Reformar ou transformar? Reforma íntima ou transformação
espiritual?
Alguns conceitos são entronizados e se enraízam de tal
modo em Filosofias que é difícil, depois, retirá-los ou
entendê-los na sua real essência. No caso do Espiritismo,
eles surgem a partir de alguma declaração – seja de um
encarnado, médium ou dirigente, seja de um desencarnado
– e vão ficando, ficando... Passam a ser retórica
tradicional e, não raro, viram “figurinha fácil” no
álbum das condutas humanas.
Falemos, pois, de uma delas: a decantada reforma íntima.
Onde surgiu? Quem foi o primeiro a mencionar? Em que
contexto foi dito? Qual era o alcance? Que objetivos se
tinha? Qual a relação deste conceito com o Espiritismo?
Perguntas... Faltam respostas. Lógicas. Mas há
cogitações e ponderações para entender o porquê desta
cristalização de um conceito, aparentemente díspar e
dissociado da real proposta espiritista.
O que é reformar? Valemo-nos do léxico, do vocabulário
contido nos dicionários de língua portuguesa: “dar
melhor forma a; corrigir; emendar” ou “reconstituir a
antiga forma de; reconstruir”. Reforma, por sua vez, o
substantivo que deriva do verbo (ação) originário, é
“ação ou efeito de reformar”; “mudança introduzida em
algo para fins de aprimoramento e obtenção de melhores
resultados”.
E o que é reforma íntima? Não vamos encontrar essa
locução, essa expressão conjugada, nos dicionários do
vernáculo. Ela é uma construção filosófico-religiosa e
está comumente presente em textos tidos como espíritas.
Seu significado? Em um dos muitos sites espíritas,
encontramos: “processo contínuo de autoconhecimento da
nossa intimidade espiritual, modelando-nos
progressivamente na vivência evangélica, em todos
os sentidos da nossa existência. É a transformação do
homem velho, carregado de tendências e erros seculares,
no homem novo, atuante” (nossos os destaques, tendo como
fonte o site KardecRioPreto.com.br).
Vale dizer, ainda, que essa locução (reforma íntima) não
se acha grafada em nenhuma das obras assinadas por
Kardec. O único trecho, em todo o conjunto espírita em
que há referência ao termo “reforma”, no sentido que se
tenta atribuir ao mesmo, com a composição “reforma
íntima”, acha-se contido na dissertação inserta na Revue
Spirite, de julho de 1866, sob o título “Do projeto
de caixa geral de socorro e outras instituições para os
espíritas”, em que Rivail analisa uma dissertação
assinada pelo Espírito Marie G.
Vamos ao texto:
“O Espiritismo é uma
crença filosófica, e basta simpatizar com os princípios
fundamentais da doutrina para ser espírita. [...]
Entre os espíritas reais, aqueles que constituem o
verdadeiro corpo dos adeptos, há certas distinções a
fazer. Na primeira linha há que colocar os adeptos de
coração, animados de fé sincera, que compreendem o
objetivo e o alcance da doutrina e aceitam todas as
consequências para si mesmos; seu devotamento é a toda
prova e sem segundas intenções; os interesses da causa,
que são os da Humanidade, são sagrados para eles, e eles
jamais os sacrificarão a uma questão de amor-próprio ou
de interesse pessoal. Para eles, o lado moral não é uma
simples teoria; eles esforçam-se por pregar pelo
exemplo; não só têm a coragem de sua opinião, mas
consideram-na uma glória, e, conforme a necessidade,
sabem pagar com sua pessoa.
Vêm a seguir os que aceitam a ideia como filosofia,
porque ela lhes satisfaz a visão, mas cuja fibra moral
não é suficientemente tocada para compreenderem as
obrigações que a doutrina impõe aos que a adotam. O
homem velho está sempre ali, e a reforma de si mesmo
lhes parece tarefa muito pesada. Mas como não estão
menos firmemente convencidos, entre eles encontram-se
propagadores e zelosos defensores.
[...] O Espiritismo não tem o privilégio de transformar
subitamente a Humanidade, e se a gente pode admirar-se
de uma coisa, é do número de reformasque ele já
operou em tão pouco tempo. Ao passo que nuns, onde
encontra o terreno preparado, ele entra, por assim
dizer, de uma vez, noutros só penetra gota a gota,
conforme a resistência que encontra no caráter e nos
hábitos.
[...] As ideias espíritas devem, infalivelmente,
apressar a reformade todos os abusos, porque,
melhor que outras, elas penetram os homens com o
sentimento do dever; por toda parte onde elas
penetrarem, os abusos cairão e o progresso se efetivará.
[...] A julgar o futuro pelo presente, podemos afirmar
que o Espiritismo terá levado à reforma de muitas
coisas muito antes que os espíritas tenham podido acabar
o primeiro estabelecimento do gênero desse de que
falamos, se algum dia o empreendessem, mesmo que todos
tivessem que dar um cêntimo por semana”.
Deste modo, como se viu, antes, Kardec fala da “reforma
de si mesmo” dirigida aos adeptos espiritistas que se
maravilham ante os conceitos, mas ainda não conseguem
efetivar a transformação pessoal, permanecendo no
quadrante de “homem velho”, impedindo o novo, o que vem
depois, o que se transforma, de atuar e influir,
preponderando. E é ele, o Espiritismo, segundo estatui o
Codificador, o responsável pelas reformas (sociais) a
partir de suas ideias, influindo decisivamente no
progresso da Humanidade.
Contudo, por ser majorativamente religioso, em nosso
país, o Espiritismo apresenta uma carga emocional
bastante definida e notória que o faz assumir roteiros,
rotinas e (até) rituais correlacionados a movimentos que
se vinculam a igrejas ou seitas. Tem-se, assim, uma
legião de crentes (ou fiéis) que se reúnem em torno da
filosofia e que frequentam instituições que se parecem
com ambientes religiosos. Vale dizer que religião é bem
diferente de religiosidade, pois esta é um sentimento
inerente a cada ser, e está associado às suas convicções
íntimas – o que, para a Doutrina Espírita, alcança
tempos imemoriais que vão sedimentando a chamada
“bagagem” encarnatória de cada individualidade. Em suma,
o conjunto de experiências e a forma (o mais racional
possível) de entendimento acerca das questões
transcendentais ou espirituais. E a religiosidade é um
componente extremamente salutar na caminhada espiritual
de todos nós!
Vê-se, assim, que no texto acima transcrito, a questão
religiosa é ponto fundamental (“vivência evangélica”)
tomando-se por “evangelho” o conjunto de feitos e ditos
atribuídos a Jesus de Nazaré, a partir do registro
daqueles que se dispuseram a contar um pouco do que
ouviam a respeito daquele homem, já que nenhum deles
conviveu diretamente e na mesma época do Rabi. E, neste
particular, ainda, convém lembrar que, de uma infinidade
de evangelhos escritos, foram reconhecidos (pela Igreja)
como “aceitos e válidos”, apenas os canônicos, em número
de quatro, como se sabe, permanecendo todos os demais no
ostracismo ou na marginalidade, ainda que, nos dias
atuais, se busque resgatar informações neles contidas,
para permitir a ampliação do entendimento e do espectro
do sublime personagem.
Vivência evangélica, então, pode ser interpretada como a
repetição dos atos do Homem de Nazaré ou, também, e mais
marcantemente, um conjunto de atitudes que são
referendadas pelas igrejas, como sendo recomendáveis,
dentro de mandamentos, sacramentos ou orientações
ético-morais daquelas filosofias. Normas de conduta, em
síntese. E não seria isso, certamente, a proposta
contida na Doutrina Espírita.
Voltando ao texto selecionado, que nos trouxe o conceito
corrente de “reforma íntima”, em sua segunda parte,
tem-se um termo que agrada muito mais e que, em
essência, parece coincidir com a proposta genuinamente
espírita, tendo como referência os trabalhos de Allan
Kardec (1857-1869) e os escritos de sua lavra em
conjunto com as informações obtidas dos Espíritos
Superiores. Este termo é TRANSFORMAÇÃO.
Transformar, segundo os dicionaristas, é “fazer tomar ou
tomar nova feição ou caráter; alterar(-se),
modificar(-se)” ou “fazer passar ou passar de um estado
ou condição a outro; converter(-se), transfigurar(-se).
Já transformação é “qualquer alteração no estado de um
sistema”.
Tal transformação é exatamente o que visa a Educação
Espírita, ou a instrução espiritual-espiritista a partir
da análise racional da vida (espiritual) sob o prisma da
Doutrina dos Espíritas. Kardec mesmo acentua esse
caráter em vários pontos de sua obra, ao afirmar que a
obra do Espiritismo é (uma) obra de EDUCAÇÃO. Com a
educação, que perpassa teoria e prática, entendimento e
atitude, o ser passa a transformar-se, a modificar seus
caracteres e condutas e materializa o contido em uma das
Leis Espirituais (transcritas na terceira parte de “O
Livro dos Espíritos”), que é a LEI DE PROGRESSO. A
transformação (do Espírito) é o progresso.
Para os mais próximos, em cenários materiais
(instituições espíritas) e virtuais (grupos de
conversação e debate na internet) costumo dizer que não
aprecio a expressão “reforma íntima” porque, para mim,
reformar pressupõe destruir o que havia antes. Tomemos
um pequeno exemplo. Um determinado proprietário de um
imóvel deseja reformá-lo. Pode ser uma casa, uma loja,
um edifício. A edificação tem um formato, uma estrutura,
uma aparência exterior, uma subdivisão interna. E há a
vontade manifesta de alterar esses elementos. Passa-se,
então, a substituir janelas e portas, derrubar paredes,
extrair o piso, trocar o telhado etc. Muita destruição
por toda a parte, para receber uma “nova forma”.
Destrói-se, aniquila-se, extingue-se o “velho” para dar
lugar ao “novo”.
Em termos espirituais não há “destruição” do ser. Ele
permanece íntegro. Ele é. Ele tem e mantém sua própria
essência fundamental – a condição de SER ESPÍRITO,
imortal. Nas idas e vindas, no conjunto das
experiências, ele não “se destrói”, nem “é destruído”.
Mas, modificado, transformado, ampliado (em sua
consciência). Ele progride. E o faz a partir da
TRANSFORMAÇÃO (espiritual).
Poderia ser uma “mera” questão de semântica. Mas não é.
O conjunto de elementos que impregnam o conceito de
“reforma íntima” repetem muitos chavões de culturas e
abordagens não espíritas, pertencentes a ideologias
religiosas em que há a “obrigação” de seguir certas
prescrições, sob pena de... É a cultura do temor, do
medo e da culpa. É como se se dissesse: “reforme-se,
senão...”. “Sua situação ficará muito pior se você não
se reformar”. E por aí vai...
Consigno a proposta espírita como um ato de
transformação, genuíno, racional, espiritual,
transcendente. O ser se transforma PORQUE QUER, porque
MERECE e PODE BUSCAR uma condição melhor, porque
TRABALHA por superar-se (“reconhece-se o verdadeiro
espírita pelos esforços que faz em domar suas más
inclinações”, na transcrição do conceito lato sensu de
espíritas, também egresso da obra kardeciana). Não é bem
melhor ter em mente que a transformação é um processo
natural do que forjar uma reforma que, em muitas
situações, soa apenas no âmbito da aparência? Reflitamos...
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