Lembrai-vos do “Tio Pedro”
A escolinha do Professor Raimundo é um programa
televisivo que atravessa gerações. Estreou em 1957 na
televisão, somando mais de 60 anos, entre interrupções,
na batuta do saudoso Chico Anysio, e mais recentemente
sendo conduzido por seu filho.
Dos emblemáticos personagens, destaca-se o engravatado
Pedro Pedreira, vivido por Francisco Milani
anteriormente, e agora pelo ator Marcos Ricca, ambos em
notáveis interpretações. Trata-se, Pedro Pedreira, de um
chato de galocha, que pergunta sobre tudo, duvida, pede
evidências. Sempre levanta as controvérsias, lembrando
aquelas pessoas de nossa convivência que terminam por
não serem queridas no meio social.
“Pedra noventa, só enfrenta quem aguenta”; “Não me
venha com chorumelas”; “Me convença”; “Há
controvérsias!”; “Quero provas!”, “A informação está
incorreta, imprecisa e improvável, vamos
simplificar, pois não quero que digam que sou
intransigente. Sempre há uma possibilidade de diálogo.
Tênue, mas há!”.
Conhecidos bordões desse cético personagem, que tinha o
questionamento como sua marca, em relação a afirmativas
da história consideradas de conhecimento e aceitação
geral. Um crítico mordaz do senso comum!
Ressalvados os extremos, em tempos de profusão de
informações desenfreada pelo fenômeno da internet, cá
entre nós, precisamos ter um pouco do "Tio Pedro" em
nós, em especial diante de tudo o que ouvimos e lemos
por aí no que se refere ao assunto “Espiritismo”.
Vemo-nos, comumente, em circunstâncias nas quais ficamos
envergonhados de perguntar, de questionar, de sermos
tachados de chatos e acabamos aceitando tudo, sem
cerimônia ou chorumelas.
Será que devemos ser mesmo assim? Será que esse é o
“comportamento” que o Espiritismo, herdado do “Tio
Rivail”, enquanto doutrina racional e livre, nos
provoca? A famosa fé raciocinada tem sido vivenciada, ou
virou mais um bordão vazio e que não reflete as nossas
práticas? Estamos sendo coniventes com uma visão que
criminaliza a opinião e o debate em função de verdades
postas? Perguntas relevantes... O fato é que quando
agimos alimentando a fé cega, na verdade só não deixamos
os questionamentos aflorarem, mas eles estão lá, em
nossas operosas mentes de Espíritos imortais.
Isso mesmo, no silêncio de nossas mentes ou na quietude
– nem sempre silenciosa, face a murmúrios ou resmungos,
ou expressões pálidas de descontentamento, quase
faciais, exclusivamente – continuamos a fazer as nossas
perquirições, questionamentos e, até, contestações em
relação ao que ouvimos (ou vemos), não é mesmo?
Sim, porque a nossa mente “borbulha” e não para de
“funcionar”. Estamos sempre, como diz um velho amigo,
“matutando as ideias”. E nestas ruminações mentais,
vamos construindo a fundamentação de nossas ideologias e
filosofias – as quais, nem sempre ou em todas as
situações, talvez, até, nunca, ficam “transparentes” aos
transeuntes de nossas estradas, quando preferimos o
silêncio de não questionar.
Nesse sentido, uma crença arraigada no argumento de
autoridade, no porta-voz como transmissor de
credibilidade da mensagem, tratando os questionamentos
como pecaminosos, às vezes por mera deferência ao
emissor, encarnado ou desencarnado, é uma postura que
difere em muito da abordagem apontada por Allan Kardec,
em especial em “O Livro dos Médiuns”, e que somente
oculta e torna clandestinas as verdades, em um modelo
que já conhecemos de outras religiões, de forma sobre
essência, de medo e de dogmas, e que a história
demonstrou que não teve êxito.
Voltando ao nosso Pedro Pedreira, deixando de lado o
estereótipo que ele – provocativamente pelo enredo dos
programas – assume, todos nós deveríamos, na ambiência
espírita e fora dela, sermos um pouco “pedra no sapato”
em relação ao que se nos é apresentado como “teoria”,
“regra” ou “verdade”. Analisar argumentos e trazer para
o debate salutar e respeitoso, como forma de aprendizado
e crescimento, na herança da maiêutica socrática e
falando de nossa seara, na raiz das conferências
espíritas de Allan Kardec na obra “O que é o
Espiritismo”.
Uma dose razoável de espírito contestador e criterioso
no ambiente espírita, amparado na lógica e na
fundamentação, não deve ser combatido e rechaçado. Pelo
contrário! Essa postura de diálogo, participação e
discussão é que nos dá força como movimento, diante das
realidades que se apresentam, estimulando o surgimento
de evidências que sejam consideradas as controvérsias e
que a máxima kardequiana “É
melhor rejeitar dez verdades do que aceitar uma mentira”
seja aplicada efetivamente em nossa realidade.
Mas, para isso, é preciso dessacralizar médiuns,
autores, livros.... Faz-se necessário não se ofender
diante de ponderações e questionamentos. De Kardec não
lembramos o nome de cabeça de algum dos medianeiros que
colaborou com a obra da codificação. O “Tio Rivail”
valorizava o conceito e o confrontava com a lógica, bem
como com outros tempos e lugares. O modelo de fonte
mediúnica confiável irrestritamente fere essa visão e
pode nos conduzir a caminhos tortuosos.
De toda sorte, os Pedreiras estão por aí... Sempre
estiveram. Alguns ainda em “gérmen”, outros um pouco
acanhados e muitos, creia-me, começam a aparecer, a
despontar. Um senso comum de que as “ambiências”
espíritas estão ficando complicadas, pois o pessoal
“anda” muito contestador, deve servir de alerta para
nossa postura diante desse mundo do conhecimento, no
qual existe uma geração que ascende e que não se
contenta mais com as verdades pasteurizadas, o que não
difere muito do tempo no qual surgiu o Espiritismo.
Ser Pedro Pedreira no ambiente espírita não pode também
ser um valor absoluto, dado que, para estabelecer
diálogos produtivos, de mútuo aprendizado e trabalho,
devemos compactuar a desconfiança com o bom senso, para
fugir de um “engessamento” desnecessário, castrador e
minimizador dos potenciais humanos e espirituais, na
visão da virtude no caminho do meio.
Lembrai-vos do “Tio Pedro” diante das coisas que surgem
na tela do computador, ou na roda de conversas, na
palestra ou nas páginas do livro. Mas, é importante
mitigar o aspecto “chato”, intransigente desse
personagem, buscando, na contrariedade verbal que se
opõe a certas “verdades”, obrar a “desconstrução”, para,
por fim, executar a “reconstrução”, chegando a sínteses
razoáveis. A chamada dialética, que na sua raiz tem a
ideia de diálogo, de respeito aos saberes e de
crescimento mútuo.