Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis


Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 41)


Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de 1867.


Questões preliminares


A. Que invenção a humanidade terrena deve à genialidade e à persistência de Palissy?

A ele se deve a invenção da louça esmaltada e das figulinas (vasos de barro), que ele só conseguiu concretizar depois de dezesseis anos de labor assíduo e penosas experiências, sem ajuda de ninguém. Só então Palissy pôde colher o fruto do seu esforço, fato que teve, porém, curta duração, porque, dada a sua independência de ideias em matéria religiosa, foi denunciado e levado à prisão em Bordéus, onde por pouco escapou da morte na fogueira. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

B. Como nasce um gênio? Que disse Buffon sobre isso?

Ele escreveu que gênio é paciência. A frase nos traz à lembrança vultos como Képler, que procurou durante dezessete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em torno da Terra. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

C. Que nos ensinam as peripécias e desafios enfrentados por vultos como Palissy e tantos outros que se destacaram por seu esforço,  dedicação e genialidade?

Esses vultos e sua história de vida nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude e a fé não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria inerte, não se precatam do valor humano e jazem na mais trevosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)


Texto para leitura


751. Palissy, depois de muito conjeturar sobre as matérias que entravam na composição do esmalte, fez demoradas experiências e acabou reunindo as substâncias que lhe pareceram adequadas. Comprou potes de barro comum, quebrou-os e recobriu os fragmentos com as massas que preparava, submetendo-as ao forno para tal fim construído. As tentativas falhavam e o que só conseguia eram potes quebrados, com grande prejuízo de carvão, de substâncias químicas, além de tempo e trabalho. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

752. Afrontando as lamentações da esposa, o choro dos filhos e a ironia dos vizinhos, nem assim desanimava. Sua companheira não se conformava com o ver assim dissipar-se em fumo os já minguados recursos domésticos. Contudo, haveria de submeter-se, de vez que o marido estava empolgado por uma ideia que ninguém e nada no mundo lhe desvaneceria. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

753. As experiências prosseguiam por meses e anos. Descontente com o primeiro forno, construiu outro fora de casa. Neste, queimou outra lenha, esperdiçou outras drogas e potes, perdeu tanto tempo e dinheiro que acabou caindo em extrema miséria. Sem embargo, persistiu. Obstinação cruel! Não mais podendo acender o seu forno, levava o material a uma fábrica distante légua e meia e o fracasso continuava. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

754. Desapontado, mas não desenganado, resolve, então, construir um forno para vidro, perto de casa. E o fez ele mesmo, com as próprias mãos. Conduzia da olaria, às costas, o tijolo; ajustava-o, emboçava-o; era pedreiro, carregador, oleiro, tudo! Ao fim de um ano, ei-lo com o seu novo forno e os vasos preparados para uma nova experiência. Apesar do esgotamento quase absoluto dos seus recursos, conseguira acumular grandes reservas de lenha. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

755. Acendeu o forno, recomeçou o trabalho, não perdia de vista a tarefa, um minuto que fosse. Dia e noite a postos, vígil, ei-lo a meter lenha, a graduar o fogo e, contudo, o esmalte não derretia. Pela segunda vez vinha o Sol surpreendê-lo na faina e a esposa trazia-lhe o parco almoço. Nada no mundo o tiraria da boca do seu forno, no qual, desesperado, lançava a lenha acumulada. O Sol recolhia-se e o nosso homem não. Pálido, desfigurado, barba crescida, sobreexcitado sim, mas heroico, indefesso junto ao forno, para ver quando o esmalte se fundiria. Um, dois, seis dias, enfim, transcorreram sem alteração. O invicto Palissy continuava a trabalhar, a vigiar, mau grado ao desmoronamento de suas esperanças. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

756. O esmalte não se fundiu... Pôs-se, então, a contrair dívidas, a comprar novos vasos, mais lenha... Os potes devidamente revestidos e cuidadosamente colocados no forno, ainda uma vez acendeu-se o fogo. Era a última tentativa do desespero. Ele fez um braseiro enorme e, não obstante a alta temperatura, nada conseguiu. A lenha já escasseava. Como alimentar, até o fim, aquele fogaréu infernal? Olhou em torno, seus olhos incidiram na cerca do jardim, madeira enxuta, facilmente combustível. Que poderia valer aquela cerca comparada com a experiência cujo êxito dependeria, talvez, de algumas toras mais? As cercas foram arrancadas, lançadas na fornalha. Sacrifício inútil! (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

757. Ainda não seria dessa vez... Mais dez minutos de calor – quem sabe – e tudo estaria conseguido... Lenha, portanto, mais lenha e só lenha, a qualquer preço, eis o que precisava! Que ardessem os móveis, contanto que não perdesse aquela experiência. Estrondo horrível se ouviu em toda a casa, logo seguido dos gritos da mulher e filhos, já agora temerosos de que o homem houvesse enlouquecido. Ei-lo que chega, sobraçando destroços de mesas e cadeiras! A fornalha tudo recebe, tudo devora. Não se funde o esmalte, ainda assim? Chega a vez dos assoalhos... A família, diante disso, foge espavorida e vai pelas ruas a gritar que o seu chefe enlouquecera. A essa altura, o inventor encontrava-se absolutamente exausto, mercê de tantas lutas, jejuns, vigílias, sobressaltos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

758. Endividado e coberto de ridículo, dir-se-ia presa de um desastre irreparável. E, contudo, acabara por descobrir o segredo, a última provisão de calor derretera o esmalte. Os vasos de barro escuro lá estavam transformados em louça branca, que ele deveria realmente achar belíssima. Doravante, podia afrontar com paciência todos os remoques, ultrajes e recriminações. O homem de gênio, graças à tenacidade na sua inspiração, acabava colhendo a palma da vitória. Arrancara um segredo à Natureza e podia com mais calma aguardar os proventos da sua descoberta. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

759. E não foi senão ao fim de dezesseis anos de labor assíduo e penosas experiências, que, isolado, aprendendo consigo, desajudado de todos, pôde colher o fruto do seu esforço. Não tardou, porém, dada a sua independência de ideias em matéria religiosa, fosse denunciado e visse invadida e depredada a sua oficina por uma turba ignara e fanática, de conivência com as autoridades. E enquanto assim lhe destroçavam toda uma cerâmica preciosa, era ele preso e conduzido a Bordéus, onde aguardaria o cadafalso ou a fogueira. Salvou-lhe a vida o Condestável de Montmorency, não – diga-se – em atenção às suas crenças religiosas, mas às suas faianças. [N.R.: Faiança é o mesmo que louça fina de barro, vidrada ou esmaltada. Condestável significava, antigamente, primeiro dignitário do Reino, chefe do exército.] (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

760. Dali, foi a Paris, onde o chamaram os trabalhos encomendados pelo Condestável e pela Rainha-mãe, hospedando-se nas Tulherias, enquanto duraram esses trabalhos. Mas, a guerra incessante que movia aos adeptos da Astrologia, da Alquimia e da bruxaria, acarretou-lhe uma nova denúncia como herético. Novamente preso, ficou cinco anos na Bastilha e ali morreu, em 1589, na idade de oitenta anos. Assim acabou e assim foi recompensado o inventor da louça esmaltada e das figulinas. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

761. Diante desse magnífico exemplo de coragem e perseverança – não da coragem proveniente de uma exaltação nervosa, qual a produzem a cólera, o medo, o cheiro da pólvora, a música marcial, visto que nestes casos espontâneos os adversários poderiam alegar a sensação – mas de uma energia que se desdobra por dezesseis anos afrontando todos os reveses; de uma vontade que sobrepuja todos os obstáculos como que avassalando o corpo e as afeições do sangue; diante desses exemplos, dizemos, diante de todas as glórias da nossa espécie pensante; diante de todas essas chamas que se consumiram para brilharem na posteridade das gerações; diante dos anseios cordiais da Humanidade e diante dos testemunhos da sua própria consciência, com que direito se vem averbar de ilusão a vontade e de subsequente a força moral? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

762. Com que direito ousam negar a energia independente e o caráter predominante dessas almas de rija têmpera? A que pretexto reduzem a potência desses corações a estados fisiológicos, quando não a circunstâncias fortuitas? E como se leva a fantasia a estabelecer como princípio que “as nossas resoluções variam com o barômetro”? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

763. Objetar-se-á que o benemérito oleiro, cujo perfil acabamos de traçar, representa uma exceção no seio da Humanidade? Mas, uma tal evasiva só poderá provir da ignorância e carência de observação. Nomes mais ilustres que o de Palissy fulguram por aí a títulos outros e nos quais admira-nos a mesma obstinação e firmeza. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

764. Buffon escreveu que gênio é paciência. Lembramo-nos, então, de Képler procurando durante dezessete anos as três leis imortais que o recomendam à posteridade, leis que regem o sistema universal nos latifúndios celestes, onde se embalam as estrelas duplas, tanto quanto regulam o movimento da Lua em torno da Terra. Falaremos de Newton, modesto, respondendo a quem lhe perguntava como descobrira a gravitação: – foi pensando sempre nela. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

765. Citaremos todos esses ilustres sábios que em suas lutas só tiveram por arma a inteligência. Invocaremos os trabalhos solitários de Harvey, Carlos Bonnet, Jenner[i]. Recontaremos as tremendas dificuldades que houveram de vencer, animados do fogo sagrado, esses inventores que se chamaram Watt, Jacquard, Girard, Fulton, Stephenson? Diremos dos labores intelectuais que exigiram as nossas vias férreas, a navegação a vapor, a telegrafia, magníficos inventos nos quais celebramos o espírito que não a matéria? (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

766. Invocaremos os arroubos artísticos de um Miguel Ângelo, de um Ticiano, de um Celini, de um Poussain? Recordemos esta frase de Bayle, escrita de Milão, em 1820, a propósito de um artista chamado Meyerbeer: – “é homem de algum talento mas não genial, vivendo solitariamente e trabalhando quinze horas por dia”. Contudo, se quiséssemos historiar as provas rudes que flagelaram os gênios mais possantes, haveríamos de baixar aos nomes ignorados, de quantos mergulharam nesse pego revolto, vítimas da sorte, não da descrença, como Chenier decapitado, ou como Gilbert lutando contra o egoísmo universal. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

767. Haveríamos, também, de convocar os que sucumbiram gloriosamente. Giordano Bruno preferindo a morte a uma retratação fictícia; Campanela sete vezes torturado e sucumbindo sem deixar de satirizar seus algozes; Joana D'Arc que salvou a França, Sócrates que salvou a Filosofia e preferiu a cicuta à mentira, Cristóvão Colombo expirando no cárcere, o velho Pedro Ramus estrangulado na noite de São Bartolomeu, em que também teria perecido Ambrósio Paré, se Carlos 9º não levasse em conta os seus préstimos pessoais e, enfim, todos os mártires da Ciência, da Religião, do progresso, inclusive os que tombaram nos circos romanos, devorados pelas feras e exorando a Deus por seus irmãos. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

768. Fossem quais fossem as crenças, as ideias que essas criaturas defendiam até à morte, sem lhes apreciarmos o valor real das causas que abraçavam, sua memória imperecível só nos merece respeitosa veneração. São vultos que nos mostram que o homem não é somente um composto de matéria orgânica e que a energia, a perseverança, a coragem, a virtude, a fé não são atributos da composição químico-cerebral. Do fundo de seus sepulcros eles proclamam que os pretensos sábios, que ousam identificar o homem com a matéria inerte, não se precatam do valor humano e jazem na mais trevosa ignorância das verdades que fazem a glória e a felicidade do ser. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

769. Ademais, não é somente nas altas esferas que o observador admira esses edificantes exemplos. Em todas as camadas sociais, do prócer da Ciência ao rústico analfabeto, do trono ao grabato, a vida cotidiana oferece, no santuário da família, esses mesmos padrões de coragem e abnegação, de paciência e grandeza d'alma, de energia e virtude, que, por desconhecidos, não são menos meritórios no seu valor intrínseco, do que os precedentes. (Deus na Natureza – Terceira Parte. A Alma. A Vontade do Homem.)

 

 


[i]     A acolhida que teve a descoberta da vacina é um atestado típico dos obstáculos geralmente antepostos a qualquer ideia nova, de feição a desanimar inventores e sábios. Não faltou, diz Smiles, quem lhe caricaturasse a descoberta apresentando-a como suscetível de bestializar o próximo, com o introduzir no organismo matéria putrecida, retirada das tetas de vacas doentes. Do alto das cátedras, foi a vacina denunciada como coisa “diabólica”. Chegaram a afirmar que as crianças vacinadas cresciam com “cara de boi” e que na testa lhes sobrevinham tumores, que “indicavam o lugar dos chifres e que a voz se alterava com mugidos de touro”.


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita