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por Rogério Miguez

 

Todos os aflitos são bem-aventurados?


Na Carta Magna da humanidade, proferida pelo Cristo no imortal Sermão do Monte, Jesus citou algumas situações de vida, muito comuns, que poderiam nos conduzir à tão desejada felicidade.

Embora há dois mil anos, ciente deste mundo ainda se caracterizar pela existência de muito choro e ranger de dentes, e cônscio também de que a Terra se manteria sob esta tônica ainda por bom tempo, o Mestre dos mestres nos deixou algumas palavras de conforto e orientação visando nos tranquilizar e nos dar ânimo para continuarmos as nossas particulares jornadas sem esmorecer, buscando sempre a nossa melhora moral, apesar dos contratempos encontrados.

Em O Evangelho segundo o Espiritismo1, o Codificador ressuscitou e bem enfatizou uma expressão resumindo a essência dos indeléveis ensinos de Jesus comunicados no Monte: Bem-aventurados os aflitos, pois as bem-aventuranças ditadas por Jesus referem-se, de uma maneira geral, a situações de apreensão ou dificuldade possíveis de serem experimentadas durante uma existência, contudo, com a indicação de um desfecho feliz.

É de se notar, muitos de nós, sem refletir detidamente a propósito das explicações de Allan Kardec a respeito da temática e, igualmente sobre as treze excelentes instruções dos Espíritos acompanhando os judiciosos comentários de Kardec, por força de nossa própria incapacidade ou mesmo desatenção em bem avaliar os textos, somos levados a acreditar que bastaria estarmos aflitos ou ansiosos para nos enquadrarmos na condição de bem-aventurados, afinal, assim afirmou Jesus, tendo Kardec enfatizado este aparente princípio divino.

Este equivocado entendimento de muitos nos faz concluir que para bem exercitar e aproveitar as oportunidades da vida é preciso de um pouco de bom senso, virtude esta característica do Mestre Lionês, pois a possuía a mãos-cheias, caso contrário, constroem-se armadilhas para nós mesmos, com resultados catastróficos se sucedendo em futuro próximo quando, cientes então de que aquilo que acreditávamos não representar a verdade, caímos na realidade a lamentar o tempo perdido.

Em momento algum, tanto Jesus, bem como Kardec afirmaram bastar padecer para ser bem-aventurado, porquanto, se assim o fora, todos nós seríamos bem-aventurados, pois não faltam lágrimas e ranger de dentes em nosso mundo, nunca faltaram. Em planeta de provas e expiações, situações de aparente infortúnio e as chamadas desgraças são as que mais se apresentam.

Se fosse o caso, seria suficiente afligir-se para ser aquinhoado em futuro próximo com um assento ao lado do Pai para desfrutar das benesses eternas, recompensas estas guardadas para quem muito sofreu, e mais, se esta fosse uma lei divina, seria muito oportuno e mesmo previdente se criar novos padecimentos, além daqueles já existentes, pois, quanto mais sofrêssemos, teríamos a certeza de ter assegurado o nosso lugar no “Condomínio Celestial”.

Não deve ser assim, não pode ser assim, graças ao bom Deus não é assim, diz-nos a razão, seria um contrassenso, um completo absurdo, imaginar que pela quantidade de decepções e desgostos enfrentados seríamos salvos pela eternidade afora, enquanto aqueles que por razões diversas e desconhecidas tivessem desfrutado de uma vida tranquila, sem grandes contratempos, estariam irremediavelmente perdidos, sendo encaminhados, desta forma, para o “Condomínio dos Deserdados”.

Mas então, onde está a sabedoria deste ensino, como entender estas promessas Crísticas? Estariam Jesus e Allan Kardec equivocados? Penar não seria condição necessária e suficiente para nos conduzir à felicidade, à salvação?

Claro que não, pois, como dito, sendo ainda a Terra orbe distante da condição de mundo celeste ou divino, conforme classificação dos próprios Espíritos, o que mais se apresentará em nossas vidas ainda por largo tempo são amarguras e decepções, com o potencial de nos conduzir a lamúrias e inquietações.

Para bem viver e construir a nossa evolução de modo seguro e concreto é preciso saber sofrer, há uma “ciência”, exigindo de todos os sofredores: paciência ativa, resignação construtiva, submissão dinâmica às inesperadas situações indesejadas surgindo aqui e ali, em uma palavra: uma fé com obras. As virtudes citadas não podem ser passivas, isto significa que podemos e devemos buscar soluções para as nossas aflições. Registre-se serem todas estas inquietações resultado de nossos atos passados, da forma como vivemos, propriamente ditas em outras vidas ou mesmo devido a ações e condutas na particular existência.

Nada ocorre por acaso: nenhuma doença, desastre financeiro, desilusão sentimental, quaisquer infortúnios a nos alcançar, nenhum deles surge sem a existência de uma razão perfeitamente justa e necessária ao nosso aprimoramento.

Se a incorretamente chamada desgraça nos atinge, levanta-se em nossa caminhada, atravessa o nosso trilho evolutivo, ou é uma prova, portanto solicitada, ou é uma expiação, consequência direta de nossos deslizes passados ainda não perfeitamente apagados. Não há outra hipótese, não existe nenhuma outra opção, ou é prova ou expiação, tudo previsto dentro das leis de Deus, visto que não somos ainda missionários propriamente ditos, se o fôssemos, já seriamos Espíritos mais evoluídos, sem necessidade, por exemplo, de expiar.

Conscientizemo-nos: Deus não deseja o nosso sofrimento, muito menos a nossa tristeza, tampouco as nossas lágrimas de desespero, mas sim que saibamos aproveitar as horas e momentos desagradáveis, segundo nosso acanhado ponto de vista, atravessando as dificuldades surgidas com nobreza, sem reclamos, sem blasfêmias, pois, agindo desta forma, invalidamos o aproveitamento da lição, e, assim, forçados seremos a repeti-la em futuro próximo ou mesmo em outras vidas, como acontece em qualquer sistema de ensino. Entretanto, lembremo-nos de sempre empregar nossos esforços para atenuar, ou mesmo resolver o que esteja nos incomodando.

Cabe destacar uma orientação sobre a bem-aventurança. Em O Livro dos Espíritos2, o Codificador registrou em referência à posição dos Espíritos puros junto à Divindade: “Não creias, todavia, que os Espíritos bem-aventurados estejam em contemplação por toda a eternidade. Seria uma bem-aventurança estúpida e monótona”, ou seja, alcança-se a bem-aventurança para trabalhar mais, não para descansar eternamente.

Concluindo, os embaraços surgem sempre em nosso favor, Deus não nos dá fardo mais pesado do que possamos carregar, todas as atribulações visam à promoção de nossa evolução, para mais tarde, quando houvermos adquirido a necessária fortaleza moral, participarmos também da criação, pois bem-aventurados seremos, afinal já nos foi dito: Somos deuses!

 

Referência:     

1 KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Trad. Guillon Ribeiro. 112. Ed. Rio de Janeiro: FEB Editora, 1996. Cap. V.

2 _______O Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra. 3ª edição Comemorativa do Sesquicentenário. Rio de Janeiro: editora FEB. q. 969.


 

 

     
     

O Consolador
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