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Crônicas e Artigos

Ano 8 - N° 367 - 15 de Junho de 2014

ALMIR DEL PRETTE
adprette@ufscar.br

São Carlos, SP (Brasil)

 
 
 

A conversão interrompida


A mudança de religião, quando ocorre em um mesmo paradigma ideológico e com práticas semelhantes, como, por exemplo, a que se verifica no amplo espectro de religiosidade do protestantismo popular, é bastante comum e não gera grande impacto nos envolvidos. Já as mudanças que implicam no confronto entre conceitos e consequentemente na visão do mundo são mais impactantes para a pessoa e, não raro, para seu ambiente. A este segundo caso é que se pode denominar de conversão.

A conversão é um fenômeno psicológico e social e seu estudo deve levar em conta fatores da comunicação, tais como a fonte, a mensagem e o receptor. A fonte, na teoria das minorias ativas, de Serge Moscovici[1], pode ser considerada por majoritária quando a elaboração do conteúdo e a forma de transmissão da mensagem traduzem a ideologia da maioria. Ela é minoritária, ainda na visão desse pensador, quando o conteúdo e a forma da mensagem refletem o modo de pensar de um grupo com pouco poder. Uma fonte minoritária obtém maior aceitação, quando sua mensagem é percebida como inovadora, opõe-se a ideias em processo de esgotamento e atende as expectativas de receptores idealistas. Contudo, ao ganhar adesões rápidas, o conteúdo dessa mensagem pode também se deteriorar. Esse foi o caso da mensagem de Jesus, sendo deturpada na medida em que o número de adeptos crescia quase de maneira exponencial. O processo dialético (tese-antítese) mostra que uma minoria, em um período histórico, pode tornar-se maioria em outro, adotando posição conformista.

A conversão é um processo lento, que se consolida aos poucos. Um dos mais famosos casos de conversão que se conhece, sem dúvida, foi a de Saulo. Ela se iniciou quando o fiel seguidor de Moisés, à entrada da cidade de Damasco, no memorável encontro com Jesus, perguntou: “Quem és, Senhor?” (Atos 9:3-9). Esse foi o primeiro passo de sua conversão, a identificação da fonte, nesse caso, Jesus. Emmanuel, em seu livro sobre o apóstolo dos gentios, traz detalhes importantes para o estudo da conversão em Paulo. Chama à atenção, na experiência de Paulo, sua necessidade de estudar o manuscrito de Matheus e discutir com outros a nova doutrina. Isso denota sua responsabilidade e esforço para compreender o conteúdo da nova mensagem. O converso na maioria das vezes leva, para a nova doutrina, conceitos e práticas com as quais se acostumara e, nem mesmo Saulo, não obstante todo seu esforço de renovação, livrou-se dessa injunção. Todos nós reconhecemos que sua posição diante da mulher não era a mesma de Jesus.

Em geral, o processo de conversão faz emergir um forte conflito, não apenas no campo das ideias, onde se verifica maior resistência e pressão de familiares e amigos zelosos, mas, também e principalmente, de caráter psicológico. O chamado conflito psicológico envolve aproximação e fuga da nova mensagem o que resulta em muito sofrimento afetivo-cognitivo.

Como se trata de processo que produz sofrimento, muitas pessoas, diferentemente de Saulo, ficam no meio do caminho, ou seja, evitam e adiam a tomada de decisão, resumida na expressão “Eu sou...”. São várias as estratégias de evitação ou fuga à conversão. Na atualidade, no caso do Espiritismo, as pessoas utilizam alguns eufemismos como recurso tangencial a se dizer espíritas. Com base no que temos observado, fizemos uma categorização, que pode ser aperfeiçoada, sobre o que chamaríamos de “conversão interrompida”.

O que segue representa, portanto, uma tentativa preliminar que inclui as denominações das cinco categorias propostas, seguida de exemplos.


ü                
Rotina fenomenológica. Os incluídos nessa categoria fazem parte de um estrato razoavelmente grande e quase sempre silencioso. São frequentadores habituais de sessões de curas e passes, onde eventualmente trazem parentes ou amigos em busca de algum benefício material ou espiritual. Raramente comparecem a palestras não complementadas por passes. Uma grande percentagem desse contingente revela gostar de frequentar a Casa Espírita e tende a se designar por católico-espírita ou a alguma religião tradicional.  


ü                
Simpatizantes confessos. São pessoas que se dizem apenas simpatizantes (usam esse termo) e até explicitam concordância com princípios doutrinários, como o intercâmbio entre mundo corpóreo e espiritual, reencarnação etc. Podem colaborar com iniciativas de algum Centro, mas preferem absterem-se de uma adesão mais completa.


ü                
Aceitação particular. Trata-se de pessoas que aceitam a doutrina privadamente, mas não em público “devido a dificuldades de lidar com reações de conhecidos e familiares”. Justificam essa conduta como forma de evitar sofrimento e mágoa aos familiares, principalmente aos pais.


ü                
Estágio evolutivo. Estes se dizem despreparados, se autorreferem como “pecadores” e não querem, “como fazem alguns”, fingir o que não são. Na maioria das vezes usam essa justificativa para não assumirem tarefas no Centro Espírita.


ü                
Espíritas não praticantes. São sim espíritas, leem livros espíritas, têm conhecimento doutrinário e se dizem não praticantes, ou seja, não frequentam nenhuma instituição, não participam de nenhum grupo e não aceitam qualquer atribuição no movimento espírita que possa envolvê-los em atividades mais ou menos contínuas.   

Não se pretende que essas categorias abranjam todas as possibilidades para a “conversão interrompida”. Contudo, elas explicitam um conjunto de justificativas que procura dar conta de questões inerentes a esse processo.  O processo de conversão é um fenômeno complexo, que envolve assimilação de conceitos e teorias, uma intensa confabulação interna, mudanças comportamentais e uma nova visão da vida e do mundo. É certo que existem aqueles que resumem sua experiência dizendo: “é como estivesse recordando de assuntos que já conhecia”. Parece-nos oportuno considerar, porém, que essa facilidade de assimilação da doutrina espírita não significa, necessariamente, uma maior evolução espiritual. Muitos de nós, após repetidos fracassos espirituais sob antigas fórmulas religiosas, estávamos “prontos”, pelo menos na perspectiva intelectual, para compreender novas ideias sobre o ser, o destino e a dor e é essa a base de nossa adesão ao Espiritismo.

Agora, imagine leitor, quando o processo de conversão é interrompido. A antiga autodefinição já não satisfaz e, por outro lado, uma nova é temida, escondida, evitada. Foi Lucas, o evangelista, quem propôs aos seguidores de Jesus se autodefinirem como cristãos. Nesse sentido a autodefinição não é privada, mas sim pública. Na época, além da designação de Judeu, várias outras denominações, como Samaritano, Nazareno, Galileu e Fariseu, compunham as diferentes representações de grupo. Isso se dava pelo local de nascimento ou por adesão a alguma crença ou por ambas. Os seguidores de Jesus eram conhecidos por pertencimento à Casa do Caminho, local onde prestavam assistência e se reuniam para estudo e oração.

A autodefinição de alguém como “espírita” implica em algum tipo de adesão e comprometimento. Em certo sentido, ela deve se ajustar à definição operacional de Alan Kardec em termos de “reconhecimento da transformação moral”. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVII, 4.) De qualquer maneira a conversão pode ser desejada e/ou temida e, em geral, o medo está na base da interrupção da conversão. Medo da perda da estima de familiares, de isolamento social, de se equivocar, de estar sob encantamento ou influência maléfica, de responsabilidades novas etc. Isso sugere aos dirigentes espíritas um maior cuidado e apoio aos novos frequentadores das Casas Espíritas. A pergunta que deveria finalizar nossa reflexão é: como ajudar tais pessoas a superarem suas dificuldades? Não se trata de optar pela estratégia proselitista, mas, ao contrário, de profundo respeito às condições e opções de cada um, lembrando que Kardec enfatizava que as ideias espíritas irão influenciar outros sistemas de pensamento.  Esperamos que este assunto mereça um exame mais detalhado e que os trabalhadores espíritas, em especial os dirigentes dos Centros, possam auxiliar tais pessoas, evidentemente sem forçá-las na autodefinição.


 

[1]  Psicólogo Social, conhecido pela posição humanista. É autor de teorias instigantes, como das
representações sociais e minorias ativas. Ver, por exemplo, Psychologie des minorités actives. University Press of France, 1979.


 

 


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