Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 16)
Continuamos o estudo
metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de
autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade
do século 19, no ano de1867.
Questões preliminares
A. A tese de que o corpo se renova completamente em
trinta dias é contestada por Flammarion?
Sim. Para ele, não está provado que o corpo humano se
renova completamente no período de um mês, porque há
tecidos que só se renovam em um prazo maior. As unhas,
por exemplo, não se renovam em menos de seis meses.
Pode-se, pois, contraditar os 30 dias e solicitar lapso
um pouco mais longo para a renovação integral do
organismo. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
B. Se é verdade que o nosso corpo se renova mensalmente,
ou anualmente como querem alguns, que é que, afinal,
envelhece em nós?
Flammarion responde: - Não serão as moléculas
constitutivas do corpo, que ainda há pouco não nos
pertenciam e integravam-se num frango ou numa perdiz,
num grão de trigo ou de sal, numa gota de vinho ou de
café, por nós absorvidos. Nosso organismo é que tem
envelhecido. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
C. Existe em nós uma força diretora que responde pela
formação e desenvolvimento do corpo, do berço ao túmulo?
Sim. É exatamente isso que propõe Flammarion. Para que
haja equilíbrio, para que haja organização no
agenciamento das moléculas, é preciso que haja direção.
Se não houvesse em nós uma força diretora, como explicar
a formação e o desenvolvimento do corpo, nos moldes do
tipo orgânico, do berço ao túmulo? Por que, depois dos
20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e tanto
alimento, como antes, para de crescer? Quem distribui
harmonicamente todas as substâncias assimiladas? Após o
crescimento em altura, quem limita a espessura? Quem dá
força ao homem maduro, quem repara de contínuo as peças
da máquina animada? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
Texto para leitura
327. Ainda não está provado que o corpo humano se renova
completamente no período de um mês. Tecidos há que só se
renovam assaz lentamente, dado que todos eles se
renovem. Em todas as idades se têm encontrado células
embrionárias que, no entanto, se destinam a desaparecer
no próprio feto. Os humores da pálpebra, sequentes a
pequenas inflamações (terçóis), em regra não são
reabsorvidos antes de um ano. As unhas não se renovam em
menos de seis meses. No estado de saúde, seu crescimento
é de 2 milímetros por mês, de sorte que, se guardássemos
a unha do indicador num estojo cilíndrico, durante
sessenta anos – tal como fazemos para conservar plantas
raras – não teríamos afinal uma garra excedente de um
metro e meio. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
328. Poderíamos, assim, contraditar os 30 dias e
solicitar lapso um pouco mais longo para a renovação do
organismo. Não é, porém, de mês ou de ano que se trata.
O tempo não vem ao caso, como diz a sátira francesa, e,
muito pelo contrário, quanto mais rápida e vultosa se
faça a renovação da matéria corporal, mais aproveita à
nossa teoria. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
329. Os materiólatras deduzem dos fatos aqui exarados a
sua famosa assertiva, declarando provada a inexistência
da alma, mediante essas transformações químicas. Para
nós, ao invés disso (note-se o contraste), essas mesmas
transformações induzem a declarar demonstrada,
doravante, a existência da alma. Antes, porém, de
argumentar, apraz-nos contrapor um simples reparo a tão
categórica afirmativa adversa, que proclama com tamanha
segurança e com verdade inconteste a só existência das
moléculas materiais e que só elas constituem o ser
vivente, do berço ao túmulo. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
330. Por um lado, afirmam eles que o corpo vivo não
passa de um conjunto de moléculas e, por outro, dizem
que todo esse corpo se rejuvenesce mensalmente. A nosso
ver, são duas proposições difíceis de conciliar. Como
explicar o envelhecimento, se esse corpo material, na
sua qualidade de moléculas químicas, nunca teve mais que
um mês de idade? O turbilhão vital, na frase de Cuvier,
o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele,
nossa própria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o
corpo, é qual vestimenta que se renova de si mesma. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
331. O corpo do sexagenário, ou do octogenário, não tem
mais que um mês, assim como o da criança que apenas
começa a andar. São, assim, sempre novos os corpos e,
certo, não podemos deixar de admirar essa engenhosa lei
da Natureza. Entretanto, é também indubitável haver no
mundo pessoas de todas as idades, na escala dos anos. O
Sr. Moleschott conta, ao que presumo, 45 e o Sr. A.
Comte deveria orçar pelos seus 79. O Sr. Vogt nasceu no
ano da graça de 1817. Temos assim, cada qual, a nossa
idade. Cá por mim, sei que carrego menos de 20 lustros,
que o Sr. Schopenhauer registraria muito breve. Ora, se
é verdade que nosso corpo se renova mensalmente, ou
anualmente – se assim o preferirem – que é que envelhece
em nós? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
332. Digamo-los ainda uma vez: não serão essas moléculas
constitutivas do corpo, que ainda há pouco não nos
pertenciam e integravam-se num frango ou numa perdiz,
num grão de trigo ou de sal, numa gota de vinho ou de
café, por nós absorvidos, e que, ao demais, são
imutáveis e, como coisa morta, não podem envelhecer.
Logo, existe em nós alguma coisa além dessas moléculas.
Nosso organismo tem envelhecido. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
333. Prossigamos e entremos agora no âmago da questão.
Permitam-me, antes de tudo, assinalar que a todo
instante a fraqueza do sistema materialista se traduz
pela inconsequência forçada das expressões. São os
adeptos do materialismo os primeiros a conceituar a
velhice como uma falta de equilíbrio entre a
recomposição e a eliminação. À vida, plena, normal,
chamam equilíbrio funcional. Ensinam que, havendo
equilíbrio de sanguificação e eliminação, o corpo não se
altera em sua provisão geral de matéria. Esse equilíbrio
mantém-se na idade adulta. É possível pesar um homem de
30 a 40 anos, a longos intervalos, sem constatar
qualquer alteração de peso que se não explique por ganho
ou perda imediatamente precedente. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
334. Pois, muito bem: - quem organiza esse equilíbrio?
Pretendem eles, bem sei, que não há força alguma
interior a presidir a essa renovação molecular, mas
tenho essa pretensão como vanidade insustentável. A
hipótese puramente materialista, da vida, a assimilação
circulatória das moléculas ao movimento do vapor no
alambique ou da eletricidade nos tubos de Geissier, não
explica o crescimento nem a vida, nem a decadência, a
senectude, a morte. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
335. Para que haja equilíbrio, para que haja organização
no agenciamento das moléculas, é preciso que haja
direção. De resto, tanto como Cuvier e Geoffroy
Saint-Hilaire, os materialistas não negam essa direção.
Mas, como conceber direção sem força motriz? Essa força
diretriz não é um amálgama de propriedades confusas,
antes é soberana, necessária, pois é quem rege o
turbilhão vital, assim como a atração rege o turbilhão
de esferas planetárias. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
336. Se não houvesse em nós uma força diretora, como
explicar a formação e o desenvolvimento do corpo, nos
moldes do tipo orgânico, do berço ao túmulo? Por que,
depois dos 20 anos, esse corpo que absorve tanto ar e
tanto alimento, como antes, para de crescer? Quem
distribui harmonicamente todas as substâncias
assimiladas? Após o crescimento em altura, quem limita a
espessura? Quem dá força ao homem maduro, quem repara de
contínuo as peças da máquina animada? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
337. Sem admitir uma força orgânica, típica, vital (não
nos atenhamos à palavra), como explicar a construção do
corpo? O Sr. Scheffer diz que são as forças química e
física. “Cada qual – di-lo ele – exerce sobre as outras
uma influência que dá ao organismo, em todas as suas
peças, uma certa uniformidade de ordem mais elevada. As
ações especiais das forças individuais se conjugam, a
seguir, num efeito total e formam uma resistência
coordenadora da multiplicidade das partes num todo
unitário, em que se desenha o tipo fundamental de toda a
propriedade individual.” Eis o que se pode chamar uma
luminosa explicação. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
338. Somente resta explicar como se produziriam todas
essas maravilhosas combinações, à revelia de uma unidade
virtual, organizadora. Quem constrói esse organismo?
Como podem as propriedades da matéria operar sobre um
plano, em conformidade com uma ideia que, por si, não
podem ter? Como sabe o organismo, tão seguramente,
escolher os alimentos que lhe convêm? Quem determina a
reprodução fiel da espécie? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
339. É, portanto, mais fácil admitir todos os acasos,
como diz Tissot, do que supor um princípio
essencialmente ativo, dotado de potência organizadora e
com faculdades de exercê-la no sentido de tal ou tal
tipo específico? “No homem, respondem, no seu conteúdo
material e nas substituições de substância que nele se
operam, a função química tem o seu papel, produz as
partículas corporais capacitadas a servirem de suporte,
ou substrato, de todo o edifício. Organiza-o a força
vital, resultante de todas as combinações e desta
organização é que resulta a força espiritual.” Aí temos,
patente, mero palavreado que nada explica.(Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
340. Vários materialistas, e com eles Mulder, riem-se da
doutrina da força vital e comparam essa força a “uma
batalha travada por milhares de combatentes, como se não
estivesse em jogo apenas uma força que dispara os
canhões, maneja os sabres etc. O conjunto dos
resultados, acrescenta Mulder, não é mais o resultado de
uma única força, de uma força de batalha, mas a soma das
forças e combinações inúmeras, em atividade num tal
acontecimento.” Concluem, assim, que a força vital não é
causa, mas efeito. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
341. À comparação não falta justeza e tem, ao demais, a
inapreciável virtude de aproveitar mais a nós do que aos
seus próprios imaginadores. De fato, é evidente, o que
constitui a força de um exército e ganha a peleja não é
tão só o esforço particular de cada combatente, mas,
sobretudo, a direção global, a inteligência do
generalíssimo, o plano da batalha, a ordem soberana que,
do cérebro do organizador, se irradia aos subchefes e
vai, através dos batalhões, até aos soldados, molas
arregimentadas. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
342. Convencer-se-á alguém que não foi Napoleão quem
venceu em Austerlitz? Perguntem a Thiers (que sabe mais
do que o próprio Napoleão) se essas batalhas
inolvidáveis, tanto quanto as ganhas e empenhadas de
surpresa, não revelam, acima do valor pessoal de cada
combatente, o gênio lugubremente célebre que vingava
atirar ao túmulo, num relance de olhos, milhares de
criaturas em apogeu de força e atividade. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
343. Se a um exército se impõe, imprescindível, o
governo de um chefe e que uma severa disciplina o
abranja na unidade de milhares de soldados, com maior
soma de razão importa que uma força governe a matéria,
reduzindo à unidade harmônica os milhões de moléculas
que sucessivamente a conformam. Só mediante essa força é
que existe o corpo, tal como se dá com o regimento, que,
não sendo mais que uma entidade abstrata, existe por
virtude de lei, antes que pelo valor de cada soldado. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
344. Chegam os conscritos novos, dá-se baixa aos velhos
e de sete em sete anos está o regimento renovado. Nesse
período, há licenças temporárias, engajamentos
particulares e uma que outra modificação nas moléculas
componentes do exército. Desculpem: cada oficial ou
soldado não é mais que um número, sua personalidade não
entra em linha de conta. Podem os oficiais ser
comparados aos zeros da ordem decimal, ou, por falar com
mais elegância – chefes de dezenas ou centenas; mas,
singularmente considerada, sua personalidade pouco mais
vale que um caçador. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)
345. Os próprios coronéis mudam, sem que o regimento
deixe de existir na sua forma idêntica. Sofrem os
generais, igualmente, essas transições, que em nada
prejudicam a existência das respectivas brigadas e
divisões. A hierarquia militar é uma unidade e é nisso
que reside a sua eficiência. Quanto às partes
componentes da unidade, não são conhecidas. Indubitável,
que um coronel à testa do seu regimento, ou um general
na ativa, têm mais importância, do ponto de vista do
serviço, do que um simples granadeiro; da mesma forma
que um átomo de gordura cerebral tem maior importância
do que um folículo de unha. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida.)