Deveres e Direitos
Nos primórdios de nossa jornada evolutiva, ensina a
Doutrina, Deus determinou, consoante Sua perfeita
sabedoria, se fizesse presente em nossa individualidade
o instinto de conservação. Esta necessária providência
facultou ao homem sobreviver em ambientes extremamente
hostis, mundos primitivos, tais quais se apresentavam no
passado longínquo. Ademais, a medida se
justificou plenamente, porquanto, sem esta predisposição
nata a predominar, não conseguiríamos preservar a
existência durante o tempo necessário à consolidação do
aprendizado das primeiras lições de vida, quando
precisávamos iniciar o desenvolvimento, tanto do
intelecto, quanto das noções rudimentares da moral,
considerando nos encontrarmos no estágio da simplicidade
e ignorância.
Nada obstante, este mesmo impulso natural, viabilizando
a possibilidade da manutenção da vida, também construiu
em muitos de nós, pelo nosso continuado exercício no mau
uso do livre-arbítrio, enfatize-se, por opção própria
deixando-nos dominar por este instinto, padrões de
conduta culminando no surgimento do egoísmo e do
orgulho, filhos diletos do instinto de conservação.
Muitos ainda hoje creem tudo lhes pertencer, estando a
natureza a serviço deles: São o centro do Universo!
Estes dois vícios construíram em muitos uma percepção
equivocada da vida, fazendo acreditar só existissem
necessidades próprias: a melhor caverna servia para nos
abrigar, as mais generosas porções de carne de animais
abatidos nos pertenceriam, os melhores frutos ofertados
pela natureza seriam nossos, e assim fomos, de
existência em existência, buscando a nossa melhor
conveniência, entretanto, ainda não entendíamos, a
manutenção desta conduta se dava em detrimento das
necessidades alheias. Era o comportamento egoísta
atuando, se fortalecendo passo a passo.
Ao desenvolvermos gradativamente a noção de moral, nem
tudo podia nos pertencer, começamos a notar, não éramos
mais o eixo central do Cosmo, afinal, estabelecemos
afinidades com outros Espíritos, e, se a nossa
satisfação fosse a única meta da existência, nossos
amados pereceriam, não vingariam na vida. Iniciamos,
desta forma, um lento processo de conscientização sobre
a existência de deveres, conceito até então totalmente
desconhecido, e consequentemente começamos igualmente a
tomar consciência da existência de um direito alheio.
Elaborou-se desta forma, primeiro, o conceito de dever,
em seguida o do direito.
É André Luiz quem também nos ajuda a refletir
sobre esta questão1:
Em razão do apego aos rebentos da própria carne,
institui a propriedade da faixa de solo em que se lhe
encrava a moradia e, atendendo a essa mesma raiz de
afetividade, traça a si próprio determinadas regras
de conduta [deveres],
para que não imponha aos semelhantes ofensas e prejuízos
que não deseja receber. [...] Nasce, desse modo, para
ele, a noção do direito sobre o alicerce das
obrigações respeitadas [deveres]. (Destaques
nossos.)
Quem fala em regras de conduta e obrigações,
fala em deveres. Entretanto, não é fácil abrir mão de um
bem, de uma conquista, em benefício de outro, daí a
grande luta estabelecida, mesmo nos dias atuais no
entendimento dos seres humanos, estejam na fase juvenil,
adulta ou idosa, sejam homens ou mulheres, do Norte ou
do Sul, aceitarem a igualdade de todos perante Deus,
porquanto estes também são tão desejosos e merecedores
de usufruir a mesma felicidade reivindicada por nós
mesmos.
Este possível caminhar se agravou quando se observa a
forma como evoluiu esta parte da humanidade universal
ocupando o planeta Terra, orgulhosa do seu imenso
conhecimento técnico, mas com consciência moral
rudimentar. Dizemos parte, pois há infinitos mundos,
esta foi uma opção na escolha da evolução dos homens no
planeta Terra, outras civilizações, ou humanidades de
outros planetas tiveram jornadas diferentes, de acordo
com suas preferências em relação à conduta moral.
O egoísmo ainda viceja forte e frondoso a nos apontar
apenas a busca pelos nossos direitos como solução de
nossos problemas e dificuldades, e, principalmente, para
nos trazer prazer e felicidade.
Observando agora particularmente o nosso país, deixando
o planeta com as suas outras culturas e costumes, pois
as leis refletem a sociedade, verifica-se facilmente
esta vertente nos dominando, nos distanciando do lado
real que acreditamos deveríamos nos debruçar, qual seja
o do cumprimento de nossos deveres antes de tudo.
Realizando ligeira pesquisa em nossa constituição2,
observa-se a palavra direito sendo citada em bem mais de
uma centena de vezes, enquanto dever, obrigação ou
obrigações, se apresenta em algumas dezenas. Repetindo o
mesmo exercício no Estatuto da Criança e do Adolescente3,
constata-se, basicamente, a mesma proporção
anteriormente citada entre os vocábulos direito(s) e
dever(es). Ainda uma vez mais, analisando o Estatuto
Maria da Penha4, nota-se também a
significativa supremacia do vocábulo direito em relação
à palavra dever, parece ser sintomático.
Quais ensinamentos poder-se-iam retirar desta rápida
pesquisa? Certamente um deles seria a constatação da
exacerbada preocupação com os nossos direitos, por
acreditarmos na especificação detalhada dos muitos
direitos como solução para encontrar a harmonia,
materializando plenamente a justiça dentro do organismo
social. Há mesmo uma expressão muito usada em nossas
plagas quando o trabalhador se sente prejudicado nas
relações de trabalho com o seu patrão: Vou procurar os
meus direitos, ameaça! Expressão esta amiúde também
empregada em outras situações, como nas interações com
a prestação de serviços, compras mal resolvidas, e em
tantas outras interações com a sociedade.
Nestas horas, no entanto, raramente nos perguntamos:
quando desejamos avidamente procurar os nossos muitos e
bem delineados direitos, fomos cumpridores de nossos
humildes e esquecidos deveres? Qual foi a nossa
contrapartida na relação? Cumprimos com tudo que de nós
era esperado, ou será que não observamos obrigações,
desrespeitando os direitos alheios, como consequência,
descuidando deste modo do outro lado da moeda?
Aliás, falando em moeda, quando o próprio Mestre
recomendou a sábia máxima que aturdiu os maliciosos
inquiridores fariseus: “a César o que é de César”,
ensinou categoricamente vir em primeiro lugar o dever de
dar ao Imperador o que lhe era de direito.
É interessante observar a acentuada e antiquíssima
preocupação das sociedades, consoante com o entendimento
e amadurecimento moral ainda incipiente da época, em
estudar e formalizar estruturas de ensino e prática
sobre o Direito. Tome-se como exemplo a citação de
Emmanuel5: “Em Roma, surpreendemos o
Direito ensinando que o patrimônio e a liberdade do
próximo devem ser respeitados, no entanto, em nenhuma
civilização do mundo observamos juntos tantos gênios da
flagelação e da morte”.
Todavia, não se tem notícia sobre uma organização de
estudos voltada para a compreensão apenas do Dever.
Teremos algum dia também o curso de Deveres? buscando
igualmente especificar detalhadamente as nossas
obrigações, nos conscientizando da necessidade imperiosa
de antes de buscar com sofreguidão os nossos direitos,
observarmos primeiro se os nossos deveres foram
cumpridos?
Porém, não se apresenta esta realidade, a lei humana, de
modo geral, embora tenha a nobre intenção de bem reger a
vida em sociedade, visando ao bem comum, ainda parece
incentivar a conduta de cada qual cuidando apenas de si,
em uma busca desenfreada pelo atendimento das
necessidades básicas e atingimento de metas pessoais. Se
considerarmos ainda a imensidade de atos não praticados,
mas desejados, unicamente na alçada do tribunal da
consciência, percebemos o quanto ainda precisamos
avançar em moralidade e sabedoria para aceitar
pacificamente o cumprimento dos deveres como norma
primeira de conduta para nós mesmos.
Jesus já nos apontou a importância do dever cumprido
quando nos propôs a Parábola do Bom Samaritano,
colocando em destaque o viajante de Samaria, perfeito
cumpridor do próprio dever, ou por outra, superando em
muito o atendimento das obrigações, pois não só auxiliou
um desconhecido, quanto por ele se responsabilizou após
o haver instalado em hospedaria próxima na estrada.
Enquanto não nos conscientizarmos de que a vida em
sociedade requer a rigorosa observação do cumprimento de
nossos deveres, antes de nos aventurarmos a procurar os
nossos tão bem delineados direitos, prepararemos muitos
Estatutos, formalizaremos inúmeras leis, objetivando
defender o direito daqueles que por sua posição mais
frágil precisam ser defendidos, contudo, nos
frustraremos ainda por longo tempo verificando
desiludidos que mesmo estabelecidos os direitos alheios
em todas as suas particularidades e minúcias, estes
ainda por muito tempo deixarão de ser respeitados.
As leis ainda se destinam àqueles destituídos de um
justo sentimento e entendimento, não indicando ser muito
mais importante cumprir simplesmente os nossos deveres,
ao invés de redigir, criar e lembrar infinitos direitos,
afinal, a noção de Direito não modifica a essência
humana, a conscientização do Dever, sim.
Este tempo chegará à medida de nosso esforço para viver
a Lei do Cristo e não a “lei de Gérson”: "Amar o próximo
como a si mesmo: fazer pelos outros o que quereríamos
que os outros fizessem por nós", sendo esta a expressão
mais completa da caridade, porque resume todos os deveres do
homem para com o próximo6.(Destaque
nosso.)
Nesta hora, então, a máxima: Dever cumprido, direito
esquecido vigerá conosco eternamente.
Notas:
1 XAVIER,
Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois
Mundos. Pelo Espírito André Luiz. 1. ed. Rio de
Janeiro: FEB, 1959. cap. XI, p. 80.
2 Disponível
em: eis
o link - 1 - Acesso em: 19/6/2018
3 Disponível
em: eis
o link - 2 - Acesso em: 19/6/2018
4 Disponível
em: eis
o link - 3 - Acesso em: 19/6/2018
5 XAVIER,
Francisco Cândido. Roteiro. Pelo Espírito
Emmanuel. 5. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1980. cap. 12, p.
57.
6 KARDEC,
Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad.
Guillon Ribeiro. 97. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987. cap.
XI, item 4, p. 190.
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