Suicídio na população transgênero: possíveis ações dos
movimentos espíritas
Nicholas Domingues Monteiro, 20 anos, era aluno do
Bacharelado Interdisciplinar de Ciências Humanas na
Universidade Federal de Juiz de Fora. Homem trans,
integrava o projeto Visitrans na UFJF e militava na
União da Juventude Comunista. Cometeu suicídio em 5 de
julho de 2017. Pouco antes do episódio fatal, ele
publicara um desabafo na internet, do qual separamos o
seguinte trecho: “Como se não bastasse todo o sentimento
em relação ao corpo, temos que aguentar a opressão e
enfrentar diariamente os olhares esquisitos no banheiro,
temos que aguentar nossos nomes desrespeitados e a falta
de oportunidades no mercado de trabalho e uma junção
disso tudo mata muito”.
O ato do jovem vem se juntar a uma trágica realidade de
muitas outras pessoas transgêneros que cometem autocídio
em decorrência do desespero, face aos sofrimentos
enfrentados devido à sua identidade de gênero. A
identidade de gênero é como você pensa a respeito de si
mesmo, é o sexo psíquico, aquilo que a criatura sente ao
se olhar no espelho. Atualmente, são catalogadas nas
pesquisas as identidades: feminina, masculina, nenhuma
das duas ou ambas. Convém registrar que transgênero é a
pessoa não adequada ao gênero previamente estabelecido
ou socialmente atribuído ao nascimento. Não se trata de
um conceito rígido, pois não há um modo único de ser
transgênero, e engloba travestis, transexuais e
queers.
O suicídio é uma causa recorrente de morte da população
trans brasileira e faz-se necessário investigar os
motivos e discutir estratégias de prevenção. O
Espiritismo pode e deve contribuir nesta momentosa
questão com os conhecimentos oriundos do intercâmbio
mediúnico e as práticas acolhedoras nas instituições
espíritas. As campanhas de valorização da vida
promovidas nos movimentos espíritas devem trabalhar
também as necessidades das minorias, tais as pessoas
LGBTTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros,
Travestis, Intersexuais). O tema ainda é tabu, mas
precisa ser amplamente debatido para contemplar essa
população tão discriminada. Ausência de amparos
familiar, social e institucional; humilhações;
constrangimentos; eis o fardo que pesa às costas dos
irmãos transgêneros.
Diante desta perspectiva árida, muitos companheiros
fragilizados e abandonados entregam-se às ideações
suicidas. Vejamos os dados alarmantes da pesquisa1.
“Os Homens Trans no Brasil: as políticas públicas e a
luta pela afirmação de suas identidades”, de Roberto
Cezar Maia de Souza, da Faculdade de Psicologia Maurício
de Nassau: 66,4% dos homens trans afirmaram já ter
pensado em suicídio; destes, 41,5% já tiveram
pelo menos uma tentativa de suicídio e 28,2% tiveram
duas tentativas. Para fazer um paralelo, a população em
geral tem o índice de 3% de uma tentativa de suicídio.
Estimativas feitas nos EUA pela ONG National LGBTQ
Task Force apontam em 41% o índice de pessoas trans
que já tentaram suicídio naquele país, contra 1,2% da
população cisgênero (aquela que não é trans). Uma
pesquisa do Williams Institute (Universidade da
Califórnia, Los Angeles) publicada em 2014 estimou em
40% as pessoas trans que já atentaram contra a própria
vida. Outra pesquisa da Columbia University (Nova
Iorque, Estados Unidos) informa que o índice de suicídio
é cinco vezes mais frequente na população LGBTTI.
Os números indicam claramente os efeitos nocivos da
transfobia na vida das pessoas transgêneras. A
discriminação sistemática baseada na identidade e na
expressão de gênero, bem sintetizadas pelo depoimento de
Nicholas no parágrafo inicial, produzem consequências
desastrosas. Compete ao espírita lúcido e estudioso
participar dos esforços e das ações em favor das lutas
que dignifiquem a existência dos irmãos que atravessam a
experiência trans. Os movimentos espíritas precisam
fazer uma autocrítica honesta no tocante ao convívio com
a população LGBTTI, pois habitualmente são tratados com
desrespeito, isolados ou expulsos dos trabalhos -
considerados obsidiados. Figuras famosas e/ou
idolatradas na comunidade espírita, movidos por vaidades
e aplausos insensatos, pioram a situação ao exprimir
opiniões preconceituosas, sem embasamento científico e
recheado de moralismo barato.
Todos estes comportamentos revelam ignorância e medo,
que estimulam a discriminação, a pesar na carga de dores
dos nossos irmãos, afastando-os da frequência aos
centros espíritas, locais em que deveria prevalecer o
comportamento caritativo a TODOS que lhe busquem o
acolhimento. A moral ensinada pelos Espíritos
Superiores, exarada nas obras de Kardec, aponta a
compaixão e a indulgência como diretrizes de conduta
reta. Precisamos melhorar o convívio junto aos irmãos na
experiência trans. As pesquisas indicam
quantitativamente o que o contato direto e franco com
eles revela em detalhes: enfrentam provações acerbas nas
variadas formas de rejeição da sociedade e sofrem
violências múltiplas (xingamentos, agressões físicas,
bullying, dentre outros).
Os movimentos espíritas precisam assumir também
responsabilidades na melhoria de condições de vida
destes companheiros evolutivos, a começar pelo estudo da
sexualidade. Tarefa fundamental e contínua: estudar.
Somente o estudo da sexualidade, em especial as questões
de identidade de gênero, poderá nos dar condições de
abordar o assunto e as pessoas, baseados em
conhecimentos científicos produzidos por pesquisadores
de diversas áreas (sociais, educacionais, biológicas,
psicológicas etc.) dialogando com o material espírita. O
passo inicial para superar o preconceito é sair da
ignorância que o fundamenta. É necessário promovermos
palestras públicas, grupos de estudos, seminários,
estudos nas Mocidades, aulas para as crianças e outras
tantas atividades nas quais possamos estudar seriamente
a sexualidade, para melhor compreensão e aceitação da
variedade da experiência sexual humana.
Conhecer para conviver harmonicamente com todos. A
sequência natural é a convivência rotineira com os
companheiros na experiência trans, sem qualquer
diferenciação, até porque não há motivos para tal.
Acolher os irmãos transgêneros no mesmo regime de
igualdade, de respeito e consideração que devemos
apresentar a todas as pessoas que buscam as instituições
espíritas. Caso desejem ajuda em suas dores, os
trabalhadores precisam se preparar para os acolher
dignamente, nas instâncias adequadas (atendimento
fraterno, por exemplo), sem deboches, sem
discriminações, sem trocar orientações por palpites
calcados em estereótipos. Nada de inventar falsas
explicações distorcendo ideias espíritas (tipo via
fluidos ou perispírito) nem usando livros
desatualizados. Ouvir com atenção, acolher com
sinceridade, orientar com juízo.
Este conjunto de ações (estudar, conviver, ajudar)
servirá de suporte aos companheiros transgêneros no
enfrentar dos desafios graves que se lhes apresentam.
Encontrando apoio e acolhimento no centro espírita, um
irmão transgênero poderá aliviar-se das lutas
incessantes e alimentar-se espiritualmente de carinho e
boa vontade para aceitar-se e prosseguir vivo, seguir em
frente criando significados para a sua existência. Uma
verdadeira terapêutica preventiva do suicídio. Os irmãos
que estagiam na experiência trans precisam também, como
todos nós outros interessados na Doutrina Espírita, de
aconchego e orientação, das luzes do Espiritismo para
entender a própria encarnação e angariar reflexões e
forças. Abraçado pelo grupo espírita, sentirá esse fluxo
amoroso a nutrir sua alma, sentirá acolhido e tratado
com dignidade, respeitado em sua individualidade, e por
isso mesmo mais propenso a querer continuar encarnado. O
aspecto Consolador do Espiritismo se define na proposta
imortalista e reencarnatória, e deve se efetivar na
convivência amorosa e inclusiva dos movimentos
espíritas. Contribuiremos muito para a prevenção do
autocídio dos transgêneros caso sejamos mais cuidadosos
no trato com estas pessoas em nossas atividades.
Precisamos levar a sério as considerações do Espírito
Bernardino2:
Sim, vossas provas devem seguir o curso que Deus lhes
traçou, mas conheceis esse curso? Sabeis até que ponto
elas devem seguir, e se vosso Pai misericordioso não
determinou ao sofrimento deste ou daquele vosso irmão:
“Tu não irás mais longe”? Sabeis se a Providência não
vos escolheu, não como instrumento de suplício para
agravar os sofrimentos do culpado, mas como bálsamo
consolador que deve cicatrizar as chagas que a sua
justiça havia aberto? Portanto, quando um de vossos
irmãos for atingido, não deveis dizer: “É a justiça de
Deus, é preciso que siga o seu curso”, mas sim afirmar:
“Vejamos que meios nosso Pai misericordioso colocou
ao meu alcance para aliviar o sofrimento de meu irmão.
Vejamos se as minhas consolações morais, meu apoio
material, meus conselhos poderão ajudá-lo a atravessar
essa prova com mais força, paciência e resignação.
Vejamos, mesmo, se Deus não colocou em minhas mãos a
forma de fazer cessar esse sofrimento; se não foi
dado a mim, também como prova ou talvez como expiação,
acabar com o mal e em seu lugar colocar a paz”.
(Grifos
nossos.)
Notas:
1 -
Realizada em parceria com o Instituto Brasileiro de
Transmasculinidades (IBRAT), a pesquisa contou com 242
pessoas de todas as regiões do Brasil. As informações
foram colhidas por meio de um questionário estruturado.
A faixa estaria é predominante de 18 a 24 anos (41%),
seguida de 25 a 34 anos (24%), 14 a 17 anos (22%), 35 a
49 (9%), 45 a 54 (3%) e mais de 65 anos (1%).
2 – O Evangelho segundo o Espiritismo, capítulo
V, item 27.
Referência bibliográfica:
MOREIRA, Andrei. Transexualidades sob a ótica do
Espírito imortal. Belo Horizonte: AME, 2017.
Gabriel Lopes Garcia, de Juiz de Fora (MG), é
trabalhador voluntário no Instituto de Difusão Espírita
da mesma cidade.