O Espírito
Pascal, em O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. XVI, item IX,
esclarece que o homem só possui verdadeiramente o que é de uso da alma, ou seja,
a inteligência, os conhecimentos, as qualidades morais, atributos que não lhe
podem ser retirados, visto que a evolução espiritual é individual e
intransferível, não sendo possível a ninguém adquirir títulos de enobrecimento
para repassá-los a outrem.
Dessa forma, “o aperfeiçoamento do Espírito é fruto do seu próprio trabalho. Não
podendo, numa só existência corporal, adquirir todas as qualidades morais e
intelectuais que o hão de conduzir ao objetivo, ele o alcança por uma sucessão
de existências, em cada uma das quais dá alguns passos para frente, no caminho
do progresso”.
Tal sucessão de existências ocorre em diversos mundos, “apropriados aos
diferentes graus de adiantamento dos Espíritos e onde a existência corporal
apresenta condições muito diferentes”.
No caso da
Terra, sabemos que ela pertence (ainda) à categoria dos mundos de expiações e
provas, razão por que não é de admirar seja nossa existência aqui marcada por
vários fatos turbulentos, ou muitas coisas que testam nossa capacidade de
resignação, daí dizermos comumente que é preciso ter paciência de Jó para
tudo suportar.
A expressão,
com efeito, remonta a uma das mais antigas histórias narradas na Bíblia. Jó era
o homem mais rico da região em que vivia. Possuía milhares de ovelhas e camelos,
centenas de juntas de bois e jumentos, uma imensa propriedade, sete filhos, três
filhas e grande quantidade de criados. Era considerado um homem bom, justo e
temente a Deus.
A fé de Jó foi
severamente testada quando o mal o atingiu de diferentes formas.
Num mesmo dia,
sua propriedade foi invadida e saqueada, seus rebanhos foram furtados, seus
empregados assassinados e seus filhos e filhas morreram quando a casa desabou
sobre eles, em meio a um vento muito forte vindo do deserto.
Jó se
entristeceu profundamente, prostrou-se no chão e orou. Não se revoltou.
Reconheceu que tudo o que tinha havia sido dado por Deus e que o Senhor achara
por bem tirar tudo dele. Dessa forma, afirmou sua fé e mostrou resignação à
vontade do Pai. Entretanto, as problemáticas continuaram. Ele teve o corpo
coberto de chagas. Era a temida lepra.
Sua esposa,
atormentada pela dor, disse que ele deveria amaldiçoar a Deus e morrer. Contudo,
Jó permaneceu firme em sua fé. A esposa, revoltada, o abandonou. Sozinho,
isolado, Jó foi visitado por três amigos que, em vez de consolá-lo, tentaram
convencê-lo de que Deus o estava castigando por seus muitos pecados.
Jó discordou
deles, reafirmou sua fé na bondade e justiça divinas e ainda orou ao Senhor para
que não punisse seus amigos.
Por sua fé
inabalável, por sua paciência em tudo suportar, após algum tempo, o Pai Celeste
lhe permitiu a restituição da saúde, curando-o da lepra. Depois, Jó conseguiu
reaver, e duplicados, todos os seus bens.
Tornou a se casar e teve dez filhos, concluindo sua vida, anos mais tarde, em
felicidade.
Posto isso,
cumpre citar o Espírito Emmanuel, para quem a verdadeira paciência “é
sempre uma exteriorização da alma que realizou muito amor em si mesma, para
dá-lo a outrem, na exemplificação.
Esse amor é a expressão fraternal que considera todas as criaturas como irmãs,
em quaisquer circunstâncias, sem desdenhar a energia para esclarecer a
incompreensão, quando isso se torne indispensável”.
De fato, no
momento em que se encontrava sozinho e que foi visitado pelos amigos, que o
induziram a crer que estava sendo castigado por Deus, Jó, ao discordar deles,
usou de energia para esclarecer a incompreensão.
Além disso, Jó
considerava-se usufrutuário dos bens que Deus lhe havia concedido, uma vez que
sabia que o que o Criador lhe dera podia lhe retirar.
Usufrutuário é “aquele que tem direito ao usufruto; quem pode usufruir de um
bem, móvel ou imóvel, que não lhe pertence”.
No livro Calma, Emmanuel assevera que, diante das Leis da Terra, a
propriedade, pertença ao grupo social ou ao indivíduo, é sempre credora de
respeito; todavia, ante a Criação Divina, “a ideia do usufruto é grande fator de
paciência ao coração”.
Ao nos
considerarmos usufrutuários dos bens concedidos pela Divina Providência, teremos
condições de atribuir aos esses recursos o seu devido valor e, como Jó, se
porventura estivermos desprovidos deles, resignar-nos-emos ante a vontade de
Deus, e nos revestiremos de paciência, riqueza real que deveremos nos esforçar
por adquirir, a bem de nossa própria evolução.
Cabe ainda
mencionar outra riqueza real: a calma.
Em O
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, item XXIII, o Espírito Fénelon
acentua que o homem vive incessantemente em busca da felicidade na Terra, porém
ela lhe foge das mãos, visto que felicidade sem mescla não existe neste planeta.
Apesar disso,
refere o Espírito sobredito que o homem pode usufruir de relativa felicidade,
desde que não a busque nas coisas perecíveis e sujeitas às mesmas vicissitudes
inerentes à sua existência na Terra, mas sim, nos gozos imperecíveis da alma,
que são os pródromos das alegrias celestes.
Desse modo,
prossegue Fénelon aduzindo que o homem, em vez de procurar a paz do coração,
única felicidade real neste mundo, ele se mostra ávido de tudo o que o agitará e
perturbará, e singularmente acaba criando para si tormentos que cabe a ele mesmo
evitar.
Outrossim,
questiona o Benfeitor se haverá maiores tormentos do que os que derivam da
inveja e do ciúme, asseverando que, para o invejoso e o ciumento, não há
repouso, porquanto estão sempre febricitantes.
Por outro lado, porque devemos ter sempre como referência a conduta de Espíritos
elevados, com o escopo de haurirmos bons exemplos, calha citar um trecho da
questão 967 d’O Livro dos Espíritos: “ 967. Em que consiste a felicidade
dos bons Espíritos? Em conhecer todas as coisas; não ter ódio, nem ciúme,
nem inveja, nem ambição, nem qualquer das paixões que fazem a infelicidade
dos homens. [...] Os que são bastante adiantados compreendem a felicidade
dos que avançaram mais que eles, e a ela aspiram, mas isso é para eles motivo
de emulação e não de inveja. Sabem que deles depende alcançá-la e
trabalham com esse fito, mas com a calma da consciência pura [...]”.
Os Espíritos Superiores são calmos porque já construíram a serenidade interior,
à custa do esforço próprio na busca pela compreensão e pela autocompreensão, que
são mantidas “pela tolerância para com os erros alheios e até pela autoaceitação
dos nossos próprios erros, de modo a sabermos corrigi-los sem tumulto e perda de
tempo”.
Logo,
verifica-se que a calma é indissociável da compreensão, de modo que, ao nos
compreendermos e compreendermos os outros, conseguiremos nos manter mais
proativos do que reativos.
Dessa sorte,
nos dias tomentosos, em que tudo parece soçobrar e contrariar nossa vontade,
devemos utilizar a riqueza da calma para não nos queixarmos ou agirmos
intempestivamente, e, à semelhança de Jó, mantermos fidelidade e irrestrita
confiança em Deus.
No entanto, estejamos igualmente atentos à necessidade de não criarmos males
para nós próprios, como referido, na certeza de que a muitos tormentos se forra
“aquele que sabe contentar-se com o que tem, que nota sem inveja o que não
possui, que não procura parecer mais do que é . Esse é sempre rico,
porquanto, se olha para baixo de si e não para cima, vê sempre criaturas que têm
menos do que ele. É calmo, porque não cria para si necessidades quiméricas. E
não será uma felicidade a calma, em meio das tempestades da vida?”.
Embora Fénelon
tenha se referido à calma como sendo uma felicidade, inferimos que ela é também
uma riqueza real, aquisição do Espírito que já logrou o autocontrole.
Paciência e
calma são, portanto, duas riquezas reais que tornam nossa existência mais leve e
livre dos tormentos voluntários, até porque há males que são inerentes à
existência no corpo de carne e, em decorrência disso, não devemos criar outros
além destes.