Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 1)
Iniciamos hoje o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de
Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1866.
Questões preliminares
A. Qual seria, na visão de Flammarion, a causa da
deca-dência social que já era notória em sua época?
A falta de fé. A primeira hora do século 19 teria
marcado, segundo suas palavras, “o derradeiro alento da
religião de nossos pais”. Baldos seriam, pois,
quaisquer esforços de restauração e reconstrução.
Flammarion escreveu: “Tudo o que se fizer não passará
de simulacro, pois o que está morto não pode ressur-gir.
O sopro de uma revolução imensa passou sobre as nossas
cabeças deitando por terra nossas velhas crenças, mas,
entretanto, fecundando um mundo novo”.
(Deus na Natureza – Introdução.)
B. Apesar da decadência social a que se referiu,
manifestava Flammarion esperança de algo melhor para o
mundo em que vivemos?
Sim. Ele entendia que estávamos atravessando a fase
crítica que precede a toda renovação. O mundo progredia
e seria, pois, impossível impedir que o progresso nos
con-duzisse para uma fé superior, que ainda não
possuíamos, mas para a qual já caminhávamos. E essa fé
não seria outra senão a convicção científica da
existência de Deus, numa escalada à verdade pelo estudo
da Criação.
(Deus na Natureza – Introdução.)
C. Para triunfar sobre seu eterno rival, o materialismo,
como deve proceder o espiritualismo?
Enquanto os materialistas procuram apoiar-se em
trabalhos científicos e pretendem deduzir da ciência
posi-tiva o seu sistema, os espiritualis-tas, em geral,
acreditam que possam pairar acima da esfera experimental
e assomar aos pínca-ros da razão pura. Flammarion
entendia, no entanto, que o espiri-tualismo, para
triunfar, deve medirse com o adversário no mesmo
terreno e com as mesmas armas deste. Ele não perderá
nada do seu caráter, condescendendo em baixar à arena, e
nada terá a recear nessa justa com a ciência
experimental.
(Deus na Natureza – Introdução.)
Texto para leitura
1. Introdução – Destina-se esta obra a
representar o estado atual dos nossos conhecimentos
precisos, sobre a Natureza e o homem. A ex-posição dos
últimos resultados a que atingiu a inteligência humana
no estudo da Criação é, ao nosso ver, a verdadeira base
sobre a qual se há de fundar doravante toda a convic-ção
filosófica e religiosa.
(Deus na Natureza – Introdução.)
2. Em nome das leis da razão, tão solidamente
justificadas pelo pro-gresso contemporâneo e por força
dos inelutáveis princípios constituin-tes da lógica e do
método, pareceu-nos que só através das ciências
positivas deveremos prosseguir na pesquisa da verdade, e
é na ciência experimental que devemos procurar os
elementos de cognição, só com ela devendo marchar.
(Deus na Natureza – Introdução.)
3. O cepticismo e a dúvida universal imperam no âmago de
nossa alma e nosso olhar escrutador, que nenhu-ma ilusão
fascina, vigila na cripta dos nossos pensamentos. Não
nos despraz que assim seja. Não lasti-memos que Deus não
nos houvesse tudo revelado ao criar-nos, dando-nos
contudo o direito de discutir. Essa prerrogativa do
nosso ser é ótima em si mesma, como condição maior de
progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia vigilante,
também a necessidade de crença nos atrai.
(Deus na Natureza – In-trodução.)
4. Podemos duvidar, sem por isso nos isentarmos do
insaciável desejo de conhecer e saber. Uma crença
torna-se-nos imprescindível. Os espíritos que se
vangloriam de não a possuírem são os mais ameaçados de
cair na superstição ou de anularse na indiferença.
(Deus na Natureza – Introdução.)
5. O homem tem, por natureza, uma necessidade tão
imperiosa de fir-mar-se numa convicção –,
particu-larmente quanto à existência de um coordenador
do mundo e da destinação dos seres – que, quando não
encontra uma fé satisfatória, experimenta a necessidade
de se demonstrar a si mesmo que esse Deus não existe e
busca, então, repousar o espírito no ateísmo e no
niilismo.
(Deus na Natureza – Intro-dução.)
6. Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos
apaixona, a de sabermos qual a forma do Criador, o
caráter da mediação, a influência da graça, nem
discutir, tampouco, o valor de argumentos teológicos. A
verdadeira questão é saber se Deus existe ou não.
Note-se que, em geral, a negativa é patrocinada pelos
experimentalistas da ciência positiva, enquanto a
afirmativa se ampara nos indivíduos estranhos ao
movimento científico.
(Deus na Natureza – Introdução.)
7. Qualquer observador atento pode, ao presente,
apreciar no mundo pensante duas tendências
diame-tralmente opostas. De um lado, químicos ocupados
em tratar e triturar, nos seus laboratórios, os fatos
materiais da ciência moderna, por lhes extrair a
essência e quinta-essência, a declararem que a presença
de Deus jamais se manifesta em suas manipulações. Doutro
lado, teólogos acocorados entre poeirentos manuscritos
de bibliotecas góticas compulsando, folheando,
interrogando, traduzindo, compilando, citando e
recitando versículos dogmáticos, e declarando, com o
anjo Rafael, que da pupila esquerda à pupila direita do
Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um milhão de
varas, cada qual equivalente a quatro e meia vezes o
comprimento da mão.
(Deus na Na-tureza – Introdução.)
8. Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que
os segundos, como os primeiros, estejam animados do
propósito de conhecer a verdade. Pretendem os primeiros
representar a Filosofia do século 20, en-quanto os
segundos guardam, res-peitosos, a do século 15. Os
primeiros, passam por Deus sem O ver, como o aeronauta
que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos
focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.
(Deus na Natureza – Introdução.)
9. O observador imparcial e inde-pendente que procura
explicar-lhes suas tendências contrárias, admira-se de
os ver obstinados no seu sistema particular e pergunta a
si mesmo se será verdadeiramente impossível interrogar,
de um modo direto, este vasto Universo e chegar a ver
Deus na Natureza.
(Deus na Natureza – Introdução.)
10. Por nós, isentos de qualquer sectarismo, sentimo-nos
à vontade em equacionar o problema. Diante do panorama
da vida terrestre; no âmbito da Natureza radiosa à luz
do Sol, beirando mares bravios ou fontes múrmuras;
entre paisagens de Outono ou florações de Abril; tanto
quanto no silêncio das noites estreladas, temos
procurado Deus.
(Deus na Natureza – Introdução.)
11. A Natureza, interpretada com a Ciência, foi quem
no-lo demonstrou num caráter particular. De fato, Ele
está nela, visível, como a força íntima de todas as
coisas. Temos considerado na Natureza as relações
harmônicas que constituem a beleza real do mundo e, na
estética das coisas, encontramos a manifestação gloriosa
do pensamento supremo.
(Deus na Natureza – Introdução.)
12. Nenhuma poesia humana se nos figurou comparável à
verdade natural, e o Verbo eterno nos falou com mais
eloquência nas mais modestas obras da Natureza do que o
pudera fazer o homem com seus cantos mais pomposos.
(Deus na Natureza – Introdução.)
13. Seja qual for a oportunidade dos estudos que este
trabalho objetiva, não esperamos agradar a toda a gente,
certo de haver muitos incapa-zes de acordar do seu sono
e outros tantos a quem longe estamos de lhes
corresponder aos pendores.
(Deus na Natureza – Introdução.)
14. Acusa-se de indiferentismo a nossa época. A acusação
é merecida. Onde estão, com efeito, os corações
palpitantes de puro amor à verdade? Em que alma –
perguntamos – ainda reina a fé? Não diremos, já, a fé
cristã, mas uma crença sincera, seja no que for. Aonde
se vão os tempos em que as forças da Natureza,
divinizadas, re-cebiam homenagens universais? Tempos nos
quais o homem, con-templativo e deslumbrado, saudava com
fervor a potência eterna e manifesta na Criação?
(Deus na Natureza – Introdução.)
15. Que é feito daqueles tempos em que os homens eram
capazes de derramar o sangue por um princípio, quando as
repúblicas tinham à sua testa um ideal e não uma
ambição? Que é feito da virtude patriótica dos nossos
antepassados abrindo as portas do Panteão para acolher
as cinzas dos heróis do pensamento, e relegando à noite
do olvido a falsa glória da ociosidade e das almas?
(Deus na Natureza – Introdução.)
16. Não coremos de o confessar, já que temos a franqueza
de suportar um tal aviltamento: saturados de egoísmo,
nossa alma não alimenta outra ambição que a do interesse
pessoal. Riqueza cuja origem permanece equívoca, louros
surpreendidos, antes que conquistados, uma doce
quietação, uma profunda indiferença pelos princípios,
quem não verá nisso o nosso galardão?
(Deus na Natureza – Introdução.)
17. À parte, contudo, fora do mun-danismo empolgante e
rumoroso, vivem os que não se conformam em baixar a
fronte diante da hipocrisia. Esses trabalham na solidão
e esqua-drinham em silenciosa meditação os abismos da
Filosofia e, se se mantêm fortes, é porque não se
atrofiam ao contacto das sombras.
(Deus na Natureza – Introdução.)
18. Na verdade, é um contraste penoso de assinalar,
quando vemos que o progresso magnífico das ciências
positivas e a conquista sucessiva do homem sobre a
Natureza, ao mesmo tempo em que tão alto nos elevaram a
inteligência, deixaram resvalar o sentimento a níveis
tão baixos. Doloroso sentir que, enquanto por um lado a
inteli-gência mais demonstra a sua capacidade,
extingue-se por outro lado o sentimento, e a vida íntima
da alma mais se embota na geena da carne.
(Deus na Natureza – Introdução.)
19. A causa da nossa decadência social (passageira, de
vez que a História não pode mentir a si mesma) deve-se à
nossa falta de fé. A primeira hora deste nosso século –
Flammarion refere-se ao século 19 – marcou o derradeiro
alento da reli-gião de nossos pais. Baldos serão
quaisquer esforços de restauração e reconstrução. Tudo o
que se fizer não passará de simulacro, pois o que está
morto não pode ressurgir. O sopro de uma revolução
imensa passou sobre as nossas cabeças deitando por terra
nossas velhas crenças, mas, entretanto, fecun-dando um
mundo novo.
(Deus na Natureza – Introdução.)
20. Estamos, ao presente, atraves-sando a fase crítica
que precede a toda renovação. O mundo progride. É em
vão que homens políticos e homens eclesiásticos
imaginam, cada qual do seu lado, prosseguir na
representação do passado, num proscênio em ruínas.
Impossível impedir que o progresso nos conduza a todos
para uma fé superior, que ainda não possuímos, mas para
a qual já caminhamos. E essa fé não será outra que a
convicção científica da existência de Deus, numa
escalada à verdade pelo estudo da Criação.
(Deus na Natureza – Introdução.)
21. É preciso ser cego, ou ter interesse em iludir-se a
si e aos outros para não ver e não ajuizar a nossa
atualidade pensante. Foi por ter a superstição matado o
culto religioso, que nós o menosprezamos e abandonamos.
E foi porque as características do verdadeiro se nos
revelaram mais claramente, que a nossa alma aspira a um
culto mais puro. E não foi senão por se have-rem
afirmado diante de nós os imperativos da justiça, que
hoje reprovamos institutos bárbaros, tais como a guerra,
que, ainda recente-mente, recebia a homenagem dos
homens. É, enfim, porque o pensa-mento rompeu os
grilhões que o prendiam à gleba, que não mais admitimos,
de boamente, quaisquer tentativas que nos aproximem de
qualquer espécie de servilismo.
(Deus na Natureza – Introdução.)
22. Nada obstante, há em tudo, e sempre, um progresso.
Na incer-teza, porém, em que ainda perma-necemos, entre
as perturbações que nos agitam, a maior parte dos
ho-mens, ao perceberem que as suas impressões e
tendências esbarram fatalmente na inércia do passado, ou
se afastam silenciosos se lhes sobra força e coragem de
o fazerem, ou se deixam arrastar na corrente geral, pela
atração vigorosa da fortuna.
(Deus na Natureza – Introdução.)
23. É nas épocas críticas que as lutas se intensificam,
intermitentes, sobre os eternos problemas cuja forma
varia à feição dos tempos, a revestirem-se de um aspecto
característico.
(Deus na Natureza – Introdução.)
24. Nesta nossa época de obser-vação e experimentação,
os mate-rialistas procuram apoiar-se em trabalhos
científicos e pretendem deduzir da ciência positiva o
seu sistema. Os espiritualistas, em geral, acreditam,
ao invés, que possam pairar acima da esfera experimental
e assomar aos píncaros da razão pura.
(Deus na Natureza – Introdução.)
25. A nosso ver, porém, o espiritua-lismo para triunfar
deve medir-se com o adversário no mesmo terreno e com as
mesmas armas deste. Ele não perderá nada do seu caráter,
condescendendo em baixar à arena, e nada terá a recear
nessa justa com a ciência experimental.
(Deus na Natureza – Introdução.)
(Continua no próximo número.)