Todos os aflitos são bem-aventurados?
Na Carta Magna da humanidade, proferida pelo Cristo no
imortal Sermão do Monte, Jesus citou algumas situações
de vida, muito comuns, que poderiam nos conduzir à tão
desejada felicidade.
Embora há dois mil anos, ciente deste mundo ainda se
caracterizar pela existência de muito choro e ranger de
dentes, e cônscio também de que a Terra se manteria sob
esta tônica ainda por bom tempo, o Mestre dos mestres
nos deixou algumas palavras de conforto e orientação
visando nos tranquilizar e nos dar ânimo para
continuarmos as nossas particulares jornadas sem
esmorecer, buscando sempre a nossa melhora moral, apesar
dos contratempos encontrados.
Em O Evangelho segundo o Espiritismo1,
o Codificador ressuscitou e bem enfatizou uma expressão
resumindo a essência dos indeléveis ensinos de Jesus
comunicados no Monte: Bem-aventurados os aflitos,
pois as bem-aventuranças ditadas por Jesus referem-se,
de uma maneira geral, a situações de apreensão ou
dificuldade possíveis de serem experimentadas durante
uma existência, contudo, com a indicação de um desfecho
feliz.
É de se notar, muitos de nós, sem refletir detidamente a
propósito das explicações de Allan Kardec a respeito da
temática e, igualmente sobre as treze excelentes
instruções dos Espíritos acompanhando os judiciosos
comentários de Kardec, por força de nossa própria
incapacidade ou mesmo desatenção em bem avaliar os
textos, somos levados a acreditar que bastaria estarmos
aflitos ou ansiosos para nos enquadrarmos na condição de
bem-aventurados, afinal, assim afirmou Jesus, tendo
Kardec enfatizado este aparente princípio divino.
Este equivocado entendimento de muitos nos faz concluir
que para bem exercitar e aproveitar as oportunidades da
vida é preciso de um pouco de bom senso, virtude esta
característica do Mestre Lionês, pois a possuía a mãos-cheias,
caso contrário, constroem-se armadilhas para nós mesmos,
com resultados catastróficos se sucedendo em futuro
próximo quando, cientes então de que aquilo que
acreditávamos não representar a verdade, caímos na
realidade a lamentar o tempo perdido.
Em momento algum, tanto Jesus, bem como Kardec afirmaram
bastar padecer para ser bem-aventurado, porquanto, se
assim o fora, todos nós seríamos bem-aventurados, pois
não faltam lágrimas e ranger de dentes em nosso mundo,
nunca faltaram. Em planeta de provas e expiações,
situações de aparente infortúnio e as chamadas desgraças
são as que mais se apresentam.
Se fosse o caso, seria suficiente afligir-se para ser
aquinhoado em futuro próximo com um assento ao lado do
Pai para desfrutar das benesses eternas, recompensas
estas guardadas para quem muito sofreu, e mais, se esta
fosse uma lei divina, seria muito oportuno e mesmo
previdente se criar novos padecimentos, além daqueles já
existentes, pois, quanto mais sofrêssemos, teríamos a
certeza de ter assegurado o nosso lugar no “Condomínio
Celestial”.
Não deve ser assim, não pode ser assim, graças ao bom
Deus não é assim, diz-nos a razão, seria um
contrassenso, um completo absurdo, imaginar que pela
quantidade de decepções e desgostos enfrentados seríamos
salvos pela eternidade afora, enquanto aqueles que por
razões diversas e desconhecidas tivessem desfrutado de
uma vida tranquila, sem grandes contratempos, estariam
irremediavelmente perdidos, sendo encaminhados, desta
forma, para o “Condomínio dos Deserdados”.
Mas então, onde está a sabedoria deste ensino, como
entender estas promessas Crísticas? Estariam Jesus e
Allan Kardec equivocados? Penar não seria condição
necessária e suficiente para nos conduzir à felicidade,
à salvação?
Claro que não, pois, como dito, sendo ainda a Terra orbe
distante da condição de mundo celeste ou divino,
conforme classificação dos próprios Espíritos, o que
mais se apresentará em nossas vidas ainda por largo
tempo são amarguras e decepções, com o potencial de nos
conduzir a lamúrias e inquietações.
Para bem viver e construir a nossa evolução de modo
seguro e concreto é preciso saber sofrer, há uma
“ciência”, exigindo de todos os sofredores: paciência
ativa, resignação construtiva, submissão dinâmica às
inesperadas situações indesejadas surgindo aqui e ali,
em uma palavra: uma fé com obras. As virtudes citadas
não podem ser passivas, isto significa que podemos e
devemos buscar soluções para as nossas aflições.
Registre-se serem todas estas inquietações resultado de
nossos atos passados, da forma como vivemos,
propriamente ditas em outras vidas ou mesmo devido a
ações e condutas na particular existência.
Nada ocorre por acaso: nenhuma doença, desastre
financeiro, desilusão sentimental, quaisquer infortúnios
a nos alcançar, nenhum deles surge sem a existência de
uma razão perfeitamente justa e necessária ao nosso
aprimoramento.
Se a incorretamente chamada desgraça nos atinge,
levanta-se em nossa caminhada, atravessa o nosso trilho
evolutivo, ou é uma prova, portanto solicitada, ou é uma
expiação, consequência direta de nossos deslizes
passados ainda não perfeitamente apagados. Não há outra
hipótese, não existe nenhuma outra opção, ou é prova ou
expiação, tudo previsto dentro das leis de Deus, visto
que não somos ainda missionários propriamente ditos, se
o fôssemos, já seriamos Espíritos mais evoluídos, sem
necessidade, por exemplo, de expiar.
Conscientizemo-nos: Deus não deseja o nosso sofrimento,
muito menos a nossa tristeza, tampouco as nossas
lágrimas de desespero, mas sim que saibamos aproveitar
as horas e momentos desagradáveis, segundo nosso
acanhado ponto de vista, atravessando as dificuldades
surgidas com nobreza, sem reclamos, sem blasfêmias,
pois, agindo desta forma, invalidamos o aproveitamento
da lição, e, assim, forçados seremos a repeti-la em
futuro próximo ou mesmo em outras vidas, como acontece
em qualquer sistema de ensino. Entretanto, lembremo-nos
de sempre empregar nossos esforços para atenuar, ou
mesmo resolver o que esteja nos incomodando.
Cabe destacar uma orientação sobre a bem-aventurança.
Em O Livro dos Espíritos2, o
Codificador registrou em referência à posição dos
Espíritos puros junto à Divindade: “Não creias, todavia,
que os Espíritos bem-aventurados estejam em contemplação
por toda a eternidade. Seria uma bem-aventurança
estúpida e monótona”, ou seja, alcança-se a
bem-aventurança para trabalhar mais, não para descansar
eternamente.
Concluindo, os embaraços surgem sempre em nosso favor,
Deus não nos dá fardo mais pesado do que possamos
carregar, todas as atribulações visam à promoção de
nossa evolução, para mais tarde, quando houvermos
adquirido a necessária fortaleza moral, participarmos
também da criação, pois bem-aventurados seremos, afinal
já nos foi dito: Somos deuses!
Referência:
1 KARDEC,
Allan. O
Evangelho segundo o Espiritismo. Trad.
Guillon Ribeiro. 112. Ed. Rio de Janeiro: FEB Editora,
1996. Cap. V.
2 _______. O
Livro dos Espíritos. Trad. Evandro Noleto Bezerra.
3ª edição Comemorativa do Sesquicentenário. Rio de
Janeiro: editora FEB. q. 969.
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