Os casos de Chico Xavier e o
estudo espírita
Francisco Cândido Xavier foi o maior médium
psicógrafo da história. O médium de Pedro
Leopoldo vinculou-se ao movimento espírita aos
dezessete anos de idade, em 1927, e, desde
então, trabalhou incansavelmente pela divulgação
do Espiritismo. Em função de sua extraordinária
mediunidade e do seu profundo comprometimento
com o estudo e a difusão das ideias espíritas,
além da sua natural religiosidade, entre várias
outras razões, Chico, sobretudo em suas últimas
décadas de vida física, representava uma
importantíssima liderança do movimento espírita.
Respeitado formador de opinião, Chico Xavier
auxiliou no despertamento e na formação
doutrinária de grande parcela do movimento
espírita brasileiro. Essa influência ocorreu
seja pelas orientações pessoais diretas àqueles
que o procuravam em Pedro Leopoldo e Uberaba,
seja pelos conteúdos oriundos das próprias obras
publicadas através da mediunidade de Chico
Xavier.
No que se refere ao fornecimento de informações
pessoais, pelo contato direto, Chico orientou de
diferentes maneiras. De fato, Chico, por um
lado, elucidou verbalmente sobre mediunidade,
obsessão, mundo espiritual, evangelho e
Espiritismo de uma forma geral, e, por outro
lado, Chico ensinou pelos exemplos não
verbalizados. Aliás, várias dessas elucidações
e/ou episódios seriam material para a formação
do conteúdo de diversos livros de “casos de
Chico Xavier”.
No que se refere especificamente às suas
explanações, Chico Xavier alternava, dependendo
do caso, respostas e explicações muito
contundentes com comentários de significado bem
implícito. Essa atitude de Chico Xavier era uma
resposta natural ao cenário no qual ele estava
inserido. A variação de contundência e
objetividade nas explicações possuía relações
com o público presente à sua volta e também a
eventuais repercussões posteriores no movimento
espírita de forma geral. Chico era muito
pressionado pelos confrades. A opinião de Chico
“pesava” e, dessa forma, era muito comum que
vários confrades procurassem o apoio de Chico a
suas impressões doutrinárias (essa dinâmica já
foi discutida e testemunhada por vários autores,
como, por exemplo, Divaldo Pereira Franco.
(Vide Encontro com Dirigentes - Centro
Espírita Meimei, São Bernardo do Campo - SP,
fevereiro de 1990.) Alguns desses confrades
tinham bagagem doutrinária e compromisso com a
causa espírita, mas isso, obviamente, não era
uma condição geral. Chico Xavier precisava
“medir” as palavras, dependendo dos
questionadores, para evitar ser mal
interpretado.
Um famoso e bem documentado caso que ilustra
essa situação é o famoso episódio de adulteração
da tradução ao português de “O Evangelho segundo
o Espiritismo” (ESE) por confrades vinculados à
Federação Espírita do Estado de São Paulo
(FEESP) no início da década de 1970. Tal
iniciativa foi inspirada em opinião enunciada
por Chico Xavier. Essa ocorrência é relatada em
obra intitulada Na hora do testemunho.
A supracitada obra contempla interessantes
análises do episódio elaboradas por Chico Xavier
e por José Herculano Pires, coautores da obra. A
proposta vinculada à elaboração desse livro foi
fornecer subsídios para o amadurecimento
doutrinário dos espíritas para que erros
semelhantes não ocorressem no futuro.
As consequências do episódio da adulteração só
não foram piores nesse caso porque Chico Xavier
estava encarnado e com razoável saúde, assim
como o próprio José Herculano Pires, os quais
rápida e publicamente escreveram e agiram de
diversas formas contra a iniciativa. Mas Chico
Xavier não está mais encarnado e, portanto, não
pode mais desmentir pessoalmente interpretações
equivocadas a respeito de supostas declarações
ou ocorrências que direta ou indiretamente
tivessem sua participação. Infelizmente, o
futuro demonstrou que essa lição ainda não foi
muito bem compreendida em nossos arraiais.
Um grande número de deduções muito especulativas
baseadas em frases ou eventos que envolvem Chico
Xavier vem sendo expostas e praticamente
impostas ao movimento espírita pela divulgação
massiva através de vários meios. O curioso é que
por muitos anos em que Chico Xavier esteve
encarnado, evitaram completamente ou pelo menos
substancialmente, divulgar essas
informações/revelações obtidas, em princípio,
por Chico Xavier. Esses escritores e expositores
deixaram para divulgar com mais ênfase quando
Chico não estivesse mais encarnado ou, no
mínimo, quando estivesse muito idoso e doente,
praticamente recluso em seu lar, como ocorreu em
seus últimos anos. São exemplos dessas
divulgações injustificáveis as especulações
sobre uma suposta data-limite e as hipóteses
reencarnatórias da personalidade Chico Xavier,
mais notadamente aquela que supõe que ele tenha
sido Allan Kardec. Alguns expositores chegam ao
absurdo de debater quem era mais amigo de Chico
Xavier, como se o nível de amizade com Chico
Xavier fosse necessariamente uma garantia de
qualidade doutrinária.
Ora, Chico Xavier não deve ter enunciado
informações que não fossem verdadeiras sobre
questões que poderiam gerar tamanha polêmica. O
que não quer dizer que ele não pode ter sido mal
interpretado em questões em que não se
posicionasse muito assertivamente. Daí, surge um
problema, pois ele não deve ter dado informações
contraditórias. Se ocorreram, é necessário que
se analise, com cuidado, a credibilidade do
relato, o contexto no qual o relato foi
enunciado e as interpretações do relato.
Igualmente, deve ser avaliada a lucidez daquele
que relata e a maneira como interpreta, assim
como os argumentos que utiliza na respectiva
interpretação. Portanto, os chamados “casos de
Chico Xavier” podem ser ricos de ensino moral e
até doutrinários, mas, para que o “caso” seja
fonte de luz no entendimento doutrinário dos
confrades, é necessário um estudo muito mais
profundo do que o que usualmente vem sendo
desenvolvido. É fundamental que utilizemos uma
análise serena, com discussão e comparação das
bases kardequianas e outras informações de obras
subsidiárias dignas. E se não for possível
chegar a alguma conclusão, que não se explicite
hipóteses como “verdades científicas”, para que
nós, os trabalhadores sinceros, porém limitados,
da Doutrina Espírita, não acabemos trabalhando
contra a busca pela Verdade.
De qualquer forma, informações que podem até ser
consideradas interessantes, mas que de forma
alguma poderiam ser identificadas como
prioritárias, tomaram conta de grande parte das
preocupações de significativa parcela do
movimento espírita. Parece até constituir uma
espécie de obsessão coletiva, que,
potencializada pelas mídias sociais e por uma
“avalanche” de publicações de fraco conteúdo
doutrinário, mas tidas, em princípio, como
espíritas, têm recebido uma atenção
injustificável por parte de espíritas
brasileiros e de outros países.
O Espiritismo possui fundamentação na
interpretação científica do evento mediúnico. O
presente contexto solicita que busquemos, ao
lidar com temas espíritas, mais seriedade, maior
nível de escrúpulo, e maior autocrítica. De
maneira prática, poderíamos evitar a publicação
de especulações como verdades absolutas,
utilizando a orientação de Erasto: “É preferível
rejeitar dez verdades do que aceitar uma única
mentira, uma única teoria falsa”, em O Livro
dos Médiuns, e do famoso “Na dúvida,
abstém-te”, de O Evangelho segundo o
Espiritismo. Isso também vale para os
leitores, palestrantes e dirigentes espíritas do
movimento, que não escrevem ou editam livros,
mas que os estudam e divulgam. Aliás, isso seria
fundamental para o movimento espírita, uma vez
que a publicação de obras de baixo nível
doutrinário parece ser algo incontrolável em
nossos arraiais. Façamos como sugere Divaldo
Pereira Franco (Divaldo Responde – Mediunidade,
1999. Centro espírita Nosso Lar, Casas André
Luiz), que recomenda que dirigentes e
expositores espíritas não divulguemos obras que
não lemos, estudamos e aprovamos
doutrinariamente, de preferência corroborando
nossa opinião com a de confrades mais
experientes.