ALMIR DEL PRETTE
adprette@ufscar.br
São Carlos, SP (Brasil)
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A conversão interrompida
A mudança de religião,
quando ocorre em um
mesmo paradigma
ideológico e com
práticas semelhantes,
como, por exemplo, a que
se verifica no amplo
espectro de
religiosidade do
protestantismo popular,
é bastante comum e não
gera grande impacto nos
envolvidos. Já as
mudanças que implicam no
confronto entre
conceitos e
consequentemente na
visão do mundo são mais
impactantes para a
pessoa e, não raro, para
seu ambiente. A este
segundo caso é que se
pode denominar de
conversão.
A conversão é um
fenômeno psicológico e
social e seu estudo deve
levar em conta fatores
da comunicação, tais
como a fonte, a mensagem
e o receptor. A fonte,
na teoria das minorias
ativas, de Serge
Moscovici[1],
pode ser considerada por
majoritária quando a
elaboração do conteúdo e
a forma de transmissão
da mensagem traduzem a
ideologia da maioria.
Ela é minoritária, ainda
na visão desse pensador,
quando o conteúdo e a
forma da mensagem
refletem o modo de
pensar de um grupo com
pouco poder. Uma fonte
minoritária obtém maior
aceitação, quando sua
mensagem é percebida
como inovadora, opõe-se
a ideias em processo de
esgotamento e atende as
expectativas de
receptores idealistas.
Contudo, ao ganhar
adesões rápidas, o
conteúdo dessa mensagem
pode também se
deteriorar. Esse foi o
caso da mensagem de
Jesus, sendo deturpada
na medida em que o
número de adeptos
crescia quase de maneira
exponencial. O processo
dialético
(tese-antítese) mostra
que uma minoria, em um
período histórico, pode
tornar-se maioria em
outro, adotando posição
conformista.
A conversão é um
processo lento, que se
consolida aos poucos. Um
dos mais famosos casos
de conversão que se
conhece, sem dúvida, foi
a de Saulo. Ela se
iniciou quando o fiel
seguidor de Moisés, à
entrada da cidade de
Damasco, no memorável
encontro com Jesus,
perguntou: “Quem és,
Senhor?” (Atos 9:3-9).
Esse foi o primeiro
passo de sua conversão,
a identificação da
fonte, nesse caso,
Jesus. Emmanuel, em seu
livro sobre o apóstolo
dos gentios, traz
detalhes importantes
para o estudo da
conversão em Paulo.
Chama à atenção, na
experiência de Paulo,
sua necessidade de
estudar o manuscrito de
Matheus e discutir com
outros a nova doutrina.
Isso denota sua
responsabilidade e
esforço para compreender
o conteúdo da nova
mensagem. O converso na
maioria das vezes leva,
para a nova doutrina,
conceitos e práticas com
as quais se acostumara
e, nem mesmo Saulo, não
obstante todo seu
esforço de renovação,
livrou-se dessa
injunção. Todos nós
reconhecemos que sua
posição diante da mulher
não era a mesma de
Jesus.
Em geral, o processo de
conversão faz emergir um
forte conflito, não
apenas no campo das
ideias, onde se verifica
maior resistência e
pressão de familiares e
amigos zelosos, mas,
também e principalmente,
de caráter psicológico.
O chamado conflito
psicológico envolve
aproximação e fuga da
nova mensagem o que
resulta em muito
sofrimento
afetivo-cognitivo.
Como se trata de
processo que produz
sofrimento, muitas
pessoas, diferentemente
de Saulo, ficam no meio
do caminho, ou seja,
evitam e adiam a tomada
de decisão, resumida na
expressão “Eu sou...”.
São várias as
estratégias de evitação
ou fuga à conversão. Na
atualidade, no caso do
Espiritismo, as pessoas
utilizam alguns
eufemismos como recurso
tangencial a se dizer
espíritas. Com base no
que temos observado,
fizemos uma
categorização, que pode
ser aperfeiçoada, sobre
o que chamaríamos de
“conversão
interrompida”.
O que segue representa,
portanto, uma tentativa
preliminar que inclui as
denominações das cinco
categorias propostas,
seguida de exemplos.
ü
Rotina fenomenológica.
Os incluídos nessa
categoria fazem parte de
um estrato razoavelmente
grande e quase sempre
silencioso. São
frequentadores habituais
de sessões de curas e
passes, onde
eventualmente trazem
parentes ou amigos em
busca de algum benefício
material ou espiritual.
Raramente comparecem a
palestras não
complementadas por
passes. Uma grande
percentagem desse
contingente revela
gostar de frequentar a
Casa Espírita e tende a
se designar por
católico-espírita ou a
alguma religião
tradicional.
ü
Simpatizantes confessos.
São pessoas que se dizem
apenas simpatizantes
(usam esse termo) e até
explicitam concordância
com princípios
doutrinários, como o
intercâmbio entre mundo
corpóreo e espiritual,
reencarnação etc. Podem
colaborar com
iniciativas de algum
Centro, mas preferem
absterem-se de uma
adesão mais completa.
ü
Aceitação particular.
Trata-se de pessoas que
aceitam a doutrina
privadamente, mas não em
público “devido a
dificuldades de lidar
com reações de
conhecidos e
familiares”. Justificam
essa conduta como forma
de evitar sofrimento e
mágoa aos familiares,
principalmente aos pais.
ü
Estágio evolutivo.
Estes se dizem
despreparados, se
autorreferem como
“pecadores” e não
querem, “como fazem
alguns”, fingir o que
não são. Na maioria das
vezes usam essa
justificativa para não
assumirem tarefas no
Centro Espírita.
ü
Espíritas não
praticantes.
São sim espíritas, leem
livros espíritas, têm
conhecimento doutrinário
e se dizem não
praticantes, ou seja,
não frequentam nenhuma
instituição, não
participam de nenhum
grupo e não aceitam
qualquer atribuição no
movimento espírita que
possa envolvê-los em
atividades mais ou menos
contínuas.
Não se pretende que
essas categorias
abranjam todas as
possibilidades para a
“conversão
interrompida”. Contudo,
elas explicitam um
conjunto de
justificativas que
procura dar conta de
questões inerentes a
esse processo. O
processo de conversão é
um fenômeno complexo,
que envolve assimilação
de conceitos e teorias,
uma intensa confabulação
interna, mudanças
comportamentais e uma
nova visão da vida e do
mundo. É certo que
existem aqueles que
resumem sua experiência
dizendo: “é como
estivesse recordando de
assuntos que já
conhecia”. Parece-nos
oportuno considerar,
porém, que essa
facilidade de
assimilação da doutrina
espírita não significa,
necessariamente, uma
maior evolução
espiritual. Muitos de
nós, após repetidos
fracassos espirituais
sob antigas fórmulas
religiosas, estávamos
“prontos”, pelo menos na
perspectiva intelectual,
para compreender novas
ideias sobre o ser, o
destino e a dor e é essa
a base de nossa adesão
ao Espiritismo.
Agora, imagine leitor,
quando o processo de
conversão é
interrompido. A antiga
autodefinição já não
satisfaz e, por outro
lado, uma nova é temida,
escondida, evitada. Foi
Lucas, o evangelista,
quem propôs aos
seguidores de Jesus se
autodefinirem como
cristãos. Nesse sentido
a autodefinição não é
privada, mas sim
pública. Na época, além
da designação de Judeu,
várias outras
denominações, como
Samaritano, Nazareno,
Galileu e Fariseu,
compunham as diferentes
representações de grupo.
Isso se dava pelo local
de nascimento ou por
adesão a alguma crença
ou por ambas. Os
seguidores de Jesus eram
conhecidos por
pertencimento à Casa do
Caminho, local onde
prestavam assistência e
se reuniam para estudo e
oração.
A autodefinição de
alguém como “espírita”
implica em algum tipo de
adesão e
comprometimento. Em
certo sentido, ela deve
se ajustar à definição
operacional de Alan
Kardec em termos de
“reconhecimento da
transformação moral”. (O
Evangelho segundo o
Espiritismo, cap. XVII,
4.) De qualquer maneira
a conversão pode ser
desejada e/ou temida e,
em geral, o medo está na
base da interrupção da
conversão. Medo da perda
da estima de familiares,
de isolamento social, de
se equivocar, de estar
sob encantamento ou
influência maléfica, de
responsabilidades novas
etc. Isso sugere aos
dirigentes espíritas um
maior cuidado e apoio
aos novos frequentadores
das Casas Espíritas. A
pergunta que deveria
finalizar nossa reflexão
é: como ajudar tais
pessoas a superarem suas
dificuldades? Não se
trata de optar pela
estratégia proselitista,
mas, ao contrário, de
profundo respeito às
condições e opções de
cada um, lembrando que
Kardec enfatizava que as
ideias espíritas irão
influenciar outros
sistemas de pensamento.
Esperamos que este
assunto mereça um exame
mais detalhado e que os
trabalhadores espíritas,
em especial os
dirigentes dos Centros,
possam auxiliar tais
pessoas, evidentemente
sem forçá-las na
autodefinição.