impedem a “liberação” ou a previsão de novas hipóteses descriminalizadoras do aborto. 

Por fim, quanto à “perda” de fiéis, encaro a questão com muita naturalidade, de vez que as individualidades humanas são livres para professarem sua fé e, neste sentido, é comum encontrarmos pessoas que, mesmo tendo nascido sob determinado berço religioso e terem sido educadas segundo dados princípios religiosos, na idade jovem ou adulta optam conscientemente por outras filosofias, o que pode significar “maturidade” ou “despertamento” para determinadas questões. Se há, com certeza, um componente “econômico” na diminuição de fiéis, este acaba sendo o motivo de maior preocupação dos líderes religiosos, que terão que “adequar-se aos novos tempos”. Menos adeptos significam, amiúde, menos contribuições, menos vendagem de “produtos” religiosos, menos dinheiro para “obras sociais ou litúrgicas” etc. 

Em tudo e por tudo, devemos valorizar a busca do ser pelas explicações que mais lhe satisfaçam em todos os campos do conhecimento humano e, inclusive, no mais destacado deles, o espiritual. 

Estudiosos elencam fatores que mais influenciam as pessoas e a própria Sociedade nas escolhas de quais regras seguir. Muitos deles falam na questão da dicotomia entre Ética e Moral. A Ética de conviviabilidade é, muitas vezes, distinta da Moral Religiosa (individual ou coletiva – esta última em termos de liturgia). No que tange à conduta (quais regras seguir, quais não, como você pergunta), devemos sempre apelar para o uso da consciência humana (espiritual). A consciência é aquele freio que, dependendo da individualidade, nos impede de cometermos certas ações que sejam “erradas”. Evidentemente, a consciência (do bem e do mal, do certo e do errado, do que fazer e do que não fazer) é pessoal e intransferível. Criaturas mais despertas conseguem perceber a influência do meio em si e, em termos pessoais, adequam seu comportamento (e sua consciência íntima) aos padrões sociais. Outras, não; vivem em eterno conflito. Não queremos dizer que “todas” as convenções exteriores sejam verdadeiras, benéficas e úteis. Longe disso! Daí a diversidade de regimes, sistemas, ideologias, políticas... Em todo caso, a regra áurea da convivência social é a do respeito ao semelhante, o tratar os outros com os mesmos parâmetros que desejaria ser tratado. Parece que um certo personagem “religioso” já prelecionou, há muito tempo, tal comportamento, não? Se verificarmos bem, a grande maioria das crenças e filosofias religiosas de nosso tempo endereçam o ser para esta prática: respeito ao semelhante, para ser respeitado. Queremos Ética melhor do que esta?  

Há quem diga que as Igrejas também “dançam conforme a música” e, para granjear ou manter adeptos, de tempos em tempos, pode se observar certas “mudanças” nas orientações que emanam de seus líderes e representantes. Fala-se muito, hoje, em termos de sociologia, que a abertura e a liberdade sexual dos tempos presentes podem levar a uma revisão dos posicionamentos (principalmente da Igreja romana) sobre a prática de atividades sexuais, o divórcio e o aborto, porque pressionada por seus fiéis seguidores. De modo geral, entendo que isto não vem ocorrendo nos ministérios religiosos. A Igreja tem posições claras, construídas ao longo dos séculos, baseadas em seus dogmas, mandamentos e sacramentos, e dificilmente se vê coagida por qualquer pressão do público. O que ocorre, muitas vezes, é um certo “relaxamento” das próprias pessoas, em relação às prescrições da fé, esperando que, algum dia, recebam o “perdão Divino”, por meio dos próprios ministrantes religiosos. Os temas de hoje podem não ser os de amanhã, porque as preferências e as prioridades se alteram conforme o curso da evolução social. Paralelamente, muitos fiéis podem não “conhecer” a visão religiosa – mesmo frequentando (com mais ou menos assiduidade) os templos e as reuniões religiosas. Assim, a “lembrança” do Papa, ao tocar nestes assuntos em seus discursos, é uma estratégia necessária da instituição para reforçar sua posição (ortodoxa) em relação a tais assuntos. 

De outra sorte, em muitos setores da vida humana, quando a Igreja “interpreta” ou se propõe a analisar as contingências da vida, em razão de seus dogmas e seu conservadorismo, impede debates, “fechando questão” e apondo “ponto final”. Assim, mesmo escorada em sua proposta ideológica e tratando tudo como “questão de fé”, impede que se discutam racionalmente as questões que influenciam o nosso viver, distanciando-se das próprias pessoas. A conclusão é óbvia: fala para si mesma, ou para seus adeptos, não conseguindo “atravessar” os muros e as paredes das Igrejas. O discurso, quando não permite o contraponto, ressoa no vazio e só faz proselitismo, nada mais! 

Também é notória a diferença entre os “estilos” da Igreja Católica e das Neo-pentecostais. As primeiras passam uma imagem sisuda e censurativa, enquanto as últimas, generalizadamente, adotam um padrão mais despojado e alegre. Estes dias, andando pelo centro da cidade, passei em frente a uma “livraria evangélica” e, curioso, entrei. Lá dentro, fiquei surpreso com um livro na estante, bem em destaque, uma espécie de “guia” para encarar o sexo, como fonte de prazer para o crente. É um avanço, levando em consideração que, há alguns anos, o assunto poderia ser considerado tabu em muitas igrejas. O “boom” das igrejas evangélicas – que se multiplicam aos montes, a cada dia, com novas vertentes ou dissidências – deve-se ao fato de que elas – as Igrejas – também têm se “moldado” ao público que pretendem “cativar”. Não sei, ao certo e com franqueza, qual a posição de todas as igrejas quanto ao uso do preservativo sexual, a posição em relação ao aborto e a prática sexual (antes ou fora do casamento). No entanto, não é só isso que conta. O que vale, no meu entender, é a forma de se relacionar com o fiel. Há, mesmo dentro da filosofia católica, o movimento carismático, considerado mais ruidoso e alegre que os demais (dentro do próprio catolicismo), o que mostra a “adaptação” para atender aos anseios dos profitentes daquela filosofia religiosa. Neste âmbito, as evangélicas “dão de dez a zero” no movimento tradicional católico, desde a recepção – os “obreiros” ficam na porta convidando a entrar, recepcionando, convidando a conhecer a “casa”, a participar de tudo etc. E usam, neste expediente, os próprios jovens que atraem outros jovens. Também saem às ruas, batem de porta em porta, entregam folhetinhos, fazem abordagem (“marcação cerrada”) para convencer os “indecisos” ou os “insatisfeitos” a participar das reuniões evangélicas. Outra diferença capital: todo dia há uma reunião diferente: para empresários, para donas-de-casa, para a família, para os jovens, e assim por diante. Não sou deste meio, mas entendo que em termos de Marketing, os evangélicos são muito mais eficientes... Por fim, os jovens se sentem muito mais à vontade na Igreja evangélica porque tem banda, baile, comida, bebida (não-alcóolica), shows etc. Alguns católicos, ultimamente, têm seguido o mesmo “trajeto”, promovendo eventos similares. Tudo isto em nome da “concorrência” da fé! 

De outra sorte, há diferentes formas de atrair adeptos e simpatizantes – ou de preservá-los diante das opções disponíveis. Uma delas é o chamado engajamento social, a participação em movimentos do povo, dos trabalhadores, dos sem-terra, dos excluídos etc. A participação social (da igreja) é, assim, um importante elemento para esse Marketing. No caso do catolicismo, as últimas temáticas da Campanha da Fraternidade têm sido direcionadas às necessidades sociais e os problemas vividos pela nação brasileira, até com relativa agressividade na abordagem. Mas, em contrapartida, há padres e religiosos que abominam a idéia da participação direta na política (ou em políticas sociais). Tudo depende, então, da liderança religiosa local e do “rebanho”. Há os que são mais sensíveis a tais apelos e há os que prefiram (apenas) a homilia tradicional. 

O fiel (ou o adepto de dada religião) é aquele indivíduo que está em constante busca (das respostas para suas indagações mais íntimas). Fui católico até os 11 anos de idade, apesar de ter um avô espírita na família. Comecei a fazer algumas perguntas ao pároco da igreja que frequentava, e ele, sob o “bombardeio” de uma criança irrequieta, certa feita me respondeu: “– Meu filho, há mistérios que o homem não pode penetrar. Há coisas que não podemos explicar. São obras da fé!”. Agradeço a este padre até hoje. Ele me motivou a procurar, a tentar encontrar respostas “noutro lugar”. E o fiz, conhecendo a filosofia espírita que, para mim, tem sido satisfatória e suficiente. Não digo que ela seja melhor do que qualquer outra, nem que seja destinada a todos. Penso muito mais que cada um tem o seu “timing”, isto é, cada um de nós se encontra num patamar e num momento muito próprio de despertamento. Para uns, a filosofia católica basta. Para outros, a evangélica ou a budista são melhores. Para terceiros, o Espiritismo (mesmo que nem todos o considerem como religião, nos moldes que esta se estrutura em nosso mundo) sacia sua fome e sede de conhecimento acerca do “sobrenatural”. Todos estão certos, pois o que diferencia a compreensão “religiosa” é a condição individual de cada um de nós, que nos sentimos satisfeitos (ou insatisfeitos) conforme aquilo que nos é apresentado. Conheço pessoas que já se consideraram adeptos de “n” religiões. Cada vez que as encontro, elas estão em um “templo” diferente. Continuam “buscando” e, talvez, o façam até o fim desta vida. O importante é estar bem consigo mesmo, com sua consciência, ou seja, que a filosofia, a homilia, a teoria não “agridam” seus sentidos, sua consciência, sua Ética pessoal. 

Hoje e sempre penso que o perfil do fiel (religião ou seita) ou adepto (filosofia) seja personalíssimo. Evidentemente que num mundo mais “liberal” como o nosso, isto é, sem a influência de regimes ou sistemas despóticos, anuladores das liberdades (individuais e coletivas) e com a possibilidade do pluralismo (convivência pacífica de tantas filosofias e crenças), fica “muito mais fácil” escolher e “experimentar”, até se contentar com uma delas. Todas as religiões, assim, no meu entender, são válidas e oportunas (exceto, é claro, aquelas “seitas” que visam prejudicar uns ou outros e que conduzam, por exemplo, a suicídios coletivos, como a história registra) e, neste sentido, é preferível “estar no caminho” a “sentar à beira do caminho”... Em que situação você está?


 


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