Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 28)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Por que as mudanças determinadas pela seleção das espécies não são geralmente percebidas?

Diz Darwin que isso se dá porque a seleção natural opera a passos lentos e curtos. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo, e a soma das mudanças efetuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. Essa ordem de ideias tem o apoio do testemunho geológico. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

B. Todo o reino animal descende apenas de quatro ou cinco tipos primitivos?

Sim. Pelo menos esse era o pensamento de Darwin, que pensava que o reino vegetal descenderia de um número igual ou mesmo inferior. A analogia  levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único. A analogia pode ser, porém, um guia enganador. A verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados por influências nocivas. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

C. Que diz Flammarion a respeito da hipótese que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropoide?

Ele entende que tal hipótese não é imoral nem antiespiritualística. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilidade ao Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. A Ciência – diz Flammarion – deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)


Texto para leitura


516. Segundo Darwin, um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que haja de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os que mais concorrem entre si em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela o é quase tanto entre as variedades da mesma espécie, e grave, ainda, entre as espécies do mesmo gênero. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender a concha da balança. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

517. Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com melhor êxito contra as condições físicas ambientes hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou de sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

518. Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo em suas relações vitais possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, por que deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis de existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver limite algum a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

519. Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de seleção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie. Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que caracterizam espécies do mesmo gênero. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

520. Alguém pode objetar que ao presente ninguém percebe tais mudanças. O teórico responde, porém, que, operando a seleção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie houvera sido independentemente criada. O testemunho geológico apoia a teoria da descendência modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo, e a soma das mudanças efetuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de seleção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regulares. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

521. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida houvessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O caráter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande fato constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos atuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o parentesco e a descendência original. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

522. O autor invoca também em seu apoio a importância única dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxílio dos caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital. Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros fatos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

523. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes nos primitivos antepassados de cada classe. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

524. A falta de exercício, às vezes auxiliada pela seleção natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil. Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

525. Pode-se, enfim, perguntar até onde se estende a doutrina da modificação das espécies. Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

526. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos, e o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior. A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único; mas que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afetados por influências nocivas. Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos atuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte que cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

527. Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, a ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

528. Assim, partindo do princípio da seleção natural com divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal consequência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa seja ou não aceita. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como articulados, vertebrados etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única[i]. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

529. Tal, como vimos nos itens precedentes, a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

530. Se a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitavelmente, nossa dignidade sente-se ofendida diante da só possibilidade dessa; mas, se observarmos a Natureza, sem ideias preconcebidas, não parece que façamos exceção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

531. Pelo que nos toca, jamais dedicamos algumas horas ao estudo da Embriologia, que não ficássemos assaz impressionados com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

532. Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de surpreender-se com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo? (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

533. Não se ousa encarar essa origem e, sem embargo, a questão é assaz importante para merecer um esto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuará mostrando-nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criação. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)

534. A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropoide, não é imoral nem antiespiritualística. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilidade ao Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreendemos como sábios dignos desse nome possam afagar o prazer pueril de fazer fosquinhas ao Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé. (Deus na Natureza – Segunda Parte. A Vida. A Origem dos Seres.)


 

[i]   O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorista a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal único. “Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar subsistisse um? Se um tal indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz universal, em uma de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe houvessem estes desabrochado do seio? Todas as analogias levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células germinativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se formassem sucessivamente todos os organismos.

Se se admitir a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente no princípio vital repousando em estado latente em cada germe.

As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares ao nosso planeta, ao mesmo passo que começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. À medida que as raças se houvessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse diminuir seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de cepas primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito de inferioridade orgânica relativa.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita