“Nóis é esprito”
Certa feita, Samuel dirigiu uma peça na casa espírita,
na qual interagiam encarnados e desencarnados, e o tom
era um tanto cômico, retratando os Espíritos como
pessoas, com seus conflitos e as suas confusões. Nada
diferente do que se vê no cinema todo dia. Tal
representação foi objeto de pesadas críticas do grupo
dirigente da instituição espírita, alegando que estavam
debochando dos guias espirituais, e a peça foi proscrita.
Essa visão sisuda dos Espíritos desencarnados, como
avatares gélidos, oráculos com voz gutural, acima do bem
e do mal, anjos modernos, é comum nas falas e nos textos
espíritas. Um certo guiismo, perdoem o neologismo
emprestado de outro amigo articulista, mas é uma
percepção de uma espiritualidade distante da humanidade,
angelical, sem sentimentos, infalível. Santos...
Esse caso fictício narrado, bem como outros que
colecionamos no que tange à relação com a prática
mediúnica, com o teor das mensagens, a sua pertinência,
mostra que temos essa herança dos deuses greco-romanos,
do judaico-cristão, bem como do afro, de entidades
extracorpóreas que regem as nossas vidas, de forma
alheia, superior, e que só podem ser objeto de adoração,
jamais de contestação ou, ainda, de comédia, posto que
estão acima dos Espíritos encarnados, os humanos.
Independente de onde vêm essas ideias em nossa cultura e
de como absorvemos isso no Espiritismo, o fato é que
Kardec quebrou esse paradigma, e talvez não tenhamos
percebido que a doutrina se pauta em outros
referenciais, em pressupostos que mudam práticas e
escritos decorrentes. Vejamos em alguns trechos da
chamada codificação como Kardec se posiciona em relação
aos Espíritos desencarnados, como na introdução de O
Livro dos Espíritos: “O Espiritismo no-la mostra
preenchida pelos seres de todas as ordens do mundo
invisível e estes seres não são mais do que os Espíritos
dos homens, nos diferentes graus que levam à
perfeição”, na qual Kardec se posiciona como fará ao
longo dos outros livros, em relação a natureza dos
Espíritos.
Tem-se também O Livro dos Médiuns no seu item 19: “No
Espiritismo, a questão dos Espíritos é secundária e
consecutiva; não constitui o ponto de partida. Este
precisamente o erro em que caem muitos adeptos e que,
amiúde, os leva a insucesso com certas pessoas. Não
sendo os Espíritos senão as almas dos homens, o
verdadeiro ponto de partida é a existência da alma”, bem
como o item 49: “4º Os Espíritos não são seres à
parte, dentro da criação, mas as almas dos que hão
vivido na Terra, ou em outros mundos, e que despiram o
invólucro corpóreo; donde se segue que as almas dos
homens são Espíritos encarnados e que nós, morrendo, nos
tornamos Espíritos”.
O que é o Espiritismo - Cap. 1: “Todos os Espíritos
têm a mesma origem e o mesmo destino; as diferenças que
os separam não constituem espécies distintas, mas
exprimem diversos graus de adiantamento. Os Espíritos
não são perfeitos, porque não são mais do que as almas
dos homens, que não atingiram também a perfeição; e,
pela mesma razão, os homens não são perfeitos por serem
encarnações de Espíritos mais ou menos adiantados. O
mundo corporal e o mundo espiritual estão em contínuo
revezamento; pela morte do corpo, o mundo corporal
fornece seu contingente ao espiritual; pelos
nascimentos, este alimenta a humanidade”.
Apenas esses trechos são suficientes para exemplificar a
visão de Kardec sobre os Espíritos, seres criados por
Deus, simples e ignorantes, e que se alternam entre
mundos, como encarnados e desencarnados, pelo fenômeno
da reencarnação, na busca de crescer e evoluir, sendo a
mediunidade apenas a faculdade de abrir portas entre
esses mundos. Mas insistimos em buscar santos de pés de
barro...
Sim, buscamos Espíritos para saber nosso futuro,
resistimos a analisar as comunicações destes (que
audácia a nossa), e colocamos estes em um pedestal
inatingível e de superioridade, que leva a situações de
endeusamento, e até de dependência, na qual a mais
simples é a crítica de um roteiro teatral. Queremos
guias e não amigos espirituais.
Essa divinização é muito preocupante, em especial no que
tange ao uso da razão como guia diante do nebuloso mundo
das interações com os desencarnados, e é estranha à
ideia essencial do Espiritismo, necessitando uma
profunda reflexão (ou uma revolução) de como temos nos
posicionado em relação aos Espíritos, e a nossa
interação com estes, sendo necessário humanizar estas
relações.
O título do presente artigo, para fechar a ideia
proposta, é oriundo de um vídeo de internet do Canal
Amigos da Luz, que, explorando linguagem menos
convencional, tem abordado com seriedade temas espíritas,
popularizando estes, e pela sua veia cômica, tem sido
objeto de críticas. Um reflexo de como essa negação do
paradigma kardequiano traz consequências por vezes
inusitadas.