Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 40)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Diz Flammarion que grande número dos homens que mais se distinguiram na Ciência nasceram em condições sociais adversas. Há exemplos disso?

Sim. Nesta obra ele cita inúmeros exemplos, como Képler, filho de um taberneiro e caixeiro de taverna, atormentado sempre com a sua miséria pecuniária; d’Alembert, enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro nas escadas de uma igreja, certa noite invernosa; e Laplace, filho de um pobre campônio de Beaumont, perto de Honfleur. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Qual é o segredo que leva uma pessoa a adquirir o saber e a experiência que, reunidos, produzem a sabedoria?

Não existe segredo algum. É somente pelo exercício autônomo de suas faculdades que uma criatura pode consegui-lo. Franklin dizia que é tão pueril esperar a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto contar com uma colheita em terreno sem lavrá-lo e semeá-lo. Dois irmãos, provindos do mesmo casal, podem receber a mesma educação, ter a mesma liberdade de ação, viverem juntos, nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedirá que um se torne ilustre e outro fique na mediocridade. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Riqueza e bem-estar são indispensáveis ao desenvolvimento das altas faculdades humanas?

Claro que não. Se assim fosse, não haveria no mundo, e de todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais ínfimas camadas sociais. Longe de ser um mal, a pobreza, quando provida de energia e iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, de vez que faz sentir ao homem a necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-estar a preços degradantes, também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


734. Num belo livro, cujo título exótico não é bastante claro nem cativante, mas que deveria andar em mãos de toda a mocidade francesa (Self-Help, ou Caráter), um homem honrado, que é Samuel Smiles, reuniu exemplos desses vultos valorosos que venceram todos os percalços na vida e foram, por assim dizer, a refutação viva desta singular teoria, que tende a rebaixar o homem, em vez de o elevar. É por exemplos tais que a alma se eleva para a verdade do seu ideal. Julgamos de nosso dever homenagear aqui esse panteão de beneméritos exemplares, cujo panegírico deveria ser espalhado aos quatro ventos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

735. Os fatos a seguir, de ordem geral ou particular, e as considerações que eles sugerem, oferecemo-los aos que repetem com Moleschott, Büchner e seu rancho, que o homem segue seus pendores e a reflexão nada vale à face das inclinações e tendências, sejam naturais ou adquiridas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

736. Sábios, literatos, artistas, todos quantos se votam ao apostolado das mais transcendentes verdades e todos quantos se enobreceram pelas virtudes do coração, jamais saíram privativamente de uma classe ou de uma carreira da hierarquia social. Ao contrário, saíram indiferentemente da oficina, como da lavoura, da cabana, como do palácio. E os mais humildes atingiram, por vezes, os postos mais culminantes, vencendo dificuldades aparentemente insuperáveis. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

737. Grande número dos que mais se distinguiram na Ciência nasceram em condições sociais havidas como incapazes de proporcionar talentos, particularmente científicos. Em lugar das combinações químicas do hidrogênio e fósforo, em vez dos efeitos da eletricidade dos nervos, apresentamos estes grandes caracteres que, do fundo das camadas sociais mais obscuras, se elevaram aos pináculos da Ciência, a saber: Copérnico, filho de um padeiro polonês; Galileu, perseguido por amor à verdade; Képler, filho de um taberneiro e caixeiro de taverna, por sua vez, atormentado sempre com a sua miséria pecuniária; d’Alembert, enjeitado e encontrado pela mulher de um vidraceiro nas escadas de uma igreja, certa noite invernosa; Newton, filho de um pequeno proprietário de Granthan; Laplace, filho de um pobre campônio de Beaumont, perto de Honfleur; W. Herschell, organista de Halifax; Arago, devendo toda sua glória à perseverança no estudo desde jovem; Ampère, pesquisador solitário; Humphry Davy, criado de um farmacêutico; Faraday, encadernador; Franklin, aprendiz de tipógrafo; Diderot, filho de um cutileiro; Cuvier, Geoffroy Saint-Hilaire e cem outros. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

738. Em que o azoto e o fósforo entravam na secreção da vontade destes sábios ilustres, e de que maneira o carbono se comportou para os levar ao fastígio da projeção intelectual? Mau grado às circunstâncias desfavoráveis com que houveram de lutar no início da vida, estes homens eminentes alcançaram, pelo só exercício de suas faculdades, uma reputação sólida e duradoura, qual lhes não granjeariam todos os tesouros da Terra. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

739. De nossa parte, citaremos agora os cirurgiões John Hunter, Ambrósio Paré e Dupuytren, nascidos de condições humildes. Conta-se que Dupuytren, quando no colégio da Marcha, ocupava com outro colega um quarto que tinha por todo o mobiliário três cadeiras, mesa e uma espécie de cama, na qual se alternavam para o repouso. Tão exíguos eram seus recursos que, muitas vezes, passavam a pão e água. Dupuytren começava o trabalho às 4 horas da manhã e nós sabemos, hoje, que ele foi o maior cirurgião do seu tempo. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

740. Fácil nos seria exarar infinitos exemplos desse quilate. Em todos os ramos da atividade humana – Ciências, Belas-Artes, Literatura, Comércio, Indústria – eles são tão numerosos que chegam a dificultar a escolha entre tantos homens notáveis cujo êxito lhes adveio somente do trabalho e paciente esforço[i]. Basta, por exemplo, lançar um olhar aos domínios da Geografia e assinalar entre os grandes descobridores Cristóvão Colombo, filho de um cardador de Gênova; Cock, caixeiro de uma loja no Yorkshire, e Livingstone, operário de uma fiação de tecidos perto de Glaacow. Entre os papas, Gregório 7º nasceu de um carpinteiro, Sixto 5º de um pastor e Adriano 6º de um pobre canoeiro. Na sua juventude, pobríssimo, Adriano, impossibilitado de comprar uma vela, preparava as lições ao relento, aproveitando a iluminação pública. Ninguém lobriga em tudo isto a influência do oxigênio. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

741. Não é senão pelo exercício autônomo de suas faculdades que uma criatura pode adquirir o saber e a experiência que, reunidos, produzem a sabedoria. E, qual dizia Franklin, é tão pueril esperar a posse desses bens sem esforço e sem trabalho quanto o seria contar com uma colheita em terreno sem lavra nem semeadura. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

742. Dois irmãos, provindos do mesmo casal, podem receber a mesma educação, ter a mesma liberdade de ação, viverem juntos, nutrirem-se do mesmo ar e dos mesmos alimentos e nada impedirá que um se torne ilustre e outro fique na mediocridade. A quanta gente se poderiam endereçar estas palavras do velho bispo de Lincoln ao irmão, homem indolente, que lhe pedia fizesse dele um grande homem: – “certo, se a tua charrua se quebrar posso mandar consertá-la, e se te morrer um boi posso comprar-te outro; mas não posso fazer de ti um grande homem, de vez que lavrador te encontrei e sou obrigado a deixar-te como tal”. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

743. Riquezas e bem-estar não são indispensáveis ao desenvolvimento das altas faculdades humanas, pois, se assim fora, não haveria no mundo, e de todos os tempos, notabilidades desabrochadas das mais ínfimas camadas sociais. A química alimentar nada tem que ver com a produção intelectual. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

744. Longe de ser um mal, a pobreza, quando provida de energia e iniciativa pessoal, pode transformar-se em benefício, de vez que faz sentir ao homem a necessidade de lutar com o mundo, onde, a despeito dos que compram o bem-estar a preços degradantes, também há confiança, justiça e triunfo para os valorosos e honestos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

745. A fortuna há mesmo, muitas vezes, prejudicado os seus privilegiados. Em compensação, encontramos exemplos favoráveis à nossa tese, entre aqueles que, inspirados pela fé ou ciosos da felicidade do seu próximo, renunciaram, voluntariamente, aos gozos mundanos, aos poderes e honras da Terra, descendo de sua posição culminante para dedicar-se à beneficência e instrução das massas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

746. Tocqueville escreveu:

“O mundo é escravo da energia, nem houve fase de vida na qual pudéssemos conceber repouso; a luta interior, e mais ainda a exterior, é necessária e tanto maiormente necessária quanto mais envelhecemos. Comparo o homem a um viajante que caminha, sem parar, para uma região cada vez mais fria e que, quanto mais avança, mais precisa agitar-se. A grande enfermidade da alma é o frio e para combater esse mal temível é preciso, não só manter ativo o espírito pelo trabalho, mas também pelo contacto dos semelhantes e dos negócios temporais.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

747. Estas palavras, justificou-as o seu autor com o exemplo pessoal. Em plena atividade, ei-lo que perde a vista e, depois, a saúde, mas não perde nunca o amor à verdade. Ainda quando combalido a ponto de ser carregado ao colo como qualquer criança, a sua indômita coragem não o abandona. Completamente cego e inválido, nem por isso encerra a sua carreira literária, justificando-a com estas nobres palavras bem dignas de serem contrapostas à hipótese materialista:

“Se, como me praz acreditar, o interesse da Ciência se inclui em o número dos grandes interesses nacionais, eu dei ao meu país o que lhe dá o soldado mutilado no campo de batalha. Seja qual for o destino dos meus trabalhos, também espero que este exemplo não fique perdido. Quereria eu que ele servisse para combater essa debilidade moral, que é a moléstia da nova geração; que pudesse reconduzir ao caminho reto da vida alguma dessas almas enervadas que se lamentam de lhes faltar a fé, sem saberem onde buscá-la, e que, procurando por toda parte, em parte alguma encontram objeto de culto e devotamento.

Por que dizer, com tanto amargor, que não há ar para todos os pulmões, emprego para todas as inteligências? Não temos aí o estudo sério e calmo? Não haverá nele um refúgio, uma esperança, uma carreira ao alcance de todos nós? Com ele, atravessamos os dias aziagos sem lhes sentir o peso. Com ele construímos o destino, usamos nobremente a vida. Eis o que faço e voltaria a fazer ainda, se houvesse de recomeçar a marcha, a fim de reencontrar-me justo onde me encontro. Cego e padecente, posso dar um testemunho que, penso, não será suspeito: o de haver no mundo algo melhor e mais valioso que os gozos materiais que a fortuna e até a saúde: – o devotamento à Ciência.” (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

748. Preferimos sentimentos que tais à química da inteligência. Estendemo-nos confiadamente nestes exemplos porque, acima de tudo, dão testemunho do verdadeiro caráter do homem superior e da absurdidade dos materialistas que ousam reduzir esse caráter a simples função da matéria, a uma disposição natural do cérebro. Não queremos concluir o protesto sem falar em Bernardo Palissy, homem cuja vida vale por um protesto formal à hipótese dos nossos adversários. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

749. Lembremos, em primeiro lugar, que Palissy nasceu em 1510, sendo seu pai um pobre vidraceiro da Capela Biron. Não pôde, assim, receber a menor instrução; não teve, qual confessava ele próprio, “outro livro além do céu e da terra, que a toda gente é dado ler e entender”. Aos vinte e oito anos, paupérrimo, instalou-se numa choupana, em Saintes, como agrimensor e pintor de vidros. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

750. Casado e pai de filhos cuja subsistência se lhe tornava impossível, concebeu a ideia fixa de fabricar louça vidrada e imitar Luca della Róbia. Na impossibilidade de viajar pela Itália para aprender a técnica, houve de resignar-se a investigar, tateante, no ambiente acanhado em que se encontrava. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


 

[i] V. Flammarion – Les Heros du Travail, discurso Inaugural da Associação Politécnica do Alto Marne, (1866) e conferência pronunciada no Asilo Imperial de Vincenes Compreende-se que não possamos aqui chamar a atenção para esses fatos importantes e antepô-los simplesmente às fantasias materialistas.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita