Paixões espirituais e
paixões humanas
Kardec definiu paixão, no comentário à questão
908 de O Livro dos Espíritos, como o exagero
de uma necessidade ou de um sentimento,
acrescentando que ela se encontra no excesso e não na
causa e este excesso se torna um mal, quando tem como
consequência um mal qualquer. Embora se admitam boas
paixões, via de regra, nos focamos nas más, sendo elas,
muitas vezes, responsáveis por nossas más inclinações e
os deslizes morais relacionados a nós.
O pensamento kardequiano propõe que as paixões más são
de duas ordens: as humanas e as espirituais. Como
veremos a seguir, as paixões humanas decorrem da
influência do corpo e, portanto, são inerentes à
corporeidade, enquanto as paixões espirituais acompanham
o Espírito onde ele se encontre, pois são ínsitas a ele
mesmo. Kardec apresenta essa ideia em
O Livro dos Espíritos,
item 605-a, ao afirmar que as paixões humanas têm duas
fontes diversas: algumas paixões (que Kardec denominou
no item 971-a de paixões materiais)
derivam dos instintos da natureza animal,
enquanto as outras (que poderiam ser denominadas de
paixões espirituais) decorrem das impurezas do
Espírito encarnado. No item 611, Kardec retoma o
assunto e afirma que de animal só há no homem o corpo
e as paixões que nascem da influência do corpo e do
instinto de conservação inerente à matéria.
Segundo o texto, as paixões materiais decorrem
dos instintos da natureza animal. Instinto é algo que
vem pronto, acabado, que não é construído e nem
escolhido, ou seja, um impulso automático, como o
instinto de defesa, o instinto reprodutivo etc.
Natureza, por sua vez, é algo que não é produto do
homem, que o homem já encontra pronto, portanto,
refere-se ao corpo, à biologia, aos genes. Assim,
podemos considerar como paixões materiais aquelas que
nascem da influência do corpo e do instinto de
conservação inerente à matéria. Os estudos relacionados
à Genética do comportamento têm considerado como traços
humanos com importante componente hereditário, portanto
biológico, condições como a gula, o vício do cigarro, do
álcool, das drogas e do jogo. Talvez essas inclinações
se identifiquem com o conceito kardequiano de paixões
materiais.
Na tradição evangélica, tal conceito foi expresso por
Jesus, ao afirmar que a carne é fraca (Mateus
26:4) e Paulo ao colocar que a carne milita contra o
Espírito (Gálatas 5:17). Kardec é também
explícito neste texto da Revista espírita
de janeiro de 1866: o Espírito encarnado
sofrendo a influência do organismo, seu caráter se
modifica segundo as circunstâncias e se dobra às
necessidades que lhe impõe esse mesmo organismo.
As paixões espirituais, por sua vez, decorrem das
impurezas do Espírito, portanto, são fragilidades
inerentes à própria individualidade. Elas não dependem
de uma organização específica para se manifestar.
Paixões pelo poder ou pela necessidade perturbadora do
sucesso talvez sejam bons exemplos de paixões
espirituais, pois têm suas raízes no egoísmo, no
orgulho, na inveja, no ciúme e na vaidade, acompanhando
o Espírito por toda a parte e sendo superadas
paulatinamente com o progresso moral.
A classificação das paixões em humanas e
espirituais é evidente também no diálogo de Kardec
com o Espírito São Luís, na Revista espírita, fevereiro
de 1859, ao ser examinada a questão dos Espíritos que
tomam a forma humana, denominados de agêneres. Kardec
pergunta: Os Espíritos têm paixões? São Luiz
responde: Sim; como Espíritos, têm as paixões dos
Espíritos, conforme sua inferioridade. Se algumas vezes
tomam um corpo aparente é para fruir as paixões humanas;
se são elevados, é com um fim útil que o fazem.
Mas sendo assim, como entender a situação de Espíritos
desencarnados que relatam determinadas sensações que
parecem evocar paixões terrenas? Muitos se queixam de
fome e sede, tormentos sexuais, ou se ligam a indivíduos
viciados em tóxicos ou jogo, como que se “absorvessem”
energias liberadas pela experiência do vício. Tais
relatos devem ser categorizados como crença pessoal,
e não como necessidade real. São entidades que viveram
intensamente os prazeres da corporeidade e conservam
fortemente certas impressões terrenas. Kardec comenta
que, após a partida da Terra, principalmente para os que
tiveram paixões muito intensas, uma espécie de atmosfera
os acompanha, e que o Espírito desligado do corpo se
ressente, durante algum tempo, da impressão dos laços
que os uniam (LE, item 378). Acrescenta Kardec que os
Espíritos conhecem os sofrimentos físicos, porque os
sofreram, passaram por eles; mas não os sentem como nós,
materialmente, porque são Espíritos (LE, item 253). E
afirma ainda que a lembrança do que tinham sofrido
durante a vida é muitas vezes mais aflitiva que a
realidade. É, frequentemente, uma comparação com que, na
falta de coisa melhor, exprimem sua situação. Quando se
lembram do seu corpo, experimentam uma espécie de
impressão, como quando se tira um casaco e se tem a
sensação, por um tempo, que ainda se está vestido. (LE,
item 256)
Embora nos pareça doutrinariamente relevante a
classificação didática proposta por Kardec, do ponto de
vista prático, não deve possuir tanta importância assim.
Identificando em nós inclinações más, sejam elas
decorrentes ou não da corporeidade, compete-nos lutar
contra elas, cientes de que a experiência encarnatória é
sempre de crescimento e que o Espírito, em qualquer
circunstância, é o gerente de suas próprias decisões,
podendo superar suas tendências ruins através do
autocontrole e do esforço pessoal.