A Bolha
Rubens andava angustiado... tinha trocado a sua série de
exercícios físicos na academia, e um vírus havia apagado
os contatos de seu celular, que ainda tinha caído no
chão e rachado a película. Que dia!
Chegou a casa e sua mãe havia preparado salada de
brócolis, que Rubens não gosta, e para não ficar com
fome, complementou o almoço com um cremoso sorvete de
chocolate, embora preferisse de flocos.
Ao ir à casa de seu amigo, Heitor, para juntos encararem
o futebolzinho da tarde de sábado, a mãe deste informa a
Rubens que o seu amigo estava na Casa Espírita em uma
atividade e que ele havia deixado recado para que o
encontrasse lá. Rubens não pestanejou e se direcionou ao
templo religioso, para ali encontrar seu colega de bola.
Ao chegar lá, a casa estava repleta de moradores de rua.
E havia sopa, entrega de bolsas, e aquele grupo de
adultos, jovens e crianças, enfileirando-se na busca de
alimento que saciasse a fome material, de uma palavra
que desse algum conforto moral, e esperando ali,
pacientes e sequiosos, por uma roupa usada que lhes
servisse.
Rubens avista Heitor ao lado de um senhor que conversa
com as pessoas atendidas pelo trabalho, e seu colega de
futebol faz sinal de silêncio e indica que ele se sente
ali, ao lado, enquanto termina a preleção. E à medida
que o condutor do estudo fala, cada pessoa vai trazendo
as suas mazelas: um filho doente, uma tentativa de
suicídio, o uso de entorpecentes, a agressão na
infância, o risco de ser incendiado na rua, a hepatite,
a tuberculose, a AIDS.
Os olhos de Rubens se espantam com aquele desfile de
problemas. Heitor sinaliza, em uma pausa, para eles
saírem “à francesa”, mas Rubens se recusa e se mantém
ali, atento à dor daquelas pessoas, e fica pensativo
sobre como eles conseguem viver com aqueles problemas.
Nesse ínterim, seu telefone celular cai do bolso, e
racha ainda mais a sua película... ele olha para o
aparelho, olha para as pessoas, e apenas pensa na sua
vida, nas suas prioridades, refletida na tela do
celular.
Essa breve historieta, fictícia, mas atual, narra as
distâncias que vivemos da realidade nos dias de hoje, e
em que pese a existência de mecanismos mirabolantes que
nos comuniquem por todo o planeta, com fotos e vídeos,
nos vemos cada vez mais aprisionados em uma bolha,
padecendo de problemas pequenos, sem olhar para o nosso
próximo, às vezes nem tão distante.
Nesse sentido, os trabalhos assistenciais funcionam como
verdadeiros choques de realidade, nos quais vemos na dor
do outro como somos felizes, e como devemos valorizar o
que temos. Às vezes, é preciso esse tratamento,
reiterado, de convívio com aspectos da realidade
desprezados, de pessoas esquecidas, de sofrimento e de
carência, na qual o Espiritismo, pela sua bandeira
social, do “Fora da caridade não há salvação”, nos
convida a nos engajar, sistemicamente, em ações sociais
que exercitem nosso coração no amor maior.
Infelizmente, esse ânimo pelos trabalhos assistenciais
anda arrefecido nos dias de hoje. Pouco aparece essa
temática na imprensa espírita, nos livros, nas palestras
e nas casas, por vezes envelhecidos em sua força de
trabalho, com riscos de sustentabilidade futura.
Festejos, seminários e eventos artísticos já não trazem
como fim o financiamento de atividades assistenciais.
Será que deixamos de ter a necessidade, na casa
espírita, de trabalhar essa dimensão? Fica a pergunta
que não quer calar...
O trabalho na ação social na casa espírita não é um
complemento das políticas sociais do Estado, ainda que
seja salutar que os trabalhos dialoguem com a rede de
serviços assistenciais da região, para fortalecer a
cooperação e reduzir as lacunas e superposições. Mais do
que isso, a ação social é uma forma de convivência que
traz apoio àquelas pessoas, ditas assistidas, pelo pão e
pelo papo, mas que traz a todos uma reflexão sobre a
dor, o sofrimento e o imperativo da fraternidade nas
relações humanas.
Como Rubens, o protagonista, vivemos por vezes em nossos
mundos, reais e virtuais, nossas “gaiolas de ouro”,
ignorando a dor do próximo, a realidade que, ainda que
negada, existe nos hospitais, nas ruas, nas instituições
assistenciais, e que, nos insondáveis caminhos da
existência terrena, um dia batem à nossa porta e nos
vemos então surpresos, desesperados, atônitos, pela
bolha que estoura, frágil como ela é.
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