A espada simbólica do Evangelho
Já faz muitos anos que os meus familiares e eu somos
pacientes de determinado cirurgião dentista do bairro
onde residimos. Ele já alcançou os seus oitenta anos e
continua trabalhando ativamente. Aliás, ele é um
fantástico exemplo para todos aqueles que ambicionam
chegar à terceira idade de maneira produtiva. Um dos
seus predicados mais admiráveis é o fato de que ele
nunca nos explorou com o preço dos seus serviços – como
hoje se observa, infelizmente, em muitos lugares – e
tampouco tenho conhecimento que o tenha feito com outras
pessoas.
Por essa razão, quando saio do seu consultório
endereço-lhe sempre uma sincera vibração de saúde e paz
porque tenho a absoluta certeza de que muitos pacientes
que a ele recorrem provavelmente não teriam condições de
tratar os seus problemas dentários alhures. Devo
acrescentar que já o percebi demonstrando, em várias
ocasiões, extrema compreensão e flexibilidade com as
dificuldades financeiras dos clientes. Algo muito raro
de se constatar nos prestadores desse tipo de serviço,
especialmente na atualidade.
Ademais, ele também apresenta algumas peculiaridades que
merecem destaque. Como fervoroso evangélico, ele é muito
requisitado pela sua agremiação religiosa. Além de lá
exercer a função de pregador, há muitos anos também
abraça a tarefa de coach de pastores. Pelas
conversas que travamos ao longo dos anos deduzi que ele
é muito respeitado em seu meio.
Certo dia fui ao seu consultório para uma consulta de
rotina. Carregava comigo um exemplar do livro Nosso
Lar, do Espírito André Luiz (psicografia de
Francisco Cândido Xavier), sobre o qual efetuava mais
uma das minhas infindáveis releituras (a propósito, é
incomum ver pessoas lendo um livro nos consultórios nos
tempos presentes). Quando adentrei o seu consultório e
ele reparou no título da obra, assim que a deixei sobre
uma cadeira com os meus documentos, o meu amigo dentista
proferiu um comentário deveras infeliz: “Isso é obra
do Diabo”.
Chocado com a falta de respeito à minha crença, tentei
contra-argumentar oferecendo-lhe outras lentes de
interpretação. No entanto, rapidamente concluí que não
havia a menor possibilidade de entendimento e, assim
sendo, decidi não mais tocar no assunto. Afinal, eu ia
passar por uma consulta e era de bom alvitre não dar
espaço a uma discussão estéril. Os anos foram correndo,
e eu jamais deixei de reconhecer a sua boa vontade em
ajudar o semelhante e a sua crença em Deus.
Mais recentemente levei a minha mãe ao seu consultório.
Como de costume iniciamos um interessante diálogo
enquanto ele a atendia e que, aliás, me inspirou a
escrever este texto. Desta vez, o assunto girava sobre a
violência crescente nos EUA e a existência da pena de
morte naquela nação. Ele mostrou-se francamente
favorável a essa política de Estado, e eu retruquei
afirmando que não tínhamos o direito de tirar a vida de
ninguém. Expressei, contudo, a minha opinião favorável à
adoção de prisão perpétua para certos criminosos.
Por sua vez, ele tornou a me contestar e se valeu, em
sua argumentação e para a minha imensa surpresa, da
Bíblia. Mais especificamente, ele afirmou convictamente
que: “Está na Bíblia escrito esse direito”. Eu, então,
perguntei-lhe onde (recordei-me do decálogo e o “não
matarás”)? E o amigo dentista citou a passagem na qual
Jesus declarava que “trazia a espada”. Na verdade, ele
referia-se ao registro de Mateus em 10: 34: “Não
cuideis que vim trazer a paz à Terra; não vim trazer a
paz, mas a espada”.
Infelizmente, tocou a campainha e ele foi atender ao
paciente da consulta seguinte que acabara de chegar e a
nossa conversa se diluiu.
Saí de lá com a minha mãe satisfeita pelo alívio
proporcionado pelo tratamento realizado a um preço
acessível, mas ao mesmo tempo a minha mente fervilhava.
Fiquei imaginando quantos pastores foram influenciados
por ele e o seu entendimento de uma suposta beligerância
associada ao messianato de Jesus Cristo. É verdade que
também eu enfrentei grande dificuldade na compreensão do
Evangelho na minha adolescência.
Dotado de formação católica não conseguia atinar com o
significado de certas parábolas e trechos. Perguntava-me
se o Mestre não poderia ter dado o seu recado de maneira
simples, sem usar aquela linguagem sibilina. Mas quando
abracei o Espiritismo, as minhas dúvidas e inquietações
foram se dissipando. Em dada ocasião debrucei-me sobre
O Evangelho segundo o Espiritismo de Allan
Kardec, e essa obra foi chave para o meu esclarecimento.
O Codificador da doutrina espírita reconhece, logo na
introdução desta obra portentosa, que “Muitas passagens
do Evangelho, da Bíblia, e dos autores sagrados em geral
são ininteligíveis e muitas mesmo parecem absurdas, por
falta de uma chave que nos dê o seu verdadeiro sentido.
Essa chave está inteirinha no Espiritismo, como já se
convenceram os que estudaram seriamente a doutrina...”.
Felizmente, esse foi o meu caso. Ao dessedentar a minha
ânsia por entendimento nessa fonte abençoada pude
entender um pouco do pensamento divino e o trabalho
inigualável do amor de Jesus à humanidade. Graças,
ainda, às elucidações do Espírito Emmanuel contidas no
livro Caminho, Verdade e Vida (psicografia de
Francisco Cândido Xavier), pude aquilatar que Jesus “...
trouxe consigo a luta regeneradora, a espada simbólica
do conhecimento interior pela revelação divina, a fim de
que o homem inicie a batalha do aperfeiçoamento em si
mesmo. O Mestre veio instalar, assevera o mentor, o
combate da redenção sobre a Terra. Desde o seu
ensinamento primeiro, foi formada a frente da batalha
sem sangue, destinada à iluminação do caminho humano. E
ele mesmo foi o primeiro a inaugurar o testemunho pelos
sacrifícios supremos”.
Emmanuel aduz o pensamento de que: “Sim, na verdade o
Cristo trouxe ao mundo a espada renovadora da guerra
contra o mal, constituindo em si mesmo a divina fonte de
repouso aos corações que se unem ao seu amor; esses, nas
mais perigosas situações da Terra, encontram, nele, a
serenidade inalterável. É que Jesus começou o combate de
salvação para a Humanidade, representando, ao mesmo
tempo, o sustentáculo da paz sublime para todos os
homens bons e sinceros”.
Posto isto, gostaria muito de poder compartilhar com o
meu amigo dentista essa pérola de sabedoria, mas,
infelizmente, há entre nós um autêntico abismo no campo
da fé, que eu espero que se dissipe um dia. A minha fé,
aliás, é raciocinada. Portanto, não me nego a considerar
o que as outras religiões podem oferecer de bom à
humanidade. Por conseguinte, aceito com naturalidade a
ideia de diversidade religiosa. Afinal, muitos caminhos
levam o homem a Deus. A cada um segundo a sua capacidade
intelectual e de discernimento – esse é o meu lema.
Fico imaginando, por fim, quantos pastores e irmãos(ãs)
foram influenciados pelo entendimento momentaneamente
equivocado do meu amigo. Como conceber a ideia de que
Jesus poderia chancelar qualquer ação de violência em
relação à humanidade? Logo ele que foi a mais perfeita
expressão do amor! Que surpresas aguardarão o meu amigo
dentista do lado de lá...