Grande Prêmio
Nosso Lar
Nosso Lar é, segundo a literatura espírita, o nome de
uma colônia espiritual situada nos arredores do Grande
Rio. Conforme o livro homônimo – ditado pelo Espírito
André Luiz e psicografado pelo médium mineiro Chico
Xavier – Nosso Lar paira sobre cidades como Rio de
Janeiro, Petrópolis e circunvizinhas.
Desde que passei a ser parte integrante do movimento
espírita, ouço muita gente dizer que gostaria de ir para
Nosso Lar quando desencarnasse. E também ouço muitos
colegas de ideal falarem que, ao fazerem algo de bom,
principalmente dentro do centro espírita, ganharam mais
um bônus-hora, uma espécie de milhas de cartão de
crédito (só que morais), que vamos juntando a fim de
garantir um bom lugar na referida colônia espiritual.
Pelo que entendi do livro, ninguém junta bônus-hora aqui
para serem utilizados do lado de lá. Mesmo que sejam
imateriais. Os bônus-hora fazem parte da dinâmica dos
que vivem a rotina de Nosso Lar. É algo de desencarnado
para desencarnado. Portanto, de nada adianta fazer o
bem aqui com segundas intenções para o lado de lá. Mesmo
porque, ao agirmos dessa forma, estamos fazendo algo
que muitas religiões fazem. Algo que foge totalmente à
proposta do Consolador Prometido: barganha.
É comum os homens – incluindo os espíritas – censurarem
religiões que “vendem” lotes no céu a fiéis incautos,
gente que faz promessas e oferendas para receber, em
troca, vantagens e benefícios etc.
Todavia, julgar que cada bônus-hora teoricamente juntado
aqui equivale a mais um tijolinho da nossa futura morada
em alguma aprazível alameda de Nosso Lar também é fazer
barganha. Como diz meu amigo Vinícius Lara, do movimento
espírita mineiro, há espíritas querendo realizar, do
outro lado da vida, o sonho da casa própria. Não
perceberam que a proposta da Doutrina Espírita vai
muito, mas muito além de um mero toma-lá-
dá-cá.
Li certa vez, numa postagem na rede social Facebook, que
o mal das religiões tradicionais foi ter adestrado as
pessoas a meramente frequentarem o templo. Deveriam,
isso sim, ter ensinado os fiéis a praticarem na vida de
relação o que é dito nos sermões, preleções, homilias e
afins.
A proposta do Espiritismo é essa. Ele dá as coordenadas
para termos uma conduta cristã, trabalhando em várias
frentes por um mundo onde o amor – traduzido em
respeito, justiça social etc. – seja instalado e
permaneça. Mas como somos oriundos de movimentos
religiosos que simplesmente adestravam as pessoas,
muitas vezes praticamos, dentro do centro espírita, sem
nos darmos conta, um bem calcado numa relação de troca.
Aí, negligenciamos o verdadeiro bem, que se dá quando
agimos como cidadãos comprometidos com a construção de
um mundo melhor.
De nada adianta declararmo-nos espíritas e não estarmos
nem um pouco empenhados em transformar o meio social.
Tampouco acharmos que ser espírita se resume a realizar
uma gama de tarefas e continuarmos sendo os obtusos de
sempre. E muito menos julgarmos que ser espírita é uma
espécie de salvoconduto que garantirá uma entrada
triunfal em Nosso Lar e congêneres.
Por que somos espíritas, afinal? Porque o pessoal do
centro é muito bacana? Porque o estudo é animado?
Porque as palestras são ótimas? Porque é sempre bom
tomar um passe? Porque as tarefas que exerço me dão
destaque? Ou porque, insisto, eu quero ser melhor e
contribuir para que o mundo seja também melhor?
Segundo o professor e filósofo budista Eduardo Pinheiro
de Souza, também conhecido como Padma Dorje, há, no
Brasil (e só no Brasil), pessoas que se dizem budistas
só porque praticam meditação. Entretanto, não conhecem
os ensinamentos da religião que dizem professar. Se
conhecessem, adeririam às propostas de compaixão,
empatia ante a dor do próximo, respeito à natureza etc.
e teriam o budismo como filosofia de vida. Mas preferem
continuar sendo materialistas, competitivos,
consumistas e indiferentes às dores sociais. Julgam-se
budistas só porque meditam. São, nas palavras do Padma,
budistas por uma questão estética e não ética.
Essa consideração vale para qual-quer religião.
Inclusive para o Espiritismo. Somos espíritas por uma
questão ética ou estética?
Pensando nisso, resolvi elaborar um jogo chamado Grande
Prêmio Nosso Lar. Uma brincadeira que remete aos tempos
de infância e início de adolescência, na década de 70 do
século passado.
À época, a gurizada se divertia muito com jogos de
tabuleiro. Entre eles, havia uns que simulavam corridas
de carro. Cada competidor escolhia com que carrinho iria
“correr”. Era um de cada cor. Geralmente seis.
Colocávamos os car-rinhos na “pista” – sempre muito bem
traçada pelos fabricantes de brinquedos –, jogávamos o
dado e avançávamos casa por casa, conforme o número
tirado.
E como era bom quando a gente ficava na frente! Dávamos
sorte ao jogarmos o dado e avançávamos rumo à vitória,
crentes que nada iria nos impedir. Só que sempre havia
casas pintadas de cor diferente. Eram as casas que
continham pegadinhas. Dávamos o azar de parar o carrinho
nessas casas e deparávamos com punições do tipo:
1)
Óleo na pista. Fique uma vez sem jogar.
2)
Você fez uma ultrapassagem indevida. Volte três
casas.
3)
Pausa para reabastecer. Fique duas vezes sem
jogar.
4)
Você derrapou na curva. Volte cinco casas.
E lá íamos nós, antes certos da vitória rápida, sendo
obrigados a baixar a bola e aprender que ganhar nem
sempre é tão fácil.
Os que pensam que estão juntando bônus-hora ao fazerem o
bem somente dentro do centro espírita assemelham-se a
crianças que vibravam ao tomarem a dianteira nos
referidos joguinhos.
- Oba! Eu canto no coral! Faço palestra! Aplico passe!
Faço parte do grupo de teatro espírita! Aplico estudo!
Trabalho na biblioteca! Ajudo na distribuição das cestas
básicas! Estou ganhando! Eeeeeeehhhhhh! Estou na frente!
Disparado o melhor! Estou praticamente com minha casa
pronta em Nosso Lar! Meu carrinho vai ser o primeiro!
Eeeeeehhhh! Vrummmm!
Só que, de repente, o dado da vida faz com que nosso
possante pare numa casa marcada. Aí, temos de ler o que
a penalidade especifica e deparamo-nos com as seguintes
sentenças:
Você se diz espírita, mas...
1-
Acha que bandido bom é bandido morto. Volte cinco
casas.
2-
Foi grosseiríssimo com o garçom só porque a carne
não veio do jeito que você pediu. Volte duas casas.
3-
Acha que a crise ambiental que o planeta enfrenta
é invencionice. Mesmo porque você adora consumir para
ter status. Fique duas vezes sem jogar.
4-
Estaciona em faixa de pedestre, porta de garagem,
vaga para cadeirante. Volte seis casas.
5-
Toda vez que fala sobre a moça negra que
frequenta o centro espírita, se refere a ela como
“Aquela neguinha”. Volte cinco casas.
6-
Acha perfeitamente natural que haja tanta
desigualdade e tanta injustiça no planeta. E acha que
sempre deve existir gente pobre. Senão, quem fará a
faxina da sua casa e para quem você doará cestas básicas
no centro? Fique duas vezes sem jogar.
7-
Quando alguém fala em oportunidades iguais para
todos, você acha que isso é coisa de comunista. Fique
três vezes sem jogar.
8-
Disse àqueles dois jovens homossexuais que eles
não podiam frequentar a mocidade porque poderiam servir
de mau exemplo. Aí, despachou os dois. Volte dez casas.
9-
Só vota em candidato demagogo, não comprometido
com a melhoria da coletividade. Fique quatro vezes sem
jogar.
10-
Acha que lugar de mulher é em casa, cuidando do
lar, do marido, dos filhos e amando o sabão em pó que
lava mais branco. Volte ao início.
Melhor dizendo: volte a estudar Kardec! Enfie a cara nas
Obras Básicas e aprenda a contextualizálas ante a
realidade que você vive! E tome ciência, de uma vez por
todas, que a proposta da Doutrina Espírita não é formar frequentadores de centro espírita empenhados em trocar
tarefas pela construção de uma casinha além do
horizonte. Mas sim, cidadãos lúcidos, combativos e
comprometidos com a melhoria das condições sociais. Caso
contrário, conforme Jesus ensina na Parábola do Festim
das Bodas, teremos de deixar a festa por não estarmos
com a túnica nupcial.