Telhado de vidro
Faz alguns dias, tornei a assistir ao filme “A Menina
que Roubava Livros” - obra baseada no livro de mesmo
nome, do escritor australiano, Markus Zusak. De profunda
beleza, a história conta sobre a vida de Liesel - uma
menina corajosa, órfã e destemida, que é adotada por uma
família alemã, um ano antes da segunda grande guerra.
Liesel não sabia ler, porém sentia enorme atração por
livros e letras, vindo a se tornar uma escritora famosa,
na fase adulta. Sua mãe biológica, por ser comunista,
foi perseguida pelos nazistas e jamais voltou para
buscá-la. Porém, a garota seguiu sua jornada,
tornando-se cada vez mais forte, apesar dos grandes
impactos de uma dura realidade.
Entretanto, a história nos remete a algo ainda mais
profundo, para além da pequena menina de cabelos loiros
e pele de algodão: no pano de fundo reconhecemos uma
Alemanha nazista, endurecida, cheia de aspirações, mas
com inúmeras famílias sofredoras, nem sempre adeptas do
regime imposto, sofrendo as agruras de um país repleto
de dificuldades.
E é neste cenário que percebemos o famoso “outro lado da
moeda”.
Convencionou-se julgar todos os alemães como assassinos
sanguinários de judeus, mas não foi bem assim. Muitos
deles arriscaram suas vidas, tentando ajudar, não apenas
judeus, mas todos os que foram perseguidos pelos membros
da SS.
E, assim como neste filme, outras histórias trazem esta
reflexão. O Caçador de Pipas é um exemplo. Conta-nos
sobre os afegãos com muita delicadeza, fazendo com que
nos identifiquemos com as famílias daquele país. Obras
que nos fazem pensar para além do que é vendido nos
jornais e revistas…
A questão aqui exposta trata de um ponto capital,
problema milenar do ego humano, que tende a analisar
fatos e pessoas de forma rasa, maniqueísta e
tendenciosa. Se é de esquerda, é ingênuo; se é de
direita, é alienado; se é da favela, é bandido; se é
rico, é esnobe. Se matou alguém, é do mal, se ajudou os
pobres, é do bem. Entretanto, todos os humanos possuem,
ainda, mais lados a serem observados, mais fragilidades
que bênçãos, porque ainda desconhecem a verdadeira
essência sagrada e se identificam demais com a
materialidade da existência. Ademais, as causas de
muitas ações podem estar em percepções antigas,
aprendizagens de infância ou mesmo de outras vidas, que
acontecem através de outras pessoas e lugares.
Faz muito tempo que estudiosos da psiquê afirmam que
somos o produto de vivências sociais, amplas, sendo
profundamente influenciados pelos paradigmas impostos.
Embora o livre-arbítrio seja uma premissa básica para o
Espiritismo, não é menos real que as relações nos
afetam, sobremaneira, fazendo-nos tender para esta ou
aquela direção, de acordo com o percebido/aprendido no
meio. Todos estamos ainda em processo de evolução,
portanto somos influenciados, quando as virtudes não
foram devidamente aprendidas.
Além disso, cabe-nos observar que aquilo que parece
absurdo para uns, passa por normal para outros, de outra
cultura. Aliás, mesmo na mesma cultura pode-se entender
algo como sendo bom, normal, quando em verdade trata-se
de normose (uma patologia da normalidade). Um exemplo
simples é o consumismo como meta de vida, ou mesmo o
Darwinismo social, com competições acirradas nas
empresas, ou ainda os padrões de estética da
atualidade, com seus apelos que passam longe de uma vida
mais saudável, porque cheia de dietas rígidas e
cirurgias reparadoras em corpos absolutamente saudáveis.
O que se mostra nestes casos é que nenhum julgamento
costuma ser fruto de uma percepção 100% acertada, com
todas as múltiplas variáveis (causas) sendo
consi-deradas.
Já se sabe que questões transgeracionais fazem com que
julguemos as coisas a partir de determinadas lentes,
quase sempre embaçadas, tendenciosas.
Mas não é apenas isto. Existem motivações inconscientes
para as pedras que atiramos contra outras pessoas. Freud
comentou sobre a projeção - um mecanismo de defesa do
ego, que faz com que materiais que estão na
personalidade da pessoa e que são aversivos, sejam
lançados para fora, contra outros. É assim que pessoas
que sentem vontade de trair tornam-se ciumentas,
capazes de perseguir o (a) parceiro(a) diuturnamente,
por acreditarem-se sendo enganadas. Ou mesmo aqueles
que não conseguem mudar o modo de vida, embora desejem
isto, então atacam aqueles que têm a coragem de romper
com padrões ultrapassados.
Sob este aspecto, percebemos que a fofoca traz muito do
fofoqueiro. Não foi por outro motivo que Freud disse que
quando o Pedro fala sobre Paulo, aprendemos muito mais
de Pedro que de Paulo…
Desta maneira, podemos perceber que quando Jesus foi
interpelado pelos Fariseus enfurecidos, que traziam
pelo braço aquela que foi julgada como adúltera, sua
abordagem foi na mosca: "Que atire a primeira pedra
aquele que estiver sem pecados”, disse ele.
Nesta frase o Mestre não apenas inclui os pecados
realizados, os fatos consumados, mas também os desejos
obscuros, uma vez que também destacou, em outra
oportunidade, a questão do adultério por pensamento. E
sob esta ótica, qual pessoa poderia estar isenta de
problemas? Quem poderia julgar com a autoridade do anjo
perfeito?
No antigo testamento (também conhecido como Bíblia ou
Torá, para os judeus), listamos 18 casos em que se deve
apedrejar pessoas até a morte. Casos simples, como os
filhos malcriados, já seriam caso para apedrejamento.
Aliás, para nós Espíritas ligados ao trabalho mediúnico,
dá-se o mesmo. Em Levítico, (Lv 20:27) está escrito que
“qualquer homem ou mulher que evocar os Espíritos ou
fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados, e levarão sua culpa”.
Está claro que os julgamentos mudam conforme as épocas e
o entendimento de um povo, em determinada cultura.
Aquilo que antes era tomado por bom, hoje pode ser
considerado uma aberração. A escravidão dos negros, o
holocausto dos judeus, a violência contra as mulheres
engrossam o caldo dos absurdos humanos, que antes eram
tidos como atos normais. Oxalá chegue logo o dia em que
escravizar e matar animais também seja considerado um
erro grave!
Quanto mais maduros, mais prontos para determinadas
mudanças. Porém, mesmo quando passamos a trilhar
caminhos mais virtuosos, as armadilhas do ego podem nos
fazer apontar o dedo para as pessoas que ainda não
pensam como nós. Muitas vezes queremos nos destacar do
próprio grupo humano, considerando-nos melhores que
outros, mas desconsiderando as próprias sombras que
carregamos em nosso psiquismo infantil.
Atirar pedras verbais ou por pensamentos só denota nossa
pequenez emocional.
Pois, quando desejamos ardentemente melhorar as coisas,
vamos em busca de soluções e não de culpados.
Descartamos julgamentos, incluímos novos planos de
acerto.
A verdade é que, na maior parte das vezes, destacamos no
outro aquilo que carregamos em nós. Falamos das sombras
a partir das nossas próprias sombras. Falamos das luzes,
a partir das nossas próprias luzes.
Se realmente desejamos ajudar o mundo, busquemos o
melhor que existe na situação e nas pessoas.
Sim, não se trata de termos um modo de viver “Poliana”,
mas não nos prendermos ao pior, e sim ao que pode nos
elevar.
Quando pergunto às pessoas, invariavelmente me respondem
que desejam sentir paz, amor e alegrias. Espanta-me
perceber que, paradoxalmente, remam para outra direção.
O que acontece é que sinto amor, quando amo. E amar é
escolher a melhor porção do outro, amparando-o, para que
ele se desenvolva e tome contato com sua essência
sagrada, que é o verdadeiro Eu. Sinto paz, quando me
pacifico. E pacificar-se também implica em observar as
pessoas e os fatos com equilíbrio, não se infla-mando
com o que não concorda. Sinto alegria quando ajudo,
quando sou útil e bom. Destacar o mal e fazer fofocas
não ajuda ninguém, ao contrário, só se cristaliza o mal.
Ken Wilber, o pai da psicologia transpessoal, em seu
livro Éden - queda ou ascensão, escreveu que "A essência
se um Ser não é determinada pelo mais baixo no qual
pode submergir - animal, id, macaco -, mas pelo mais
elevado a que pode aspirar - Brahman, Buda, Deus". É
isso! Em essência somos todos deuses. E se o somos,
pedras e paus não são instrumentos de despertar para
esta realidade maravilhosa, mas sim o amor, por ser ele
o catalizador, o sentimento excelso que reverbera e
atinge as profundezas do nosso mundo sagrado - o Reino
em nós.