Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 60)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. As leis que regem a Natureza apresentam também dissonâncias, como as leis propriamente humanas?

Não. Diferentemente do que ocorre nas sociedades humanas, com a Natureza dá-se inteiramente o contrário. Nela não há dissonância nem contradições e, sim, e só, harmonia, e isso decorre das leis que a regem. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

B. A ideia relativa a Deus alterou-se ao longo dos séculos?

Sim. A concepção com respeito a Deus foi sempre relativa ao grau intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo aos movimentos civilizadores, à poesia dos climas, às raças, à florescência de diferentes povos; enfim, aos progressos espirituais da Humanidade. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

C. Acerca da natureza de Deus, que nos é dito pela Filosofia?

Se o simples bom senso humano não consegue fazer uma ideia pura e abstrata do absoluto, as tentativas da Filosofia, por sua vez, pouco ou mesmo nada têm conseguido. A natureza de Deus, bem como a sua própria existência, está, em nosso século, no mesmo pé em que se encontrava ao alvorecer da Filosofia. E podemos observar – diz Flammarion – que o nosso fim é, hoje, o mesmo que Xenófanes colimava, seiscentos anos antes da nossa era, ou seja, opor uma convicção pura e racional aos dois erros capitais, que são o ateísmo absoluto e o antropomorfismo. (Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)


Texto para leitura


1058. Se pertencêssemos a outro planeta e, de súbito, nos transportássemos a um dos nossos meios sociais no intuito de observar o que neles ocorre, ficaríamos desde logo embaraçados para dizer se uma tal sociedade se regeria por quaisquer leis. Se chegássemos a descobrir que ela presumia tê-las, haveríamos, então, de procurar, na sua conduta e consequências dela decorrentes, quais poderiam ser essas leis, em que sentido foram concebidas e não teríamos, talvez, grandes dificuldades no descobrir regras aplicáveis aos casos particulares; mas, se quiséssemos generalizar, se tentássemos apreender alguns princípios salientes, a massa de absurdos, de contradições jorrantes de todos os lados, presto nos desviaria de um amplo exame, ou nos convenceria da inexistência do objeto de nossa pesquisa. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1059. Com a Natureza dá-se inteiramente o contrário. Nela não há dissonância nem contradições e, sim, e só, harmonia. Não temos jamais de esquecer o que soubemos uma vez. Quando as regras se generalizam, as exceções aparentes tornam-se regulares. Qualquer equívoco na sua legislação portentosa é tão inaudito como um ato mal entendido. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1060. Os grandes fatos da moderna Ciência têm, por conseguinte, transformado a ideia de Deus, apresentando-o, ao demais, sob um aspecto bem diverso do encarado até agora. Esse aspecto é, ao mesmo tempo, mais grandioso e mais difícil de apreender. E, contudo, nós podemos ao menos conceber, senão esboçar, o conjunto dessa metamorfose progressiva. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1061. A ignorância havia humanizado Deus e a Ciência diviniza-o – se é que o pleonasmo não escandaliza os senhores gramáticos. Outrora, Deus foi homem; hoje, Deus é Deus. A fé do carvoeiro, ainda tão gabada, não é mais a verdadeira fé. O credo quia absurdum é absurdo duplicado. O Ser supremo, criado à imagem do homem, hoje vê apagar-se pouco a pouco essa imagem, substituída por uma realidade sem forma. Pois a forma, a definição, o tempo, a duração, a medida, o grau de potência ou atividade, a descrição, o conhecimento, não mais se aplicam a Deus e mal começam a ser percebidos. O próprio nome oculta uma ideia incompleta e preciso fora falar de Deus sem nomeá-lo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1062. Outrora, Júpiter empunhava o raio, Apolo conduzia o Sol, Netuno senhoreava os mares... Na idolatria dos budistas, Deus ressuscitava um morto sobre o túmulo de um santo, fazia falar um mudo, ouvir um surdo, crescer um carvalho numa noite, emergir da água um afogado... Desvendava a um extático as zonas do terceiro céu, imunizava do fogo, são e salvo, um santo mártir, transportava um pregador, num abrir e fechar de olhos, a cem léguas de distância, e derrogava, a cada momento, as suas próprias, eternas leis... (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1063. Ainda hoje, lá no Tibet longínquo, adoram Maitreya. A mão deste deus refreia as ondas enfurecidas, abençoa um exército e amaldiçoa o rival; dirige as chuvas em rogativas de procissões e, qual hábil jardineiro, rega aqui, ensombra ali, poda acolá, ajusta, enxerta, combina, seleciona e mantém um cadastro heráldico de nomes e datas.[i] (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1064. A maioria dos crentes em Deus o conceituam como um super-homem, alhures assentado acima das nossas cabeças, presidindo os nossos atos. Dotado de excelente vista e não inferior ouvido, mantém as rédeas do mundo e, em caso de necessidade, chama um anjo serviçal e o envia a consertar qualquer peça desarranjada do seu mecanismo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1065. A darmos crédito às tradições do Damapadam e às inscrições d’Aschoka, o Buda tem um filho – Bodisatva – mediador assentado à sua direita, além de uma terceira pessoa – Buda-Manouschi – “a realização de Deus pelo homem”. Todos eles vivem nas alturas do Nirvana eterno, rodeados de espíritos, tronos, apóstolos, mártires, pontífices, confessores, dominações, potências, magos do culto precursor, videntes da filosofia sakhya, que foram purificados etc.; tudo isso eternamente esquematizado e graduado, segundo os méritos de uma vida efêmera.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1066. A história da ideia de Deus mostra-nos que ela sempre foi relativa ao grau intelectual dos povos e de seus legisladores, correspondendo aos movimentos civilizadores, à poesia dos climas, às raças, à florescência de diferentes povos; enfim, aos progressos espirituais da Humanidade. Descendo pelo curso dos tempos, assistimos sucessivamente aos desfalecimentos e tergiversações dessa ideia imperecível, que, às vezes fulgurante e outras vezes eclipsada, pode, todavia, ser identificada sempre, nos fastos da Humanidade. Notamos, então, que esta ideia relativa difere do absoluto único, sem o qual é impossível, hoje, conceber-se a personalidade divina.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1067. Esse absoluto – importa afirmá-lo nestas últimas páginas – é absoluto mesmo e nós não o conhecemos. Ele não é o Varouna dos Árias, o Elim dos Egípcios, o Tien dos Chineses, o Ahoura-Mazda dos Persas, o Brama ou Buda dos Indianos, o Jeová dos Hebreus, o Zêus dos Gregos, o Júpiter dos Latinos, nem o que os pintores da Idade Média entronizaram na cúspide dos céus. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1068. Nosso Deus é um Deus ainda desconhecido, qual o era para os Vedas e para os sábios do Areópago de Atenas. A noção de alguns eminentes pais da Igreja Cristã e de alguns esclarecidos teólogos modernos aproxima-se, mais que outras quaisquer, desse Deus desconhecido. Mas, como compreendê-lo, quando nenhum espírito criado, nem mesmo os anjos (se é que existem) poderiam fazê-lo? (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1069. Não cabe aqui entreter-nos com as moradas imaginadas para a pessoa de Deus. Não abordaremos o poético céu dos gregos, povoado de figuras ideais, onde os deuses sempre jovens e belos se divertem, combatem e gozam com o tomar parte nos destinos humanos. Não falaremos do sombrio e iracundo Jeová dos Judeus, que pune até à terceira ou quarta geração. Nada diremos, tampouco, do céu dos Orientais, que reserva aos crentes numerosas huris, num ambiente de beleza e delícias eternas. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1070. Omitiremos o céu dos groelandeses, no qual a maior ventura consiste numa grande quantidade de peixes e de óleo de baleia, bem como o céu do indiano caçador, que se paga com abundância de caça, e o do Germano que, no Walhalla, faz do crânio do inimigo a sua taça de hidromel.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1071. Se o simples bom senso humano não pode, jamais, fazer uma ideia pura e abstrata do absoluto, as tentativas da Filosofia, por sua vez, pouco ou mesmo nada têm conseguido. Quem se desse ao trabalho de catalogar as ideias acerca de Deus, do absoluto ou daquilo a que os filósofos chamam alma do mundo, ficaria pasmo da quantidade e variedade de sistemas que, desde a origem dos tempos históricos até os nossos dias, a despeito dos progressos científicos, se imaginaram por oferecer poucos raciocínios novos, e raramente razoáveis. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1072. Dizia Goethe[ii] que os homens tratam Deus como se o Ente supremo, o Ser incompreensível, fosse a eles semelhante, pois de outro modo não diriam o Senhor Deus, o nosso, o bom Deus. Para eles e sobretudo para a gente beata, que o tem sempre nos lábios, Deus torna-se um simples vocábulo, uma expressão habitual, desligada de qualquer sentido. Entretanto, se estivessem compenetrados da grandeza de Deus, silenciariam e, respeitosamente, se abateriam de o vocalizar. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1073. Wirchow não está com a verdade quando diz que o homem nada pode conceber do que está fora dele e que tudo que está fora do homem é transcendental. O homem se retrata nos seus deuses – é ainda Schiller quem o diz. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1073. A natureza de Deus, bem como a sua própria existência, está, em nosso século, no mesmo pé em que se encontrava ao alvorecer da Filosofia. Já se pode observar, no curso geral desta obra, que o nosso fim é, hoje, o mesmo que Xenófanes colimava, seiscentos anos antes da nossa era; isto é, opor uma convicção pura e racional aos dois erros capitais, que são o ateísmo absoluto e o antropomorfismo. (Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1074. Há muito tempo que este filósofo[iii], fundador da escola de Eléa, protestou judiciosamente contra essas duas ilusões funestas. “Parece que os homens é que criaram os deuses, atribuindo-lhes as suas paixões, a sua voz, a sua fisionomia.”[iv] Se os bois e os leões tivessem mãos, se soubessem pintar e trabalhar com as mãos, como fazem os homens, os cavalos utilizariam cavalos e os bois aproveitariam os bois para representar seus deuses, dando-lhes corpo idêntico ao seu. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1075. Ele refutou as superstições que consistiam em atribuir aos deuses a própria cor, como, por exemplo, a dos Etíopes que, em serem negros de nariz chato, assim representavam os seus deuses; os Trácios, que lhes emprestavam olhos azuis e cabelos ruivos, e os Medas e Persas, que não fugiam à regra.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1076. “Há um só Deus que a tudo mais supera, / Aos deuses não somente, como aos homens, / E que aos mortais em nada se assemelha, / Nem na forma exterior e nem na essência.” Clemente de Alexandria, que nos guardou estes versos, muito bem os caracteriza quando diz que Xenófanes aí predica a unidade e a espiritualidade divina. Onde encontrar num filósofo jônio, antes de Anaxágoras, um pensamento como este: “Sem fatigar-se, ele tudo dirige pela potência intelectual.”(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1077. Arístoto, Simplícius e Théofrasto conservaram-nos a estrutura da argumentação pela qual Xenófanes demonstrava que Deus não tivera princípio nem poderia ter nascido. Impossível – diz V. Cousin[v] – não experimentar uma profunda, quase solene impressão, diante desses argumentos, quando se diz que eles representam, ao menos para a Grécia, a primeira tentativa do espírito humano para analisar sua fé e converter suas crenças em teorias. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1078. É natural, acrescenta o filósofo eclético, quando temos a noção da vida e desta existência tão grandiosa e variada, da qual compartilhamos; quando consideramos a extensão deste mundo visível, a par da harmonia que nele reina e da beleza que reluz em todas as suas partes; quando nos detemos onde se detêm os nossos sentidos imaginativos; é natural, repetimos, concluir que os seres componentes deste mundo são os únicos que existem, que este grande todo, tão harmonioso e uno, é o verdadeiro objeto e a última aplicação do conceito de unidade e que, numa palavra, esse tudo é Deus. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1079. Exprima-se esta tirada em língua grega e aí teremos o panteísmo, que é a concepção do todo como Deus único. Por outro lado, quando descobrimos que a unidade aparente do todo não é senão uma harmonia que comporta variedade infinita, assemelhando-se a uma guerra e a uma revolução permanentes, então já não é natural destacar do mundo o conceito de unidade, que é indestrutível em nós, e, assim destacada do modelo imperfeito deste mundo visível, ligá-la a um ser invisível, tipo sagrado da unidade absoluta, além da qual nada mais há que conceber e investigar.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1080. Estas duas soluções exclusivistas do problema fundamental sempre vieram à tona em todas as grandes épocas da história da Filosofia, alterada, é fato, com o progresso dos tempos, mas no fundo sempre idênticas, de modo a poder-se dizer que a história do seu perpétuo litígio com alternativas de predomínio de uma ou de outra foi, até o presente, a história mesma da Filosofia. E justamente por estarem no âmago do pensamento é que essas duas soluções se reproduzem constantemente, incapazes de se separarem e de se satisfazerem. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.) (Continua no próximo número.)


 

[i] Neste lanço o Autor não é justo. O nosso catolicismo de hoje (estamos em 1939 e este livro é de 1867) principalmente aqui, no Brasil, continua a abençoar espadas e abençoar ou amaldiçoar governos e revoluções. Oportunista e mimetista, sempre, não há partido que lhe não quadre ao seu deus, exceto, claro, os que acreditam em Deus e lhe dispensam os cânones. (N. T.)

[ii] Entretiens de Goethe et d’Eckemann, 1º, 8.

[iii] V. Clén. Alex. Strom. V. – Eusèbe. Proep. Evang. 13º.

[iv] Theodor – De Affect. Curat, 3º.

[v] Fragments de Philosophie Ancienne.

 



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita