Artigos

por Valéria de Oliveira Xavier da Silva

 

A caridade nossa de cada dia


Dentro da oração do Pai Nosso, que consta no Evangelho de Mateus (1), temos no menor dos versículos dessa prece a rogativa a Deus para que o pão nosso de cada dia nos seja dado hoje.

É interessante como a oração se inicia com a intenção de elevar nossos corações para dialogar com o Criador, tanto num reconhecimento da infinita sabedoria que já nos permitimos assimilar, bem como da resignação necessária perante os propósitos divinos que ainda desconhecemos.  E, depois de feita a conexão com o Alto, fulgura a pequenina frase, o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, clamando por nutrição para nossas vidas, numa sequência perfeita que deságua nas refinadas postulações sobre o nosso agir, estando nossos Espíritos na erraticidade ou não. A pequenina frase, no meio da prece, une, portanto, o Mundo Espiritual ao da matéria, demonstrando que somente sob o amparo da luz divina conseguiremos discernir para agir de maneira adequada na existência.

Entre as variadas interpretações do “pão nosso de cada dia”, podemos refletir sobre a que denomina a caridade como o alimento de nosso bem viver. Consta no prefácio do livro Pão Nosso, na mensagem “No serviço cristão”, que Espiritismo não expressa simples convicção de imortalidade: “é clima de serviço e edificação”. Então compreendemos que é necessário muito mais do que saber todo o pentateuco espírita, saber sobre magnetismo ou sobre colônias espirituais, apesar de isso tudo ser parte do conhecimento. No entanto, o desenvolvimento da significância moral das lições, visando à purificação dos nossos corações, sempre será a bússola certeira para o devido crescimento espiritual. E isso só se fará na lida uns com os outros, dentro de uma casa espírita, mas, principalmente, fora dela.

Quantas vezes, ajudando a colocar um pijama num parente idoso, em nossa casa, e ouvindo suas histórias repetidas com um olhar compassivo, ou alimentando uma criança órfã no colo, e acariciando seus cabelos com doçura, compreendemos, por exemplo, uma frase de Joanna de Ângelis, que antes nos era inatingível, no sentimento?!

Os Espíritos de alto escalão moral apresentam um poder de síntese muito grande, devido às inúmeras experiências dolorosas que sobrepujaram e, por isso, conseguem, ao descrever uma ideia, retirar as “rebarbas”, o desnecessário, e, assim, expressar com exatidão o pensamento. Não compreenderemos essas ideias com profundidade, se não realizarmos as ações necessárias de renúncia de nós mesmos no auxílio ao mundo, personificado na vida de nossos semelhantes. Não sendo assim, continuaremos sabendo descrever cirurgicamente o sofrimento através de nossos lábios, repetindo palavras que os bons Espíritos nos transmitem, arrebatando muitas vezes aplausos de plateias emocionadas, sem saber ainda incentivar e, principalmente, fazer a diferença no mundo, para melhor.

Muitas vezes o outro me olhará pedindo amparo, e meu eu, aprisionado na teoria, não terá nada para oferecer, além de um pedaço de pão, de uma frase de efeito, decorada do Antigo ou do Novo Testamento, ou então, dinheiro. E isso será muito triste. Não porque deixará “Deus triste”, como bem sabemos, mas, sim, porque nosso tempo poderia estar sendo mais bem aproveitado.

Alcemos voo nas asas da caridade, ampliando a área de nossa atuação cotidiana, tema de nossa reflexão! Dilatemos nossa visão, sob os desdobramentos dos ideais sublimes, não apenas sobre os desamparados da matéria, mas também sobre os desamparados da alma... Muitas vezes encontraremos as duas formas de desamparo sob o mesmo teto, vivendo num mesmo corpo.

E não nos esqueçamos que existe a forma menos óbvia e mais difícil de se compreender, que ocorre quando, em nossos lares, no trabalho, na casa espírita, devemos, no dia a dia, ter a caridade conhecida como “essencial”. Conforme Emmanuel nos esclarece na mensagem “Caridade essencial”, do livro Vinha de luz, trata-se da caridade de pensar, falar e agir segundo os ensinamentos do divino Mestre, no Evangelho. É a caridade de vivermos verdadeiramente nele para que Ele viva em nós. Sem esta, poderemos levar a efeito grandes serviços externos, alcançar intercessões valiosas, espalhar notáveis obras de pedra, mas, dentro de nós mesmos, nos instantes de supremo testemunho na fé, estaremos vazios e desolados, na condição de mendigos de luz.

Fica clara a ideia de que a nossa casa mental deve ser edificada, nas palavras de Mateus, sobre a rocha (2). Caso contrário, ao nos depararmos com as imperfeições de nossos irmãos que considerarmos como afronta insuportável, iremos interromper a manifestação da caridade, já que o que alimentava dentro de nós, pelas boas obras, estava alicerçado em bases orgulhosas e egoístas. Só não tínhamos percebido ainda isso... Vivíamos inebriados pelas mãos que agradeciam os atos exteriores realizados, achando que tínhamos alcançado os meandros mais profundos da sabedoria.

Ao pensarmos nisso, lembramo-nos do conto sobre o artista renascentista Michelangelo que relata que esse florentino, após esculpir a estátua de Moisés, em um momento de alucinação, teria dito a ela: “Perché non parli?”, ou seja: “Por que não fala?”.  Quantas vezes ficamos entristecidos, sentimo-nos solitários, falhos na fé, ao nos depararmos com uma pessoa de difícil convívio, não é mesmo? Mas isso se dá porque, como Michelangelo, mantemos a alucinação de que o outro precisa nos oferecer o grau de perfeição imaginado, a fim de “manter” a nossa paz. O que, muitas vezes, não vai acontecer. E nem pode acontecer, uma vez que se trata de um ato de violação do direito sagrado, concedido por Deus a todos nós, de cada um ser quem consegue ser.  Dizemos à pessoa: “por que você é assim?” ou “por que você não muda?”. Ao insistirmos nesse padrão de revolta, nós é que nos cristalizamos em verdadeiras estátuas de mármore, estagnados na ideia de não abandonar quem fomos, até aquele instante. Não queremos “queimar o óleo" de nossa candeia interior, para irradiar luz. A verdade é que, se permitirmos à sabedoria pousar em nossas consciências, agradeceremos ao irmão difícil que nos afere a paciência, em sua insistência em ser alguém que não aprovamos, que nos fere, pois somente ele foi o médico assertivo capaz de diagnosticar as nossas próprias deficiências. Fato que, sozinhos, demoraríamos, muitas vezes, séculos e séculos para perceber.

 Muitas vezes pequenos grupos de trabalho de caridade, trabalhadores dos centros espíritas que nos passam despercebidos, pelas suas tarefas aparentemente diminutas, ou familiares que persistentemente não desistem de manter os compromissos assumidos, servindo de suporte de luz para toda a família, sem receber o devido reconhecimento, realizam, segundo as palavras de Emmanuel, atividades muito mais sagradas e indiscutíveis aos olhos do Senhor, pois seguem expandindo, sem atavismos psíquicos, a construção do Reino de Deus a partir de seus corações. O caráter de quem está sendo ajudado, se algo irá se receber em troca, ou a proporção do bem que se pode fazer, tudo se torna discussão irrelevante para o caridoso essencial. A este, interessa, naquele dia, realizar bem os seus compromissos, ampliar a sua amorosidade e deixar, como assinatura, nas palavras de Chico Xavier, um sinal de alegria por onde passar.

Ele mantém em seu peito a certeza de que o dia de amanhã encarregar-se-á dele mesmo, e que tudo acontecerá, no tempo certo de Deus, a todos nós.


Referências:

1. Mt, 6:9-13

2. Mt, 7:21-27


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita