O barco
Fazia-se o mais absoluto silêncio nas proximidades do
estaleiro no qual eu estava recolhido… No final da tarde
de inverno, trabalhadores e pescadores daquela área já
se haviam aconchegado a seus lares.
Eu me mexia num suave bailado que me proporcionava a
brisa suave e o mar calmo, meu habitat, meu aconchego….
Ora, também eu possuía um aconchego!
Parecia não haver viva alma por perto, mas nos arredores
avistei o vulto de um jovem rapaz e, como estávamos
solitários, ele e eu, procurei chamar-lhe a atenção e
puxar conversa:
- Sabes?! – disse-lhe eu – fui trazido a este estaleiro
pelo Prático destes mares, pois me achava bem doente;
meu motor sofreu avarias, mas já foi recuperado por
Equipe Competente que aqui esteve, mas meu casco… ah,
esse ainda carece de reparos. Está botando água!
O jovem, de uma forma lacônica, mas doce, disse-me que
disso tudo já sabia.
Intrigado e tagarela, questionei meus botões – ou seriam
as boias que protegem meu casco? – como ele disso
saberia?
Não contendo minha curiosidade e no afã de ‘desnudar’ o
misterioso e novo companheiro, continuei com meu
discurso:
- Breve, breve, retornarei às minhas travessias;
passageiros, trabalhadores, parceiros precisam com
urgência de meus serviços; mais alguns reparos em meu
velho casco, uma repintura, um retoque no meu letreiro,
e voltarei à ativa!
Mais tranquilo ainda do que antes e com voz suave e
clara, o jovem, que parecia estar ali junto comigo
embarcado, disse:
- Sei também disso, meu caro amigo!
Meu amigo? De onde me conheceria? Como sabia todas as
coisas a meu respeito? Seria um de meus clientes de
travessia que eu não estava reconhecendo?
Não suportando mais a curiosidade questionei novamente o
meu mais novo amigo:
- Afinal, meu amigo, quem és e como sabes tantas coisas
a meu respeito?
Com a voz mais suave ainda disse ser um velho conhecido
e que eu já atravessara ele e sua Equipe inúmeras vezes,
porém, no afã de minhas tarefas ele passara
despercebido.
- Mas, e hoje, meu amigo – questionei-o com derradeira
pergunta –, que fazes por aqui, em noite tão fria e
perante minha temporária inutilidade? Por que não estás
no regaço de tua família?
- Minha família és tu – respondeu-me com iluminado
carinho. Depois de me teres servido com desvelo, hoje,
amanhã e até que melhores, eu é que velarei para
atravessares esta fase de temporária inutilidade!...
* * *
O socorro está mais perto do que imaginamos. Ele, porém,
se torna mais evidente quando a inutilidade temporária
nos toma conta e precisamos parar, retificar a máquina,
reparar nosso casco, aplicar-lhe pintura nova!...
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