Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 24)
Continuamos o
estudo metódico
e sequencial do
livro Deus na
Natureza,
de autoria de
Camille
Flammarion,
escrito na
segunda metade
do século 19, no
ano de
1867.
Questões preliminares
A. Em que pé estava, no final do século 19, a
controvérsia relativa à tese da geração espontânea?
Intercorrentemente retomada e interrompida, a
controvérsia relativa à geração espontânea ressurgiu
apaixonadamente na época em que esta obra foi escrita
(no final do século 19). Flammarion cita a propósito
dois cientistas respeitáveis – Pouchet e Pasteur –, o
primeiro pró e o segundo contra. Mas o fato é que,
segundo ele, os contendores de ambos os campos não
conseguiam fazer-se entendidos, com o se reprocharem
reciprocamente, e ao mesmo título de legitimidade, de
estarem combatendo no vácuo.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
B. Que opinião expressou Flammarion a respeito do tema
em debate?
Flammarion entendia que, sem prevenções contra ou a
favor, havia um fato no qual não se havia pensado e que
lhe parecia digno de representar um papel nesse drama de
microscopia, ou seja, a vida está universalmente
difundida por toda a Natureza, a Terra é ânfora assaz
exígua para conter a vida, que desborda em qualquer
parte e, não contente de repletar águas e terras,
inorgânica, ela se acumula em si mesma, vive à sua
própria custa, cobre de parasitas animais e plantas,
desdobra florestas no dorso de um elefante e faz, de uma
simples folha verde, o pascigo de rebanhos inumeráveis.
Ora, essa vida múltipla, insaciável, inumerável, povoa
de animálculos cada espécie de seres e de substâncias.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
C. Na controvérsia mencionada o que, no dizer de
Flammarion, mais o impressionou?
O que mais vivamente o impressionou foi a ideia
preconcebida de ambos os lados, aliás, mais de um que do
outro. Pretendia-se encarar de um modo absoluto a
questão, como de natureza teológica, quando a verdade é
que o resultado das experiências em nada afeta a
Teologia. É uma declaração que vai talvez surpreender
alguns leitores, mas, se aprofundarmos o assunto,
haveremos de convir que a pecha de ateísmo lançada em
rosto aos partidários da geração espontânea não cabe aos
que, a exemplo ao Sr. Pouchet, não interpretam
teologicamente tais experiências; e os que assim não
procedem incidem na maior das vanidades, quando concluem
pela inexistência de Deus.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
Texto para leitura
449. Durante o último século (18) e no transcurso do
atual (19), a tese da geração espontânea foi
intercorrentemente retomada e interrompida: retomada a
propósito de novas descobertas microscópicas, e
interrompida quando as experiências atestavam a origem
animal ou vegetal dos germes desabrochados. Na hora
atual a controvérsia ressurge apaixonadamente, tratada
por diversos experimentalistas, à frente dos quais
citaremos Pouchet e Pasteur, o primeiro pró, e o segundo
contra. Mas, ei-la já de novo suspensa e por um motivo
que, diga-se, não deixará de parecer pueril para os
nossos descendentes. É o caso que os contendores de
ambos os campos não conseguem fazer-se entendidos, com o
se reprocharem reciprocamente, e ao mesmo título de
legitimidade, de estar combatendo no vácuo.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
450. As experiências realizadas nestes últimos anos e
que recuaram a questão, sem resolvê-la, podem
comparar-se às precedentes, já pela forma, já pelos
resultados colhidos. Sucintamente, eis aqui uma dessas
experiências:
“Introduzamos num tubo de vidro de paredes muito
delgadas e achatadas – diz o heterogenista Joly – um
pouco d’água, um pouco de ar e alguns fragmentos de
tecido vegeto-celular. Fechemos a fogo a extremidade do
tubo e observemos o que se vai passar. Em primeiro
lugar, veremos formar-se um amálgama de finas
granulações, proveniente, sem dúvida, do tecido vegetal
já em desorganização. Pouco a pouco, nas bordas do
amálgama granuloso, destacar-se-ão pequenas
excrescências de transparência perfeita, mas ainda
inertes. É o bacterium terma em vias de formação.
Esperemos ainda três ou quatro horas e já os animálculos
livres se agitarão visíveis, como se ensaiassem uma
existência; outros virão juntar-se-lhes e bem depressa o
número será tal que não podereis contá-los. Após 6 horas
de observação contínua, vossos olhos recusarão
obedecer-vos, estareis fatigado como aconteceu a
Mantegazza, mas, tanto quanto ele, maravilhado de haver
surpreendido a vida no seu berço.”
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
451. Qual a origem desses seres vivos, articulados peça
a peça sobre essa matéria orgânica, sem filiação de
progenitura? Os adversários respondem que o ar está
povoado por miríades de germes em suspensão e que destes
germes provêm aqueles seres. Antes que o demonstrem, vão
eles ao cume do “Montanvert”, fervem as substâncias
orgânicas e parece que a dita geração espontânea não
mais se produz.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
452. É nisso que se resume o debate. Para nós, sem
prevenções contra ou a favor, pensamos haver um fato no
qual não se há pensado bastante, nem talvez de modo
algum, e que nos parece digno de representar um papel
nesse drama de microscopia. A vida está universalmente
difundida por toda a Natureza, a Terra é ânfora assaz
exígua para conter a vida, que desborda em qualquer
parte e, não contente de repletar águas e terras,
inorgânica, ela se acumula em si mesma, vive à sua
própria custa, cobre de parasitas animais e plantas,
desdobra florestas no dorso de um elefante e faz, de uma
simples folha verde, o pascigo de rebanhos inumeráveis.
Ora, essa vida múltipla, insaciável, inumerável, povoa
de animálculos cada espécie de seres e de substâncias.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
453. Quando, pois, vemos os saltões crescerem no
interior do queijo; vermes aflorarem do cadáver;
infusórios flutuarem num líquido, não se trataria de
animálculos já existentes em germe num estado inferior,
no leite, no animal vivo, no líquido, e que se
metamorfoseiam por influência das condições novas em que
se encontram colocados? Sabemos, porventura, quantas
espécies de vegetais e animais vivem em nosso corpo?
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
454. O ovo da tênia semeia-se em profusão; nos tecidos
do porco e do carneiro ele é o humílimo cisticerco, e só
no intestino começa a desenvolver seus inumeráveis
anéis, vivendo nas duas hospedarias, isto é, no animal e
no homem. Nós o absorvemos na costeleta de porco ou na
fatia de carneiro, e daí por diante ela – a tênis – se
instalará em nossa casa, sem outros cuidados que os de
primeiro inquilino.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
455. As moscas da semente de couve e da farinha fazem
morada em nosso estômago. Em sua maioria, estes
familiares da nossa intimidade são inofensivos, mas
alguns há, pérfidos, que acabam matando o seu benfeitor.
Quem não acompanhou a discussão concernente à
triquinose? Desde a descoberta do microscópio, quantos
parasitas não se hão encontrado em nosso sangue, em
nossa carne, em nosso pulmão; nos dentes, nos olhos, nas
papuas nasais? Nutrimos carnívoros e herbívoros; temos
peixes de água doce a circular em nossas veias, e peixes
de água salgada a nadarem no oceano de nossas artérias.
Há uma espécie de fúcus que vegeta nos pulmões
tuberculosos. As excreções da língua de um febrento
compõe-se de multidão de infusórios.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
456. Um médico célebre, nosso amigo, tem observado
muitas vezes erupções bruscas de milhares de piolhos em
doentes atacados de tifo (a extraordinária prolificidade
desses ápteros bastaria para explicar essa
multiplicação). Os coleópteros não esperam nossa morte
para abandonar o seu domicílio habitual. Imperceptíveis
insetos penetram-nos os pulmões e aí proliferam, de
geração em geração. Já se encontrou no esôfago dos bois
famílias inteiras de sanguessugas, indubitavelmente
engolidas em estado microscópico e lá criando o seu
“habitat”. O estômago do cavalo constitui ambiente
atmosférico insalubre, adequado à vida das ostras.
Quantas espécies não vivem nos seres animados, sem que
estes os percebam, isto sem falarmos dos parasitas
externos, quais a pulga, o piolho. o percevejo, o
sarcopto etc.?
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
457. Disse um filósofo que todas as partes de um ser
vivo são individualmente viventes e que já é ousada
temeridade enxergar nos animais superiores um edifício
celular habitado por multidão inconcebível de animais
elementares. Ora, assim sendo, tudo é vida na Natureza.
Não somente no ar como nas águas, corpúsculos
flutuantes, elementos orgânicos e inorgânicos são
portadores de uma vida invisível, espécies que
experimentam três fases comuns ao mundo dos insetos, a
revelarem-se sob uma ou outra dessas metamorfoses,
conforme as condições térmicas de calor e umidade que as
envolvam.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
458. Encaradas sob este aspecto, as gerações espontâneas
deixariam de ter seu verdadeiro nome, deveriam somente
nos representar uma modalidade da vida universal, que
palpita em cada átomo de matéria. E esta maneira de
prismar a questão é tanto mais fundada quanto cada
espécie surge e se mantém constante, em relação à
substância particular que parece pertencer-lhe. O
infusório do feno não se encontra na sua fervura e o
fermento do vinho não é o mesmo que o do queijo. Mas,
seja como for, o mistério desvendado sob a aparência da
geração espontânea está longe de aclarar-se. Qualquer
dia e certo sem muita delonga, hão de retomar o debate
no ponto em que Láquesis acaba de o encerrar.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
459. Quanto ao mais, no pé em que está a questão, o que
diz com a criação da vida conserva a sua velha
independência, indene das armas da Heterogenia, quanto
da Panspermia. A luta cessou à míngua de recursos.
Atualmente é impossível saber se o ar mais puro, colhido
no cume das montanhas nevadas, não contém germes.
Impossível, igualmente, saber se esses germes não
resistem a temperaturas de mais de cem graus. A nós nos
pareceu que os experimentadores teriam o insucesso (o
que de resto é natural), e não operavam com o rigor que
teriam se fossem estrangeiros ou adversários. De
qualquer forma, porém, o problema continuou insolúvel.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
460. O que mais vivamente impressionou na justa, diz
Flammarion, foi a ideia preconcebida de ambos os lados,
aliás, mais de um que do outro. Pretendia-se encarar de
um modo absoluto a questão, como de natureza teológica,
quando a verdade é que o resultado das experiências em
nada afeta a Teologia. É uma declaração que vai talvez
surpreender alguns leitores. Entretanto, se
aprofundarmos o assunto, haveremos de convir que a pecha
de ateísmo lançada em rosto aos partidários da geração
espontânea não cabe aos que, a exemplo ao Sr. Pouchet,
não interpretam teologicamente tais experiências; e os
que assim não procedem, incidem na maior das vanidades,
quando concluem pela inexistência de Deus[ii].
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
461. Os micrógrafos(*) desacreditaram a sua
causa, fazendo baixar às suas retortas as potências
criadoras. Acreditarão eles que, dado pudesse a matéria
inerte tornar-se semiorganizada, e depois organizada,
sob a influência de tais e quais forças, teriam
suprimido a causa soberana dos domínios da Natureza?
Absolutamente. O que tais experiências inculcam, e eles
em sua maioria ignoram, é o protesto contra o Deus
humano e a elevação do espírito a concepções mais puras
e mais grandiosas, do misterioso Criador.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
462. Será rebaixar a ideia de Deus o considerar o
Universo um como gigantesco desdobramento de uma obra
única, cujas modalidades se manifestam multifárias e
cujos poderes se traduzem em forças particulares,
distintas?
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
463. A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O
plano divino está em que esta substância seja um dia
condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência
hajam de irradiar esplendores. A luz, o calor, a
eletricidade, o magnetismo, a atração, o movimento sob
modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa
substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao
tempo de Pan, timbrava as harpas eólias no âmbito da
noite. Que mão empunha o arco e preludia o mais
magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana
defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da
Criação.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
464. No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis
esplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a
gravitarem harmônicos em suas órbitas, sob a regência da
mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o
primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades
ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram
chegar-lhes, alfim, uma paz desconhecida. Raios de ouro
atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a
atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol
nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois
períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o
berço.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
465. Os astros são jovens, ainda quando miríades de
gestações tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do
seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas
praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, das
galhadas rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos
se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das
florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes
fabulosos dos mares primitivos cruzaram-se no reino
ondulante.
(Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
(*)
Micrógrafo: Aquele que é versado em micrografia:
descrição dos seres ou objetos que só podem ser
observados com o microscópio; emprego do microscópio.
[i] Andaram
mal em deslocar, assim, a questão: o Sr. Pasteur
foi a ponto de, em plena Sorbonne, trovejar as
seguintes acusações: "Que triunfo para o
Materialismo se ele pudesse protestar que se
apoia sobre o fato da Matéria, organizando-se
por si mesma! A Matéria, que já em si e de si
contém todas as forças conhecidas! Ah! se
pudéssemos juntar-lhe ainda essa outra força
chamada vida e a vida variável em suas
manifestações, de conformidade com as nossas
experiências! Que pode haver de mais natural que
a deificação dessa matéria? Para que recorrer à
ideia de uma criação primordial, diante de cujo
mistério é força inclinar-nos?”
O Sr. Pouchet, alarmado com o libelo, replicou
judicioso: “Afivelar a máscara da Religião, para
vencer adversários, é fato insólito e inaudito,
quanto impróprio de cátedras científicas.
Atribuir aos adversários opiniões que eles
sabidamente não possuem é indignidade.” Houve
quem dissesse que era em consequência de uma
ilusão teológica desta espécie que a Academia
recusava a geração espontânea. Corre que há uns
60 anos Cuvier, secretário da Universidade,
interpelado por um tal se acreditava na geração
espontânea, respondeu: – 'O imperador não quer'.
Oh! libertas libertatum!