Eu vejo você...
No mundo ainda saturado de tantas turbulências, é
inadiável a compreensão de que o preceito do se “saber
colocar no lugar do outro para não fazer a ele o que não
quer para si próprio” é uma chave de bem viver na
prática do cotidiano, se o que se pretende com
sinceridade é a melhoria da qualidade de vida.
Jesus, outrora, enunciou esta máxima. Outros mestres
espirituais ensinaram o mesmo, cada um a seu tempo e
lugar. Tivemos o “amar ao outro como a si mesmo” no
Judaísmo, no Budismo, no Islamismo e no Zoroastrismo.
Na era contemporânea de objetividade e clareza,
portanto, a hora é de se abandonar a letargia
espiritual. Porque, a pretexto de se considerar o
enunciado mera questão obsoleta de fé, sem consistência
ou destituído de significado válido, ao sabor dos
caprichos do entendimento de cada ser humano, deixa-se
de lado o que, com mais acerto, é ciência de vida
saudável.
Devemos ver o outro como a nós mesmos vemos. Com
toda a tolerância, complacência, boa vontade de entender
– com a empatia proporcionada pela boa vontade, que
gostaríamos que nos fosse ofertada nas mínimas coisas da
rotina diária.
Para isso, contudo, é preciso desfazer-se do hábito
pernicioso e insistente de julgar, culpar e condenar.
Abrir mão, em definitivo, da conduta de “palmatória do
mundo”.
Lembro-me de alguns episódios. Certa vez, num aeroporto
do Rio de Janeiro, um atraso de mais de três horas no
voo me fez ficar às voltas com um sem-número de sacolas,
bolsas, e com a minha menina ainda pequena desmaiando de
sono, no começo de madrugada. Acomodada num daqueles
assentos desconfortáveis, ajeitei tudo como pude,
acolhendo no colo minha filha adormecida e ajeitando as
bolsas da melhor forma. Não reparava em nada do tumulto
costumeiro no ambiente do aeroporto. A esmo, só havia
notado um grupo pitoresco reunido nos assentos a certa
distância, com instrumentos musicais, que indicavam uma
trupe artística.
De repente, tudo despencou no chão. A bolsa macia que
usava para apoiar a cabecinha da menina, e o que mais
estava em volta. Fiquei entretida com a dificuldade de
tentar recolher as coisas sem acordá-la, e não percebi
que um daqueles músicos distantes, um rapaz de barba e
chapéu, notou o que aconteceu. Quando dei por ele, já se
acercava de mim com um gesto cordial.
Recolheu tudo do chão, me ajudou com a acomodação da
minha filha, arrumou minhas sacolas, e, ante o meu
agradecimento sincero, somente fez um meneio de dispensa
com o rosto e voltou para os amigos.
Noutra vez, há mais de vinte anos, no auge da
contrariedade com algo que com o tempo perdeu a
importância, eu andava por uma das ruas do Rio sem poder
conter as lágrimas de tristeza, transbordando pelo
sufocamento com a contrariedade quando, parando num
sinal fechado para a travessia de pedestres,
surpreendeu-me um menino de rua. Arranquei-me do meu
estado íntimo pelo inusitado da presença dele, e dei com
um garotinho, que não ultrapassaria os nove anos,
perguntando-me o que eu tinha.
Diante da minha quase estupefação, ele afirmava, com
veemência infantil, que se alguém me tivesse feito
alguma coisa, que lhe dissesse, porque a pessoa “ia ver
só!”
Lembro que neste último caso chorei ainda mais. O menino
ficou me olhando, sem entender. Mas era que o meu estado
de espírito havia mudado, num único instante, da
tristeza para a comoção, diante da pequenez da minha
contrariedade comparada à grandeza do gesto daquela
criança tão absolutamente despojada de tudo, que me
via - e, a partir disso, oferecia espontaneamente,
do seu aparente “nada” de recursos, tudo aquilo
de que de fato o ser humano precisa, em qualquer
momento.
É desse tipo de pequenos grandes gestos que falamos. E
essas situações pontilham à vontade, à farta, os nossos
dias, como oportunidades úteis que, conjuntas, no
silêncio do anonimato, colaboram para uma franca
melhoria da vida.
É o conseguir realmente ver o outro, e
compartilhar com espontaneidade, sejam alegrias ou
necessidades. Consolar o choro sufocado de alguém que se
abriga num canto, necessitado de nada mais do que
compreensão, ou de um mero abraço, de um gesto de calor
humano, ainda que em silêncio. Dar a mão nada custa além
da nossa empatia pelo outro, que experimenta desafios
semelhantes aos que nos surgem no desenrolar agitado dos
dias. Segurar uma bolsa no coletivo para quem está em
pé, oferecer lugar; se contagiar e comemorar a alegria e
o entusiasmo de alguém. Colaborar com abrigo, com
consolo...
Porque quando a Espiritualidade benfeitora nos fala da
Lei de Ação e Reação, de Carma, da Lei do Retorno, dos
episódios de expiação e provas, nada mais faz do que
reforçar em suas mensagens a necessidade atemporal da
vigilância das atitudes com que, matematicamente, via
sintonia, construiremos agora, nós mesmos, o tipo de
vida que teremos no minuto seguinte, ou no amanhã mais
distante, com os fatos e valores gratos ou difíceis
atraídos pelo que semeamos anteriormente, muitas vezes
sem refletir.