Clássicos
do Espiritismo

por Angélica Reis

 

Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 37)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. Sem considerar as células constituintes do encéfalo, é correto dizer que o corpo humano se renova ao longo da vida?

Sim. Os fatos gerais indicam que o corpo renova a maior parte de substância num período de vinte a trinta dias. Segundo alguns, a renovação total ocorreria em 22 dias. Liebig dizia que tal se daria em 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão do sangue. Por surpreendente que possa parecer essa rapidez, as observações concordam em todos os pontos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

B. No tocante ao império do organismo sobre a atividade mental, que argumento apresentam os materialistas?

Um dos partidários do materialismo argumentava que a observação feita com os trepanados demonstrou que certos anos ou fases da existência se lhes apagava da memória devido à perda de quaisquer partes do cérebro. E mais: que a velhice acarreta a perda quase total da memória. O argumento, que ainda hoje é utilizado pelos que negam a existência da alma, é mencionado pelo autor desta obra. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

C. Como Flammarion respondeu a esse argumento?

Ele diz que tal argumentação, apoiada em fatos anormais, constituía mera fuga à discussão da questão central: a estabilidade das funções mentais apesar da renovação continuada do corpo físico. Para ele, era ponto pacífico a independência entre corpo e alma. Mas, se o cérebro sofre uma lesão, a alma não pode exercer na plenitude suas funções, da mesma maneira que um pianista não pode executar a contento uma peça musical em um piano desafinado ou com defeito.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)


Texto para leitura


674. Falando a rigor, o homem corporal não fica dois instantes idêntico a si mesmo. Os glóbulos sanguíneos que circulam em meus dedos, enquanto escrevo estas linhas, o fósforo mágico que me trabalha no cérebro ao pensar esta frase, já me não pertencerão quando estas páginas forem impressas e, talvez, no momento de as lerdes, façam parte dos vossos olhos ou da vossa fronte. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

675. Como estas interessantes observações se devem aos próprios campeões do materialismo, a eles, que não a outrem, compete interpretá-las em apoio de sua teoria, caso essa interpretação não lhes requeira um esforço muito exagerado. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

676. Vejamos:

“O sangue rejeita constantemente suas partes constitutivas aos órgãos do corpo, na qualidade de elementos histogênicos. A atividade dos tecidos decompõe esses elementos em ácido carbônico, ureia e água. Tecidos e sangue sofrem, na marcha regular da vida, um desperdício de substância só compensado na provisão dos alimentos. Essa permuta de matérias opera-se com uma rapidez notável. Os fatos gerais indicam que o corpo renova a maior parte de substância num período de vinte a trinta dias. O coronel Lann, por meio de várias pesagens, encontrou uma perda média de 22% de seu peso, em 24 horas. A renovação total exigiria, portanto, 22 dias. Liebig deduziu uma rapidez de 25 dias, considerando as permutas de outra maneira, pela combustão do sangue. Por surpreendente que possa parecer esta rapidez, as observações concordam em todos os pontos”[i]. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

677. Em se aplicando essa engenhosa teoria a uns tantos fatos de ordem social, chega-se a provar que a união matrimonial deixa de ser um sacramento eficaz, visto que ao cabo de um mês as duas criaturas, que acreditaram formar liames eternos, estão corporal e espiritualmente transformadas.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

678. Contrariando, porém, tais pretensões, noto que meu ser pensante, minha pessoa, meu ego, é o mesmo de há cinco, dez, vinte, quarenta anos. Com efeito, essas teorias não nos parecem nem mais nem menos que absurdas, diante do fato eloquente da identidade do espírito. Podemos conciliar umas e outro? Podemos pretender que uma secreção de substâncias que apenas transitam pelo organismo possa gozar dessa faculdade? Alguém ousaria avançar que, considerando o pensamento como atributo de uma associação de moléculas de gordura fosforada, albumina, colesterina, potassa e água[ii] – moléculas trazidas a esse laboratório pela nutrição e respiração, variáveis, em contínuo movimento, semelhantes a soldados de todas as nações, que chegam ao mesmo campo, armam tendas e seguem adiante para serem logo substituídos por outros? Ousaria alguém, repito, avançar que um tal sistema pode explicar a identidade, a permanência do pensamento? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

679. Um dos partidários do materialismo[iii] responde de passagem que a observação feita com os trepanados demonstrou que certos anos ou fases da existência se lhes apagava da memória devido à perda de quaisquer partes do cérebro. Acrescenta mais que a velhice acarreta a perda quase total da memória. Sem dúvida, diz, as substâncias cerebrais mudam, mas o modo de sua composição deve ser permanente e determinante do modo da consciência individual. Depois, confessa que “os processos interiores são inexplicáveis”. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

680. Ora pois! eis aí uma confissão que compensa tudo. Essas pretensas explicações apoiadas em fatos anormais são as únicas que se permitem dar ao grande fato por nós assinalado. Lacuna sensível, e visto que a sua maior ambição é remover todos os tropeços e nada abafar em silêncio – censura que irrogam aos seus adversários – seria interessante, a bem mesmo do seu renome, a não mais deixar de explicar física ou quimicamente como a renovação dos átomos pode ter a propriedade de engendrar um ser pensante e consciente da permanência de sua identidade.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

681. A primeira de suas explicações consiste em dizer que, se as moléculas do corpo estão em perfeita circulação, o mesmo não se dá com a forma individual. Nossos traços ficam gravados no semblante, os olhos conservam a mesma cor, os cabelos a mesma natureza, a fisionomia o seu tipo fundamental. Quantos tiveram ensejo de reivindicar à glória militar uma cicatriz qualquer, guardam-lhe a marca, não obstante a renovação dos tecidos. Tal o fato geral da permanência e caráter fisionômico individual. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

682. Podem os adversários pretender que, assim sendo com o corpo, impossível não seja a identidade do espírito, como resultante de fenômenos materiais. Ora, aí justamente é que está o erro:

1º - Não se pode provar que a constância dos traços seja o resultado de simples fenômenos de assimilação e desassimilação, e da modificação incessante da substância;

2º - Ainda mesmo que assim fosse, não existiria nisso senão uma identidade de forma, aparente, conservada pelas moléculas sucessivas e não identidade fundamental, um ser substancial que fica;

3º - A alma não é uma sucessão de pensamentos, uma série de manifestações mentais e, sim, um ser pessoal com a consciência de sua permanência. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

683. Por consequência, a diferença que separa da nossa a hipótese materialista, consiste simplesmente em observar que nada se explica pela primeira, ao passo que pela nossa tudo se explica. Como se vê, uma diferença insignificante. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

684. Dir-se-á que os átomos materiais, em se substituindo, seguem precisamente a mesma direção dos precedentes, entrosados no mesmo turbilhão, como sentinelas militares transmitindo-se a senha e que, se o pensamento é apenas uma série de vibrações, são estas mesmas vibrações a se perpetuarem, ainda que mude a substância dos círculos vibrantes. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

685. Mas uma tal pretensão é duplamente insignificante, atento a que não explica melhor que as primeiras a identidade do eu e tende a arrastar-nos ao ocultismo, arvorando o corpo em locutório de moleculazinhas capazes de se entenderem e concordarem, mau grado à tagarelice e leviandade peculiares ao sexo. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

686. Pode-se ainda dizer que, se o cérebro muda pouco a pouco, o mesmo sucede com o nosso caráter, tendências, o próprio espírito. Mas, se de um lado considerarmos a substância constitutiva do cérebro num dado momento, teremos que, semanas ou meses depois (não importa o prazo), a metade dessa substância, por exemplo, estará mudada e não haverá, portanto, senão outra metade substancial da considerada num dado momento. Depois, um meio quarto, e assim por diante. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

687. Desse modo, nesta hipótese, estaríamos mudados em duas, três, quatro partes, até que nada restasse da personalidade primitiva. Ora, quem não vê, quem não sente, que se não guardam de tal arte fragmentos de alma, e que esta é una, simples, indivisível e idêntica a si mesma em qualquer período de sua duração? A permanência do euressalta, ainda uma vez, vitoriosa dessa mixórdia. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.)

688. Avançarão, enfim, que há no cérebro um lugar qualquer, um santuário em cujo ádito fique, isenta das leis gerais, uma molécula imutável, permanente, privilegiada entre as demais, dotada de integridade inatacável, e que essa tal molécula é o centro dos pensamentos e o que constitui a identidade pessoal? Mas tal suposição é, não apenas arbitrária e balda de sentido, mas também contrária à observação científica e à índole do método positivo. De resto, nenhum dos adversários se decide a lhe assumir a responsabilidade.(Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Personalidade Humana.) (1)

 

(1) É importante lembrar que, mais de um século depois, persistem ainda as discussões sobre a capacidade de renovação dos neurônios cerebrais, como salientam teses e estudos inúmeros, a exemplo do artigo “Os danos ao cérebro são irreversíveis?”, publicado em 29/8/2014, que o leitor pode ler clicando neste link: https://goo.gl/mma2dH


 

[i]     Jac Moleschott – La Cireulation de la Via, t. 1º, páginas 169, 170 e 172.

[ii]    Moleschott, 2º, 149.

[iii]   Büchner – Força e Matéria.

 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita