Clássicos 
do Espiritismo

por Angélica Reis

 
Deus na Natureza

Camille Flammarion

(Parte 62)

 

Continuamos o estudo metódico e sequencial do livro Deus na Natureza, de autoria de Camille Flammarion, escrito na segunda metade do século 19, no ano de1867.


Questões preliminares


A. A base em que se apoia o ateísmo é mais difícil de aceitar do que a própria existência de Deus?

Sim. Segundo Flammarion, a tendência geral e progressiva do átomo para a mônada animada e desta para o homem não se pode explicar sem a existência de um pensamento diretor e, em todos os casos, é bem mais difícil de aceitar que a existência do próprio Deus.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

B. A que, efetivamente, se reduz a negação materialista?

Na maioria dos casos, o que ocorre, na tese materialista, é o deslocamento da questão e nada mais. Em vez de chamar Deus à direção das forças que regem o mundo, os convencidos de ateísmo deixam de o nomear e, em vez de atribuir a um ser inteligente a inteligência dessas forças, outorgam-na à própria matéria. (Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

C. Que considerações faz Flammarion a respeito da tese dos que negam a Deus?

Flammarion entende que os argumentos deles apenas removem, mas não resolvem o problema, visto que os fatos continuam irrevogáveis. Negam a Deus, mas não podem negar a força. Em lugar de proclamarem a soberania dessa força, consideram-na escrava da matéria inerte. Nisso reside todo o nó da questão, nó que ainda não foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas, visto que a observação direta da retina humana não vai até lá. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)


Texto para leitura


1106. A opinião que proclama a identidade substancial de Deus com o mundo, e que recentemente tem tido uma revivescência favorável, não passa de panteísmo absoluto, na sua forma simples e íntegra. Quaisquer que sejam as palavras com que o expressem, um espírito judicioso jamais se iludiria. Se Deus e o mundo não são mais que um mesmo e único ser, Deus não existe.(Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1107. Outra concepção baseada na precedente, porém, elevada a um grau de extrema sutileza, é a do Deus-ideal, a afirmar que Deus e o mundo são substancialmente, mas não logicamente idênticos. Deus seria, assim, a ideia do mundo, para que o mundo fosse a realidade de Deus. “Esse Deus que um filósofo nos inculca relegado em seu trono, em plenitude de eternidade silenciosa e vazia, não tem outra realidade que não a ideia, nem trono outro além do Espírito.” Deus, aí, separa-se do mundo, mediante uma operação intelectual do homem. É um ideal criado pela lógica. Pensando em Deus, criamo-lo. Não existisse o homem e Deus tampouco existiria. Assim, com esta hipótese, o Deus real, idêntico ao mundo, não é Deus e o Deus ideal, distinto do mundo, em realidade não existe. É já de si, como vemos, uma teoria alambicada. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1108. A que goza agora de maior conceito, para uma certa categoria de espíritos convencidos de sua superioridade, é, porém, a que reverencia com a maior polidez o Deus vulgar, pessoal e humano, que venera os grandes princípios da Moral, da Filosofia e da Estética, declarando, todavia, que Deus, tal como o Bem, o Belo, a Verdade, ainda não existem, mas “estão à bica”. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1109. Kant, na Crítica da Razão Pura, demonstrou que o homem está invencivelmente disposto a supor reais os objetos de sua crença, sendo estes embora puramente subjetivos. Hegel retomou a grande máxima do velho Protágoras, que diz ser o homem a medida de todas as coisas, e ensinou que o indivíduo tende a erigir-se em princípio absoluto, reportando tudo a si, mostrando aos clarividentes Germanos, de olhar prevenido nesse sentido, a ideia a desenvolver-se no Universo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1110. A escola a que nos referimos, atualmente representada por Vacherot, Renan, Taine, Scherer e talvez Saint-Beuve, ensina o desenvolvimento da ideia na Natureza, o futuro universal. O Universo caminha para a perfeição, à revelia de qualquer direção inteligente. Deus é um filósofo sem sabedoria, inferior mesmo ao herói de Sedan, visto que não se conhece a si mesmo e não tem existência pessoal. É simplesmente Divino; portanto, uma qualidade e não um ser. Nem há uma verdade absoluta, mas nuanças e metamorfoses. O pensador que contempla esse vago progresso é o mais ditoso e o mais santo dos homens. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1111. O Sr. Caro definiu bem esta religião, dizendo-a a alucinação do Divino ou o quietismo científico. A Ciência, porém, não admite semelhante quietismo, nem uma tal alucinação. É uma hipótese que se desvanece diante da crítica severa. Já evidenciamos: a tendência geral e progressiva do átomo para a mônada animada e desta para o homem, não se pode explicar sem a existência de um pensamento diretor e, em todos os casos, bem mais difícil de aceitar que o do próprio Deus. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1112. Uma quarta escola é a que se intitula positivista e que resolveu – fato virgem – pela primeira vez, construir uma religião ateia, engendrando uma nova classificação dos conhecimentos humanos, fundada na observação pura e isenta de toda e qualquer investigação causal. Mau grado ao seu sistema, algo vaidoso, de eliminação e negação, essa escola não prescindiu de cultuar um Deus; – a Humanidade – e cujo profeta é Augusto Comte. É um Deus que tem altares, culto, sacerdotes (tanto é verdade que os extremos se tocam), calendário, festividades. O orçamento é de antemão regulado, cabendo aos vigários seis mil e aos curas doze mil francos. O grão-sacerdote, que é no caso o Sr. Comte, tem sessenta mil francos, etc. Aqui, não há outro Deus senão a Humanidade. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1113. Essas teorias, para os espíritos afeitos a especulações metafísicas, ainda guardam um aspecto compreensível. Outros há que, sublimados e quintessenciados, numa espécie de vapor transparente, elevam a metáfora a um tal ponto que Deus deixa completamente de existir, para que só domine a sua metáfora transcendente. “No cume das coisas, nos píncaros do éter luminoso e inacessível, pronuncia-se o axioma eterno e a repercussão prolongada desta fórmula criadora compõe, por suas ondulações inexauríveis, a imensidade do Universo. Todas as séries de coisas provêm dela, religadas pelos divinos anéis de áurea cadeia.” (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1114. Por fim, vejamos o ateísmo absoluto, que se afirma quadradamente, sem pestanejar, e vai até à blasfêmia. Eis um exemplo:

“A análise metafísica reduziu a nada o velho dogma. Reduzindo Deus a entidade incondicionada, demonstrou-o impossível; provou que os seus atributos são os mesmos do nosso ser... Com que direito me viriam agora dizer – seja santo porque eu o sou? Mentiroso! – dir-lhe-ia eu – Deus imbecil, teu reino findou, procura outras vítimas entre os animais... Se é que Satã existe, o Satã és tu. Outrora, podias triunfar, mas hoje, eis-te destronado. Teu nome, que foi, por tanto tempo, a última palavra do sábio, a sanção do juiz, a força do príncipe, a esperança do pobre, o refúgio do pecador repeso, esse nome intransmissível, inalienável, de agora em diante está fadado ao desprezo, ao anátema, ao apupo dos homens. Porque Deus é asneira e covardia, hipocrisia e mentira, miséria e tirania; é, em suma, o mal. Enquanto a Humanidade se prosternar diante de um altar, a Humanidade será réproba. Retira-te de mim, pois hoje, curado do teu temor e feito sábio, eu juro, de mãos levantadas para o céu, que não passas de carrasco da minha razão, espectro da minha consciência!”[i]. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1115. Esta cólera nada tem de científica, salvo, talvez, do ponto de vista médico, em relação aos cuidados que reclama a alienação mental. Presumimos que os nossos argumentos fizeram justiça a essa negação absoluta de pensamentos, na Natureza. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1116. De resto, a que se reduz a negação materialista? Buscando o âmago das coisas, percebemos logo que essas negações não podem ser tão absolutamente negativas quanto o pretendem. O insensato não o será jamais impunemente e não é tão fácil, quanto possa parecer, uma convicção profunda no ateísmo. Na maioria dos casos, o que ocorre é o deslocamento da questão e nada mais. Em vez de chamar Deus à direção das forças que regem o mundo, os convencidos de ateísmo deixam de o nomear e, em vez de atribuir a um ser inteligente a inteligência dessas forças, outorgam-na à própria matéria. (Deus na Natureza – Quinta Parte.Deus.)

1117. Removem, assim, mas não resolvem, o problema, pois os fatos continuam irrevogáveis. Negam a Deus, mas não podem negar a força. Apenas, em lugar de proclamarem a soberania dessa força, consideram-na escrava da matéria inerte. Nisso reside todo o nó da questão, nó que ainda não foi desatado pelos materialistas nem pelos espiritualistas, visto que a observação direta da retina humana não vai até lá. A diferença principal que os divide no discrime está em que os primeiros não explicam a criação, nem o plano, nem a conservação da Natureza, enquanto que os segundos o fazem plausivelmente. Consideradas como duas hipóteses, as duas doutrinas contrárias não se equivalem e todo o homem sincero há de inclinar-se sempre para a que admite um Criador. Porque esta é, não só mais completa, como mais franca. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

1118. Todas as propriedades instintivas ou intelectuais que os nossos adversários não podem deixar de atribuir à matéria para explicar a ação desta, sua tendência progressiva, seu método seletivo, desde a formação do vegetal humilde à formação de um cérebro humano, são atributos que eles extraem do ignoto que nós denominamos Deus e que eles homenageiam chamando-lhe matéria. Mas, em abstraírem do mundo a ideia de ordem, verdade, beleza, perfeição, harmonia espiritual e corporal, eles arrebatam ao mundo a sua alma e a sua vida. Nós, porém, não vemos a vantagem de substituir um ser vivo por um cadáver. Seu Universo assemelha-se aos enforcados, com os quais fizemos experiências elétricas, há algum tempo. Eles como que ressuscitavam, aparentemente, graças à aplicação da eletricidade ao sistema nervoso, que lhes movimentava todo o corpo. (Deus na Natureza – Quinta Parte. Deus.)

(Continua no próximo número.)

 

[i]  Proudhon – Système des Contradictions Economiques, ou Philosophie de la Misère.

 


 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita