Passado. Presente. Futuro.
Numa sociedade, ao que parece, cada vez mais conturbada,
na qual as pessoas rapidamente esquecem ou ignoram o
passado, quase se poderia afirmar que talvez seja
“importante” refletir sobre o “Bem” e o “Mal”, porque ao
longo da vida surgem tantos interesses, situações,
pessoas, valores, sentimentos e emoções, umas muito
boas, outras, aparentemente inócuas, e, ainda, outras
bastante más que, em bom rigor, é difícil estabelecer um
equilíbrio de relacionamentos verdadeiros, solidários,
amigáveis, leais, de total confiança, credibilidade e
reciprocidade, e tudo isto faz parte da nossa vida.
É verdade que não existirão pessoas perfeitamente boas,
nem radicalmente más, como também se pode concordar que,
provavelmente, a maioria tende para o meio-termo, uma
certa “apatia” para as mais amplas relações
interpessoais, indiferentes ao que existe à sua esquerda
ou à sua direita; abaixo ou acima, aos conflitos entre
pessoas, com as quais até desejamos manter relações de
cordialidade, mesmo que entre tais pessoas existam
sentimentos profundamente negativos, como o ódio, a
vingança, a arrogância e os chamados “superdotados
narizinhos empinados”. Há para todos os gostos.
O princípio salomônico, segundo o qual “no meio é que
está a virtude” ou a “verdade”, ou ainda a “decisão
acertada”, pode não ser aplicável a todos os interesses,
situações e pessoas. A gestão dos equilíbrios não é
possível em todas as circunstâncias da vida, porque
existem regras, princípios e valores que, ao longo dos
séculos, têm sido considerados fundamentais para,
precisamente, haver comportamentos racionais, mas também
distintivos do ser humano, como são os valores e os
sentimentos, muitos dos quais deveriam constituir-se
como autênticos dogmas, inquestionáveis, sem necessidade
de qualquer recurso de prova técnico-científica.
Toda e qualquer pessoa, muito dificilmente, se pode
considerar absoluta em qualquer domínio. É verdade que
se aceitam afirmações, posições e comportamentos de
grande rigidez, na defesa de determinados princípios e
valores.
É plausível que se conceda o princípio da presunção de
inocência, até prova inequívoca, indesmentível e
confirmada, de que este ou aquele fato não foi, ou foi
praticado por uma determinada pessoa que, ainda assim,
tem sempre o direito à sua própria defesa, para provar a
sua inocência e defender o seu bom nome, como o dever de
aceitar o contraditório, desde que tais direitos e
deveres ajudem na descoberta da verdade.
E, se por um lado, o meio-termo é que muitas vezes se
procura – o consenso, o equilíbrio e a harmonia que se
equiparam em certos contextos à virtude –, claramente, é
desejável que, desde já, ninguém seja prejudicado nos
seus valores, sentimentos, emoções; que as atitudes de
consideração, de estima, de respeito e, se possível e
por que não?, de amizade fiquem sempre salvaguardadas,
porque são indubitavelmente os princípios, os valores e
os sentimentos verdadeiros e desinteressados, livres de
quaisquer intenções inconfessáveis, que justamente
conduzem os comportamentos e as decisões de bom senso.
Por outro lado, todas as pessoas têm um passado, no qual
ficam, para todo o sempre, inscritas as boas e as más
ações, os princípios, os valores, os sentimentos e as
emoções que se vão experienciando. Dizer que não nos
devemos “agarrar” ao passado, que o importante é o
futuro, poderá corresponder a uma “meia-verdade” porque,
realmente, vive-se sempre um pouco o presente com o que
foi conseguido no passado; e projeta-se o futuro,
também, com algo do passado que é analisado no presente
para se corrigir o que foi malfeito, e aperfeiçoar o que
de melhor se fez.
Ninguém, na plena posse das suas faculdades mentais
consegue ignorar o passado e, nesse sentido, temos de
aprender a ser humildes, a ser gratos por tudo o que nos
aconteceu de bom, mas também de mal, porque sempre
tiramos ilações destas duas dimensões da vida humana: o
bem e o mal.
Ignorar, por exemplo, um passado de privações, de
carências, de sofrimento, de ajuda de amigos, só porque
no presente estamos bem e pensamos que no futuro já não
vamos necessitar de mais ninguém, constitui um
comportamento que, no mínimo, pode ser interpretado como
de ingratidão, altivez, orgulho injustificado e,
eventualmente, uma vaidade imerecida.
A vida dá muitas voltas, o mundo tem muitas “esquinas”
apesar da sua configuração ser praticamente redonda.
Frequentemente, as pessoas recordam fatos, situações e
outras pessoas que conheceram, com quem até conviveram
há dezenas de anos, a milhares de quilômetros de
distância, em circunstâncias inimagináveis, que esperam
ou então desejam voltar a reencontrar, a conviver com
elas, que até teriam sido amicíssimas e se ajudado
mutuamente.
Com muita frequência, incompreensivelmente, o que por
vezes se verifica, em inúmeras pessoas, é uma espécie de
“amnésia” em relação a quase tudo de bom que outras
fizeram por elas. E quando são aquelas pessoas a
necessitar de ajuda – e nem sequer se aborda o aspecto
material, mas apenas um auxílio moral, ético, solidário,
leal e, principalmente, a amizade das pessoas a quem nós
já fizemos bem –, elas nos viram a cara, mudam de rua,
evitam-nos e nem sequer atendem os nossos contatos.
Tais pessoas, num dado período das suas vidas, num
presente que elas julgam nunca mais acabar porque
consideram que já não precisam mais de quem no passado
sempre esteve ao lado delas (e em alguns casos pontuais,
ainda continuam) insensível, incluindo as situações de
doença de quem sempre foi amigo delas, ficam
indiferentes, e quantas vezes revelam até grande
impiedade, tratando as pessoas, que tudo fizeram e deram
por elas, como se fossem quaisquer desconhecidas, ou
conhecidas de ocasião, entre bilhões de outras pessoas
ignoradas, ou seja, como se já não existissem.
Para aquelas pessoas, provavelmente – pensam elas
próprias e agem em conformidade – não existe passado,
quando muito recordam esse passado, se dele ainda
subsistirem situações, interesses e pessoas que lhes
possam vir a servir no presente, para se autoafirmarem
no futuro, para alimentarem uma grande exposição de
egocentrismos ou, ainda, sustentar a ingratidão,
exercerem uma espécie de autonomia axiológica,
manifestação de indiferença e/ou também de
superioridade, de sobranceria, de humilhação e
sofrimento a quem, eventualmente, tantas vezes lhes fez
bem e continua a querer bem.
Poder-se-á admitir, em tese, que quem assim pensa e age
está a renegar partes de um passado que há na sua
história existencial, que viveu quantas vezes com várias
dificuldades, que colheu apoios de pessoas de bem, que
até conquistou amizades, sentimentos e emoções que,
sincera, humilde, generosamente e de boa-fé lhe foram
concedidos.
Ninguém ignora que tais pensamentos e comportamentos
magoam profundamente, provocam desgostos que, em
situações-limite, levam ao desespero, à autodestruição
gradual e à morte de quem, precisamente, nesse passado,
tanto bem quis e fez, e que agora recebe a indiferença,
evasivas, sorrisos e palavras aparentemente simpáticas,
porém, quem sabe?, de circunstância. É que as
descortesias, desconsiderações e indiferenças doem tanto
mais quanto mais partem de pessoas por quem nós tínhamos
(nalguns casos ainda poderemos ter) uma incomensurável
solidariedade, amizade e lealdade, com profunda e
sincera estima e consideração.
O presente é um momento fugaz, lapso de tempo de ínfima
duração; o resto é futuro, que está sempre umas frações
de segundo à frente de todas as vidas que, em parte, até
se ignora como vai ser, o que vai acontecer, o que se
vai conseguir, mas é legítimo e justo que se lute por um
futuro cada vez melhor, em todas as dimensões da vida
humana.
Um futuro que proporcione prosperidade, conforto e
dignidade, uma hierarquia de valores próprios de uma
sociedade civilizada, educada, humilde, onde a gratidão
seja, esta sim, o consenso, o meio e justo termo, a
verdade, a virtude, obviamente, envolvidas nos outros
valores humanistas, como a solidariedade, a amizade, a
lealdade, a boa-fé, a palavra de honra, a assunção dos
compromissos, a guarda intransigente das intimidades, a
retribuição de tudo quanto é bom: do bem, da
generosidade, da amabilidade, da própria caridade e
compaixão, estas no sentido mais carinhoso do que
religioso.
Que ninguém se convença de que há futuro sem passado,
que alguém cometa a leviandade de pensar que jamais vai
precisar de quem no passado foi seu amigo e que, apesar
de persistir em atitudes de indiferença, evasivas,
humilhações, deslealdades, não vá voltar a carecer de um
apoio qualquer, num futuro mais ou menos próximo,
exatamente das mesmas pessoas que já as ajudaram, mas
que agora abatem, desconsideram, ignoram, fogem, nem
sequer respondem aos apelos de quem sempre esteve do seu
lado.
Pessoa alguma evita o seu passado e poderá garantir que
vá ter um futuro totalmente autônomo, e que essa absurda
situação lhe vá permitir continuar a desprezar quem num
passado, eventualmente recente, deu todo o apoio para
que a vida retomasse certa normalidade: pessoal,
familiar, matrimonial e mesmo social.
Quantas pessoas há que, ainda num passado recente,
estavam muitíssimo bem na vida: com saúde, conforto,
bens materiais, amigos (estes, enquanto durou a então
situação confortável), mas que hoje e, infelizmente, num
futuro próximo, sempre um bocadinho à frente de um
presente momentâneo, estarão na maior miséria, que até
os então “amigos de ocasião” as abandonam!
E quantos num passado mais ou menos longínquo estavam
muito mal na vida, sem saúde, sem trabalho, sem os tais
amigos, marginalizados por alguns estratos da sociedade,
até pela família (excetuando os amigos verdadeiros,
aqueles que dizemos do coração e para a vida), hoje, por
mérito próprio, estudo, trabalho, poupança, com o apoio
daqueles amigos sinceros, verdadeiros, também com um
pouco de sorte e de saúde, estão bem na vida!
Agora, ao estarem bem na vida, provavelmente, até
estarão a ajudar aqueles que no passado estavam bem, mas
que no presente já não estão, pois que humilharam,
desprezaram e magoaram precisamente os que agora têm
condições para os auxiliar, com generosidade, sem ódios
nem rancores, mas com a mesma amizade e “Amor-de-Amigo”
de sempre. Quem pensa que não importa o passado, ou que
ele não se repete certamente de forma diferente, poderá
sofrer as consequências de tais imprudências e possíveis
orgulhos desmedidos.
O Bem e o Mal existem. As virtudes e os defeitos, não se
podem ignorar. O amor e o ódio permanecem. O passado e o
futuro são as duas fases importantes das nossas vidas,
porque o presente é um passado em revisão e um futuro em
preparação. Só que o presente também é momento de
reflexão retroativa, proativa e projetiva. O presente
está em cada momento da nossa vida.
As injustiças existem e, independentemente das crenças e
convicções de cada pessoa, infelizmente, há quem as
retribua com manifesto prazer. É fundamental que se
pratiquem a justiça e a gratidão, que tantas vezes se
ignoram, quanto mais não sejam por complexos e
mesquinhos preconceitos de alegadas superioridades.
Sejamos justos, generosos, gratos e leais para com quem
nos faz e quer bem, seja no passado, seja neste momento,
seja no futuro, mas ainda e, em geral, para com todas as
pessoas. É esta a regra salomônica, é este o bom senso,
é esta a virtude e a verdade.
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