Deus na Natureza
Camille
Flammarion
(Parte 25)
Continuamos o estudo
metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de
autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade
do século 19, no ano de1867.
Questões preliminares
A. As conclusões de Darwin expostas na obra Origem
das Espécies contrariam a ideia da existência de
Deus?
Claro que não. Segundo um dos tradutores de sua obra,
Darwin afirma que seu sistema em nada contraria a ideia
de divindade. Diz Darwin que um notável autor sacro
contou-lhe haver chegado gradativamente ao convencimento
de que a criação divina das formas simples, originais,
capazes de por si evoluírem e transformarem-se em formas
úteis, era uma concepção mais justa e compatível com a
majestade do Supremo Ser. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
B. Aos que pretendem que a doutrina da geração
espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet, e a da origem
das espécies, exposta por Darwin, destroem a ideia de
Deus, que disseram os sábios citados?
Nem um nem outro admite essa acusação; ao contrário,
protestam ambos contra a ilusão dos nossos adversários.
Nisso, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por
uma falsa miragem. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
C. Darwin acreditava na geração espontânea?
Não. Escreveu ele: “A seleção natural não afeta nenhuma
lei necessária e universal de desenvolvimento e de
progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer
variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou
aos seus representantes”. “Tenho apenas necessidade de
aqui dizer – declarou ele mais além – que a Ciência em
seu estado atual não admite, em geral, que seres vivos,
ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
Texto para leitura
466. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da
vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras
perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a
força orgânica, que hoje se transmite de geração a
geração, tenha aparecido como uma resultante natural e
inevitável das condições fecundas em que se achava a
Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras
células orgânicas diversamente constituídas, formando
tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres,
grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades;
suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e
animais, inclusive a humana, sejam o resultado de
transformações lentas, operadas sob condições
progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como,
pode essa teoria nulificar a necessidade dum criador e
organizador imanente? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
467. Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou
essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa
tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos
elementos materiais a faculdade de produzir ou de
receber a vida? Quem concebeu a arquitetura desses
corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos
quais todos os órgãos tendem a um mesmo fim? Quem
presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na
trama inimitável dos tecidos, dos arcabouços, dos
mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas
as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos
os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no
cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é
uma força da mesma natureza das forças moleculares,
insistamos no perguntar: – quem é o seu autor? Seria por
não haver esse autor fabricado tudo com as próprias
mãos, que haveríeis de o negar?(Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
468. De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever
letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à
Livraria Acadêmica, que a confiou a um tipógrafo; o
qual, por sua vez, entregou-a ao paginador, que, por sua
vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e
depois, ainda me obrigou a corrigir provas – sem
falarmos na escolha do papel, do formato, número de
páginas, encadernação, tudo enfim que representa a
fatura de um livro; – supondes, repito, que, depois de
haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu
de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo
para que o plano instantaneamente se completasse? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
469. Acreditais que, por haver simplesmente coordenado
certas regras, em virtude das quais a ideia expressa em
tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, atuados
sob a minha vigilância constante – se materializou em
parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro,
me tenha destituído de legítima autoria desta obra? Por
mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só
com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia
Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum
pândego de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que
meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à
vontade e não deixaria de interessar-me por um tão
precioso privilégio. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
470. Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da
Natureza e o meu, e creio que faria coisa assim como
comparar uma boneca mecânica à Vênus de Milus, viva, ou,
então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno
pelo califa Haron-al-Raschid, ao mecanismo do sistema
universal. Todavia, não sereis vós quem há de elevar meu
trabalho às alturas da Criação natural. Se a bonequinha
mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a
Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a
que se reduz a negação dos que recusam identificar um
arquiteto na sublimada harmonia do edifício cósmico? (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
471. Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário,
imaginado em torno da ação sensível do Criador e
mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a
ideia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com
singular sutileza. Essa propriedade particular da ideia
do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso
arrazoado! (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
472. Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um
teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e
manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista
eminente com as pretendidas consequências da sua teoria
da seleção natural. De resto, o tradutor feminino da
obra teve o cuidado de nos advertir que “em vão,
protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário
à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima
satisfação que aqui juntamos às nossas convicções
pessoais as do autor da Origem das Espécies:
“Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra
melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que
seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas
impressões, basta lembrar que a maior das descobertas
humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo
próprio Leibnitz como subversiva da religião natural.
Notável autor sacro escreveu-me, em tempo, ter chegado
gradativamente a convencer-se de que a criação divina
das formas simples, originais, capazes de por si
evoluírem e transformarem-se em formas úteis, era
concepção mais justa e compatível com a majestade do
Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo
ato criador, a fim de encher os vácuos causados pelo
funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes
mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da
criação independente de cada espécie. A meu ver, o que
conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador,
está mais de acordo com a formação e extinção dos seres
presentes e passados por causas secundárias, semelhantes
às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos.
Quando encaro todos os seres não como criações
especiais, mas como descendentes em linha direta de
seres que viveram anteriormente aos depósitos do sistema
siluriano, eles me parecem enobrecidos.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
473. Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:
“Que interesse nos desperta o espetáculo de uma praia
coberta de vegetação, pássaros cantando, insetos
voejando, anelídeos ou larvas rastejando no solo úmido,
ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto
cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de
outras por uma série de relações complicadas, foram
todas produzidas por leis de uma contínua atividade em
torno de nós! Essas leis, tomadas em seu mais lato
sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e
reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas
precedentes; de variabilidade sob a ação direta ou
indireta das condições exteriores da vida, e do uso ou
da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das
espécies em sentido geométrico, a produzir a
concorrência vital e a eleição natural e, daí, a
divergência de caracteres e extinção das formas
específicas.
“É assim que, da guerra natural, da fome e da morte,
resulta o mais admirável dos efeitos que possamos
conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No
encarar a vida e suas potências animando originariamente
algumas ou uma única forma simples, ao influxo do
Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu
descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as
leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez
mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se
desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”[i]. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
474. Declarações interessantes que importa registrar,
para opô-las aos nossos materialistas. Pretendem estes
que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo
Sr. Pouchet, e a da origem das espécies, amparada pelo
Sr. Darwin, destroem, ambas, a ideia de Deus, e eis que
nem um nem outro admite essa acusação e protestam ambos
contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois,
como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa
miragem. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
475. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e
valioso fato. Em primeiro lugar, os materialistas não
têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para
concluir pela não existência de Deus: 1º - porque essa
geração não está provada, e 2º - porque, se o estivera,
não acarretaria uma tal consequência. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
476. Em segundo lugar, não têm o direito de afeiçoar ao
seu ponto de vista o sistema do transformismo das
espécies, já porque tal sistema não está provado, e já
porque ele não afeta a questão dominante das origens da
vida. Se estivesse provado que os vegetais e animais
inferiores são formados por geração espontânea, no âmago
da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades
para crer que assim sucedesse, e com mais forte razão,
com a origem das espécies. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
477. Os partidários das transformações específicas
chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações
espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de
inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das
espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso,
admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda
hoje se verifica nesses extremos. Era a opinião de
Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento atual
não compartilha tais ideias e nem mesmo acredita na
geração espontânea. “A seleção natural – diz Darwin –
não afeta nenhuma lei necessária e universal de
desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de
toda e qualquer variação que se apresenta, quando
vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho
apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais além
– que a Ciência em seu estado atual não admite, em
geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio
da matéria inorgânica.” (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
478. Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os
experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós
combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se
dos estudos científicos daqueles, querem, a toda força,
tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas.
Temos o dever de desmascarar-lhes o jogo e demonstrar
com a confissão dos próprios experimentadores ilustres
que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a
exibi-los de público, assentados no seu palco teatral,
não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura
ilusão de ótica. (Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
479. Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Fremy,
que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos
dois reinos (corpos a que chamou semiorganizados) e foi
por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como
porta-bandeira do materialismo para a hipótese da
geração espontânea. Pois vejamos o que disse este
químico no Instituto:
“Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia de
geração espontânea, tomada no sentido de produção de um
ser organizado, por mais simples que seja, com elementos
que não possuem a força vital. A síntese química
permite, sem dúvida, reproduzir grande número de
princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a
organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível
às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios
imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há
substâncias outras menos estáveis que as precedentes,
mas também muito mais complexas quanto à sua
constituição e que podem ser designadas sob o título
genérico de corpos semiorganizados.
“Esses corpos apresentam-se em conexão com a
organização, com a formação dos tecidos, com a produção
dos fermentos e a putrefação, quase no mesmo estado da
semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar
sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às
influências do ar, do calor e da umidade.
“Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em
estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas
também podem sair desse estado à custa da própria
substância, sob os elementos de organização, desde que
as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”(Deus
na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos
Seres.)
[i] Da
Origem das Espécies. Últimas notas.