O sentimento de caridade
O conceito, relativamente recente, de comportamento
pró-social, apresentado pela psicologia - as ações
humanas que aumentam o bem-estar do próximo e da
coletividade -, transcende a modernidade, e pode ser
visto em autores muito antigos.
Relativamente aos textos bíblicos, Paulo, antecipando-se
aos conceitos da psicologia social, se valeu da palavra
grega ágape, para referir-se a um tipo de amor
que transcende o amor romântico, o amor maternal e o
amor entre amigos. Ágape se identifica como um
tipo de amor incondicional, que nada espera em troca,
que não se justifica, que é puro e espontâneo, capaz de
amar até mesmo os inimigos.
A Vulgata, que traduziu a Bíblia do grego para o
latim, traduziu a palavra ágape pelo termo
latino caritas, ou seja, o que é caro, de alto
valor, digno apreço, e que chegou até nós pela palavra caridade.
Em nossos dias, a caridade perdeu, em grande
parte, seu valor, pois vem sendo relacionada apenas à
esmola, à filantropia - uma ação que, muitas vezes,
promove a indolência e gera uma atitude de acomodação no
beneficiado.
Allan Kardec se utilizou muitas vezes do termo caridade,
mas dando a ele uma conotação muito mais profunda, ao
relacioná-lo à bondade, à tolerância nas relações
humanas e ao esquecimento das ofensas (O Livro dos
Espíritos, item 886). Em artigo denominado Uma
reconciliação pelo Espiritismo, publicado na Revista
Espírita, setembro de 1862, Kardec colocou que a
caridade resume todos os nobres impulsos da alma para
com o próximo, apresentando-a como um continuum, que
varia desde a simples esmola até o amor aos inimigos,
que é o suprassumo da caridade.
Observamos que Kardec apresenta a caridade com um
espectro, que varia conforme o mérito da ação, que se
relaciona, obviamente, com a dificuldade em praticá-lo.
Em um extremo do espectro Kardec coloca a simples
esmola (que também é uma forma de caridade, embora
de menor valor, porque, geralmente, custa-nos menos
esforço: damos o que nos sobra). No outro extremo,
Kardec coloca o amor aos inimigos, que considera
o suprassumo da caridade, pois exige do envolvido
uma grande dose de abnegação.
E, nesse texto, Kardec volta a se valer da expressão sentimento
de caridade, já apresentada por ele em algumas
passagens de O Evangelho segundo o Espiritismo (cap.
17, itens 2 e 3 e cap. 28, item 5) e em O Livro dos
Espíritos, itens 717 e 918. No comentário ao item
717, quando examinando a ação antissocial de
indivíduos que açambarcam os bens da Terra, com prejuízo
daqueles a quem falta o necessário, nosso codificador
escreve que é o sentimento de caridade que leva
os homens a se prestarem mútuo apoio. No item
918, por sua vez, Kardec, dissertando sobre as
qualidades do verdadeiro homem de bem, escreve que, possuído
do sentimento de caridade e de amor ao próximo, faz o
bem pelo bem, sem contar com qualquer retribuição, e
sacrifica seus interesses à justiça.
O que podemos entender por sentimento de caridade? Talvez
Kardec se refira à vivência íntima do comportamento de
ajuda, a interiorização da ação exterior e que dá
significado profundo ao ato. Muitos de nós temos
automatizado a ação caritativa, fazendo-a mecanicamente,
sem enriquecê-la de um sentimento do belo, do nobre, do
generoso. Sabemos que toda ação que beneficia alguém é
meritória e credita o beneficiador, porque reduz o
sofrimento alheio. Todavia, entendemos que só o
comportamento de ajuda que se acompanha do sentimento
de caridade representa crescimento espiritual real,
ou seja, que ilumina de dentro para fora aquele que o
pratica.
Sob esse aspecto, o sentimento de caridade pode
ser entendido como a boa vontade permanente, o desejo
incessante de ser útil, um estado íntimo de encantamento
ante a possibilidade de efetivação do comportamento de
ajuda, o estado de graça ante a experiência do bom e do
útil.
Kardec conclui o artigo afirmando que um dos
resultados do Espiritismo bem compreendido é desenvolver
o sentimento de caridade e que, quando todos
nós estivermos imbuídos desse belo e nobre sentimento,
viveremos em permanente harmonia com o nosso próximo e
que, se dois indivíduos podem viver em boa harmonia,
o maior número também o pode. E, então, serão tão
felizes quanto é possível sê-lo na Terra.
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