Para que o orgulho, se o futuro é a
morte?
A frase acima ficava num quadrinho pendurado na parede
da residência de um casal de tios. Toda vez que eu ia
lá, olhava a plaquinha e pensava sobre a frase. Esse
casal de tios – Albertina (ou Tininha, irmã mais velha
de minha mãe) e Jovelino (a quem chamávamos Vivi) – era
espírita. Com eles, aprendi muita coisa, que carrego até
hoje. Uma bagagem valiosa de simplicidade e serviço ao
próximo, que tento pôr em prática.
Para que o orgulho, se o futuro é a morte? Para que
tentar passar por cima dos outros, contar vantagem, se
julgar melhor por causa de títulos acadêmicos, bens
materiais, poder político etc. se vamos todos morrer?
E depois da morte de nada adiantam títulos, honrarias,
extratos bancários, cargos... Do lado de lá, não há
“Chama fulano!”, “Deve estar havendo algum engano!”,
“Você não sabe com quem está falando!”, “Eu tenho
imunidade parlamentar!”... Como diz o Espírito JP
(pseudônimo de um famoso político do século 20) no
livro Políticos no Além, psicografado pelo médium
Luiz Antônio Millecco, “Quando abandonamos o corpo
físico, somos imediatamente defrontados por nós mesmos.
Se a nossa colheita é de luz, felizes que somos, porque
imediatamente essa luz nos banha e com ela vivemos, no
plano espiritual, uma felicidade que não se pode
traduzir em linguagem terrena. Se, porém, a nossa
colheita é de sombras, ai de nós, porque não há
escuridão pior que a escuridão de nós mesmos!”
Transcrevo esse trecho e penso na escuridão que envolve
o atual cenário político do Brasil. Quanta gente
infeliz! Quando partirem, não fugirão da escuridão de si
próprios, por mais que argumentem ou vociferem.
Estou dizendo isso tudo porque quero conectar dois fatos
por mim vividos em cemitérios. O primeiro foi quando do
falecimento de minha mãe, em maio de 2018. Eu acompanhei
a exumação dos restos mortais de dois tios (irmãos
dela). Ambos já faleceram há um tempo, e era preciso
limpar a sepultura, digamos. Enquanto os coveiros faziam
o trabalho, eu conversava amistosamente com eles.
Conversa vai, conversa vem, eles me disseram que era
raro alguém ter com eles uma conversa tão de igual para
igual. Em geral, pessoas que acompanham exumações fazem
cara de nojo, dizem que o trabalho dos coveiros é
horrível, que não sabem como eles têm coragem de
trabalhar com algo tão repugnante etc. Daí, para
tratá-los mal, como eles disseram, é um passo. O
resultado são comentários ríspidos, cruéis até, como se
coveiros, por trabalharem sepultando e exumando, fossem
a escória da humanidade. Um deles, então, me disse: –
Essa gente esquece que também somos pais de família. Que
temos filho na escola, pagamos contas e que esse é um
trabalho como outro qualquer. E esquecem também que, por
mais que nos tratem com desprezo, um dia também
precisarão de nós! Disse também que ninguém escolhe ser
coveiro, mas é o trabalho que aparece devido à baixa
escolaridade etc. Só então me dei conta que, se estavam
me dizendo tudo aquilo, é porque se sentiram à vontade
devido ao tratamento cordial que eu lhes dispensava. Sou
ainda muito imperfeito, mas dou graças a Deus por já ter
feito algumas conquistas. Não ter esse tipo de
preconceito e ver a morte como algo natural e nada
assustador são algumas delas.
O segundo fato ocorreu há alguns dias. Desencarnou uma
cunhada minha, Irene, viúva de um irmão falecido há mais
de 30 anos (o mais velho do primeiro casamento do meu
pai). Não via a Irene há muitos anos. Quando Afonso, meu
irmão, morreu, ela foi embora para a cidade de São João
de Meriti, na Baixada Fluminense. Da última vez em que
ela veio à minha casa, eu não estava.
Irene morreu de repente. Morreu dormindo. Eu, minha
sobrinha e uma prima descemos a serra e fomos levar
nosso abraço aos meus sobrinhos e sobrinhos-netos.
Dias de calor infernal no Grande Rio. Se em Petrópolis,
Região Serrana, o calor tem castigado, em São João de
Meriti nem se fala! Foi quando chegou a hora do enterro,
marcado para as 16h. Fiquei observando aquele cemitério
simples, mas cheio de humanidade. Uma humanidade que me
fez lembrar a frase do quadrinho da casa dos meus tios.
Apesar de ser um cemitério simples, havia alguns túmulos
suntuosos em que o nome da família se destacava. “Jazigo
da família XYZ” e por aí vai! Tive a impressão de que
aquelas sepulturas queriam gritar certa superioridade em
meio à simplicidade do cemitério de uma cidade idem.
Para que o orgulho traduzido em forma de ostentação
sepulcral se, além dali, terminam todas essas
convenções?
Em seguida, passei a observar os coveiros. Camisas
empapadas de suor por causa do calor escaldante. Um
sepultamento atrás do outro, de meia em meia hora, desde
o início da tarde! Isso fora os que devem ter ocorrido
na parte da manhã! Terão sido bem tratados pelas
famílias dos mortos que enterraram? Alguém se dignou a
olhar com ternura para eles e a dizer obrigado? De onde
vieram? Será que moram com dignidade? Será o salário
satisfatório? Que sonhos possuem? Jamais saberei, mas
fiz questão de sorrir, dizer obrigado e desejar algo bom
a eles. Eles retribuíram e agradeceram. Talvez não
estejam acostumados.
Um dia também meu corpo físico precisará do auxílio
deles e da turma da funerária, seja para aprontar o
cadáver, baixar à sepultura ou ser cremado, ainda não
sei. Quando isso acontecer, espero que os familiares
encarregados do meu funeral tratem com carinho e
humanidade essa turma tão malvista por
lidar todos os dias com a morte. Talvez a prevenção que
muitos têm para com eles venha daí. Ninguém gosta de
lembrar que morrerá um dia. Por isso, os tratam mal para
não pensar sobre a brevidade das convenções materiais.
Mas para que o orgulho, se o futuro é a morte e teremos
fatalmente de passar pelas mãos dos profissionais da
morte?
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