O profeta do terror que a laranja
mecânica anuncia
Certa feita na aula de evangelização para crianças de 10
a 12 anos, cujo tema era “os problemas sociais”, comprei
na banca alguns jornais do dia e pedi que elas
separassem os principais problemas que elas viam ali.
Como já era esperado, o grupo de matérias sobre
violência foi predominante na escolha daqueles alunos,
corroborando o que se ouve nas ruas, todos os dias.
A despeito dos avanços que fizemos em várias áreas do
conhecimento humano, que se refletiram na redução de
problemas de saúde, de comunicação, de educação, a
violência, como problema percebido, persiste e emerge de
forma cada vez mais pujante, em especial nos grandes
centros, potencializada pela revolução das comunicações,
que nos permite ver em imagens e sons o que ocorre pelo
mundo, e o que viraliza geralmente é o que se tem de
mais cruel.
O filme distópico britânico-americano
de 1971, Laranja
Mecânica (A Clockwork Orange),
dirigido por Stanley Kubrick,
baseado no romance de 1962 de Anthony Burgess, traz o
conceito de ultraviolência, ou seja, o uso da força em
atos aleatórios e injustificados, motivada por questões
comezinhas, ou pelo simples prazer. Um conceito atual,
passados mais de cinquenta anos do livro.
Essa violência, torpe e cotidiana, em que pese seja
rejeitada no discurso, é buscada avidamente pelas
pessoas em produções cinematográficas, literatura,
esportes ou mesmo em jogos eletrônicos, alimentando essa
forma de interação e de resolução de problemas. Sim, a
violência é uma forma de relação com o mundo, com suas
questões, centrada em si, de forma imediatista e que não
se importa com as consequências em relação aos outros.
Aí vê-se na imprensa brigas de trânsito, em elevadores,
por lugares na praça de alimentação no Shopping,
questões comuns que terminam com feridos e mortos, e que
de forma contraintuitiva, são atos realizados por
pessoas letradas. Situações que indicam que a violência
surge como forma de resolução preferencial de conflitos,
por vezes temperada com uma arma de fogo, como amuleto a
defender o atemorizado cidadão das agruras da vida em
sociedade.
A violência não é a antítese da paz. Ela é o oposto do
diálogo. Resoluções possíveis, amistosas, mediadas, com
empatia, se convertem em ações destrutivas, em soluções
extremas, desproporcionais. A paciência dá espaço à
explosão, a conversa cede ao xingamento, e a negociação
se converte em luta corporal. A violência é o fracasso
do ideal de convívio humano pacífico e harmônico, na
superação dos desafios da vida encarnada.
Até a religião tem servido de plataforma para violência.
Física ou simbólica, queremos impor nossas crenças,
nossos hábitos, expulsar demônios, exilar pessoas de
nosso convívio, destruir os que pensam diferente, em
fogueiras agora virtuais. Fogem do espírito da prática
religiosa, de conciliação e de amor, como reforça o
capítulo XXIII de O Evangelho segundo o Espiritismo: “(...) decerto
que ela formalmente condena toda violência. Disse Ele
alguma vez a seus discípulos: Ide, matai, massacrai,
queimai os que não crerem como vós? Não; o que, ao
contrário, lhes disse, foi: Todos os homens são irmãos e
Deus é soberanamente misericordioso; amai o vosso
próximo; amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que
vos perseguem”.
A violência não é oriunda da falta de Deus, da falta de
Educação, dos próprios problemas humanos em si. Ela
nasce de uma cultura de legitimização desta como meio
preponderante de se comunicar com o mundo e seus
desafios. Falamos “- Se você não fizer isso, vou te
matar”, como expressão cotidiana. Vou explodir, vou
bater, vou quebrar. Surge a destruição focada no outro,
em palavras e gestos, como forma eficaz e eficiente de
convívio. E isso não pode acabar bem.
Faz-se necessário estimular, diante dos problemas, uma
cultura de diálogo, de compreensão, de empatia em
relação ao outro e as suas dificuldades. Palavras
mágicas como o “Desculpe”, pensamentos essenciais como
“ele deve estar passando um problema”, posturas
libertadoras como “Se eu fosse ele, como eu agiria”,
rompem esse círculo que se alimenta de violência. Se é
violenta, não é uma boa solução.
O medo, como distanciador das relações, também surge
como um alimentador da violência e necessita de uma fé
raciocinada que não se espante com as coisas que o mundo
nos mostra pelas diversas telas, mas que nos permita
entender como o mundo funciona e o nosso papel, em
especial no que tange ao trabalho na casa espírita, que
nos melhora, e também ao próximo.
Estamos em um momento da história no qual vemos falir
nossos modelos, nossa crença no ser humano, de decepção
e desesperança. E isso nos empurra para a violência,
como solução definitiva, que apaga relações, não as
reconstrói. No mundo da reencarnação para o nosso
aperfeiçoamento, tudo conduz à reconstrução, à
reparação, e o caminho do amor é sempre preferencial ao
da dor.
Como se vê, temos no Espiritismo os elementos
necessários para começar a reverter a crescente
violência, a partir de nós mesmos. É preciso resgatar a
chave do diálogo, como forma de enxergarmos a todos
filhos do mesmo pai amantíssimo, para que a violência
anunciada pela Laranja Mecânica dê lugar a distopias
melhores, de um Espírito encarnado que avança no
intelecto, mas não perde de vista a asa da moral,
buscando ser pacífico, para um dia ser chamado de filho
de Deus.
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