A. Sem considerar as células constituintes do
encéfalo, é correto dizer que o corpo humano se
renova ao longo da vida?
Sim. Os fatos gerais indicam que o corpo renova
a maior parte de substância num período de vinte
a trinta dias. Segundo alguns, a renovação total
ocorreria em 22 dias. Liebig dizia que tal se
daria em 25 dias, considerando as permutas de
outra maneira, pela combustão do sangue. Por
surpreendente que possa parecer essa rapidez, as
observações concordam em todos os pontos. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
B. No tocante ao império do organismo sobre a
atividade mental, que argumento apresentam os
materialistas?
Um dos partidários do materialismo argumentava
que a observação feita com os trepanados
demonstrou que certos anos ou fases da
existência se lhes apagava da memória devido à
perda de quaisquer partes do cérebro. E mais:
que a velhice acarreta a perda quase total da
memória. O argumento, que ainda hoje é utilizado
pelos que negam a existência da alma, é
mencionado pelo autor desta obra. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
C. Como Flammarion respondeu a esse argumento?
Ele diz que tal argumentação, apoiada em fatos
anormais, constituía mera fuga à discussão da
questão central: a estabilidade das funções
mentais apesar da renovação continuada do corpo
físico. Para ele, era ponto pacífico a
independência entre corpo e alma. Mas, se o
cérebro sofre uma lesão, a alma não pode exercer
na plenitude suas funções, da mesma maneira que
um pianista não pode executar a contento uma
peça musical em um piano desafinado ou com
defeito.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A
Alma. A Personalidade Humana.)
Texto para leitura
674. Falando a rigor, o homem corporal não fica
dois instantes idêntico a si mesmo. Os glóbulos
sanguíneos que circulam em meus dedos, enquanto
escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me
trabalha no cérebro ao pensar esta frase, já me
não pertencerão quando estas páginas forem
impressas e, talvez, no momento de as lerdes,
façam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
675. Como estas interessantes observações se
devem aos próprios campeões do materialismo, a
eles, que não a outrem, compete interpretá-las
em apoio de sua teoria, caso essa interpretação
não lhes requeira um esforço muito exagerado. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
676. Vejamos:
“O sangue rejeita constantemente suas partes
constitutivas aos órgãos do corpo, na qualidade
de elementos histogênicos. A atividade dos
tecidos decompõe esses elementos em ácido
carbônico, ureia e água. Tecidos e sangue
sofrem, na marcha regular da vida, um
desperdício de substância só compensado na
provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias
opera-se com uma rapidez notável. Os fatos
gerais indicam que o corpo renova a maior parte
de substância num período de vinte a trinta
dias. O coronel Lann, por meio de várias
pesagens, encontrou uma perda média de 22% de
seu peso, em 24 horas. A renovação total
exigiria, portanto, 22 dias. Liebig deduziu uma
rapidez de 25 dias, considerando as permutas de
outra maneira, pela combustão do sangue. Por
surpreendente que possa parecer esta rapidez, as
observações concordam em todos os pontos”[i]. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
677. Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns
tantos fatos de ordem social, chega-se a provar
que a união matrimonial deixa de ser um
sacramento eficaz, visto que ao cabo de um mês
as duas criaturas, que acreditaram formar liames
eternos, estão corporal e espiritualmente
transformadas.(Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
678. Contrariando, porém, tais pretensões, noto
que meu ser pensante, minha pessoa, meu ego, é o
mesmo de há cinco, dez, vinte, quarenta anos.
Com efeito, essas teorias não nos parecem nem
mais nem menos que absurdas, diante do fato
eloquente da identidade do espírito. Podemos
conciliar umas e outro? Podemos pretender que
uma secreção de substâncias que apenas transitam
pelo organismo possa gozar dessa faculdade?
Alguém ousaria avançar que, considerando o
pensamento como atributo de uma associação de
moléculas de gordura fosforada, albumina,
colesterina, potassa e água[ii] –
moléculas trazidas a esse laboratório pela
nutrição e respiração, variáveis, em contínuo
movimento, semelhantes a soldados de todas as
nações, que chegam ao mesmo campo, armam tendas
e seguem adiante para serem logo substituídos
por outros? Ousaria alguém, repito, avançar que
um tal sistema pode explicar a identidade, a
permanência do pensamento? (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
679. Um dos partidários do materialismo[iii] responde
de passagem que a observação feita com os
trepanados demonstrou que certos anos ou fases
da existência se lhes apagava da memória devido
à perda de quaisquer partes do cérebro.
Acrescenta mais que a velhice acarreta a perda
quase total da memória. Sem dúvida, diz, as
substâncias cerebrais mudam, mas o modo de sua
composição deve ser permanente e determinante do
modo da consciência individual. Depois, confessa
que “os processos interiores são
inexplicáveis”. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
680. Ora pois! eis aí uma confissão que compensa
tudo. Essas pretensas explicações apoiadas em
fatos anormais são as únicas que se permitem dar
ao grande fato por nós assinalado. Lacuna
sensível, e visto que a sua maior ambição é
remover todos os tropeços e nada abafar em
silêncio – censura que irrogam aos seus
adversários – seria interessante, a bem mesmo do
seu renome, a não mais deixar de explicar física
ou quimicamente como a renovação dos átomos pode
ter a propriedade de engendrar um ser pensante e
consciente da permanência de sua identidade.(Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
681. A primeira de suas explicações consiste em
dizer que, se as moléculas do corpo estão em
perfeita circulação, o mesmo não se dá com a
forma individual. Nossos traços ficam gravados
no semblante, os olhos conservam a mesma cor, os
cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu
tipo fundamental. Quantos tiveram ensejo de
reivindicar à glória militar uma cicatriz
qualquer, guardam-lhe a marca, não obstante a
renovação dos tecidos. Tal o fato geral da
permanência e caráter fisionômico individual. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
682. Podem os adversários pretender que, assim
sendo com o corpo, impossível não seja a
identidade do espírito, como resultante de
fenômenos materiais. Ora, aí justamente é que
está o erro:
1º - Não se pode provar que a constância dos
traços seja o resultado de simples fenômenos de
assimilação e desassimilação, e da modificação
incessante da substância;
2º - Ainda mesmo que assim fosse, não existiria
nisso senão uma identidade de forma, aparente,
conservada pelas moléculas sucessivas e não
identidade fundamental, um ser substancial que
fica;
3º - A alma não é uma sucessão de pensamentos,
uma série de manifestações mentais e, sim, um
ser pessoal com a consciência de sua
permanência. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
683. Por consequência, a diferença que separa da
nossa a hipótese materialista, consiste
simplesmente em observar que nada se explica
pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se
explica. Como se vê, uma diferença
insignificante. (Deus na Natureza – Terceira
Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
684. Dir-se-á que os átomos materiais, em se
substituindo, seguem precisamente a mesma
direção dos precedentes, entrosados no mesmo
turbilhão, como sentinelas militares
transmitindo-se a senha e que, se o pensamento é
apenas uma série de vibrações, são estas mesmas
vibrações a se perpetuarem, ainda que mude a
substância dos círculos vibrantes. (Deus na
Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
685. Mas uma tal pretensão é duplamente
insignificante, atento a que não explica melhor
que as primeiras a identidade do eu e
tende a arrastar-nos ao ocultismo, arvorando o
corpo em locutório de moleculazinhas capazes de
se entenderem e concordarem, mau grado à
tagarelice e leviandade peculiares ao sexo. (Deus
na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A
Personalidade Humana.)
686. Pode-se ainda dizer que, se o cérebro muda
pouco a pouco, o mesmo sucede com o nosso
caráter, tendências, o próprio espírito. Mas, se
de um lado considerarmos a substância
constitutiva do cérebro num dado momento,
teremos que, semanas ou meses depois (não
importa o prazo), a metade dessa substância, por
exemplo, estará mudada e não haverá, portanto,
senão outra metade substancial da considerada
num dado momento. Depois, um meio quarto, e
assim por diante. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
687. Desse modo, nesta hipótese, estaríamos
mudados em duas, três, quatro partes, até que
nada restasse da personalidade primitiva. Ora,
quem não vê, quem não sente, que se não guardam
de tal arte fragmentos de alma, e que esta é
una, simples, indivisível e idêntica a si mesma
em qualquer período de sua duração? A
permanência do euressalta, ainda uma vez,
vitoriosa dessa mixórdia. (Deus na Natureza –
Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)
688. Avançarão, enfim, que há no cérebro um
lugar qualquer, um santuário em cujo ádito
fique, isenta das leis gerais, uma molécula
imutável, permanente, privilegiada entre as
demais, dotada de integridade inatacável, e que
essa tal molécula é o centro dos pensamentos e o
que constitui a identidade pessoal? Mas tal
suposição é, não apenas arbitrária e balda de
sentido, mas também contrária à observação
científica e à índole do método positivo. De
resto, nenhum dos adversários se decide a lhe
assumir a responsabilidade.(Deus na Natureza
– Terceira Parte. A Alma. A Personalidade
Humana.) (1)
(1) É
importante lembrar que, mais de um século
depois, persistem ainda as discussões sobre a
capacidade de renovação dos neurônios cerebrais,
como salientam teses e estudos inúmeros, a
exemplo do artigo “Os danos ao cérebro são
irreversíveis?”, publicado em 29/8/2014, que o
leitor pode ler clicando neste link: https://goo.gl/mma2dH
[i]
Jac Moleschott – La Cireulation de la
Via, t. 1º, páginas 169, 170 e 172.
[ii]
Moleschott, 2º, 149.
[iii]
Büchner – Força e Matéria.