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por Marcelo Teixeira

 

O dia em que fui omisso


Já escrevi sobre dois episódios ocorridos comigo e nos quais, a meu ver, comportei-me como um cristão. São os textos intitulados “O dia em que fui ao céu” e “O dia em que minha prece foi ouvida”, ambos publicados aqui.  

Hoje é dia de ir pelo lado oposto. Vou contar sobre o dia em que vacilei feio. Afinal, nem sempre acertamos na mosca. Há dias em que erramos fragorosamente.

Como já relatado nos textos anteriores, trabalhei e estudei na cidade do Rio de Janeiro durante muitos anos. Em épocas de faculdade, quando eu não ficava no Rio, voltava de ônibus para Petrópolis pela Rodoviária Novo Rio. Fora isso, caso estivesse de férias dos estudos, saía do trabalho, no Centro do Rio, e pegava o ônibus para casa no Terminal Meneses Côrtes, bem próximo da empresa onde eu atuava.

Eu tinha o hábito de comprar a passagem na hora do almoço, pois, na hora do rush, é comum tomarmos chá de espera no Meneses Côrtes, que não é um local dos mais confortáveis. Por isso, garantia de antemão o meu assento para subir a serra.

O Meneses Côrtes era (não sei se ainda é) coalhado de gente pedindo dinheiro, vendendo bala etc. Geralmente, moradores de rua, jovens mães solteiras, crianças sujas e sem perspectiva... Coisa muito comum nessa barafunda injusta chamada Brasil. Ora eu ajudava, ora não. Dependia muito da condição do meu bolso de assalariado às voltas com muitas contas a pagar.

Havia, no entanto, um menino que eu ajudava sempre. Não era um menino comum. Era especial. Era um menino doce, meigo, cândido, educado... Diferentemente das demais crianças que circulavam pelo local (quase todas negras e morenas), esse menino era lourinho, lourinho. Ele vendia sachês. Todos bem embalados, perfumados e sempre bem arrumados num tabuleiro. Sempre que ele me via, vinha em minha direção porque sabia que eu compraria um ou mais sachês, que eu colocava nas gavetas dos armários aqui de casa. Conversávamos, eu fazia um carinho na cabeça dele, trocávamos sorrisos. Era um menino que me fazia bem. Até então, nunca havia me passado pela cabeça por que um menino de cerca de oito anos, em vez de estar na escola, brincando ou em casa com a família, andava sozinho pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro vendendo sachês.

Era o final da década de 80. Eu tinha 27 anos. E homem solteiro, nessa idade, não se liga muito na questão infantil. Eu via o menino, conversava com ele, mas não tinha olhos de ver o cenário social que envolvia aquela venda de sachês via mão de obra infantil. 

Estava na época de final de período letivo. Já havia feito boa parte das provas. Como não havia necessidade de ir todos os dias à faculdade, estava voltando para Petrópolis quase todos os dias via Terminal Meneses Cortes. Por isso, encontrava o menino com mais frequência.

Num desses dias, acabei não comprando a passagem na hora do almoço. Era sexta-feira, lembro bem. Dia em que o número de gente subindo para Petrópolis aumenta muito.

O expediente da empresa terminava às 17h. Nessa sexta, saí depois das 17h30. Cheguei ao Meneses Côrtes às 17h40. Só havia passagem para o ônibus das18h20, ou seja, teria de ficar andando pelas imediações para fazer hora, como dizemos aqui no Rio. Era final de ano. Lembro bem porque, apesar do fim de tarde, estava bem claro por causa do horário de verão.

Perambulava eu pela região esperando chegar a hora do meu embarque. De repente, vi o menino vindo em minha direção. Como sempre, com o tabuleiro cheio de sachês. Só que ele não vinha sozinho. Outros tantos meninos vendedores de sachês, balas etc. estavam com ele. E diferentemente da fisionomia doce e singela dos encontros anteriores, o menino estava triste. Mais do que isso: ele chorava. E junto com as lágrimas, algo mais descia pelo rostinho do menino dos sachês: sangue. Havia um filete de sangue escorrendo do canto esquerdo de sua boca. Um vermelho que em nada combinava com a sua singeleza habitual e nem com os tons pastéis dos sachês por ele vendidos. 

Ele e os demais meninos pararam diante de mim. Ele chorava, soluçava de dor, de medo e de carência. Perguntei o que havia acontecido. Meu cândido menino havia entrado num bar para vender os sachês e tomara um soco de um dos funcionários, talvez do dono. Daí seu choro copioso. Choro de criança agredida em sua infância, em sua dignidade, em sua candura, em sua carência de não ter um familiar por perto para lhe proteger e defender.

A boca não falava porque estava ocupada em soluçar e chorar. Mas eu entendi perfeitamente o que ele e os demais meninos queriam de mim. Queriam que eu fosse com eles até o bar e confrontasse o agressor. Ou queriam que eu chamasse a polícia. Ou queriam que eu tomasse qualquer providência, fosse qual fosse.

Consultei meu relógio de pulso; faltavam 15 minutos para o ônibus. E eu já com a passagem comprada. Um turbilhão de pensamentos veio à minha mente. Onde encontrar um policial? Não sabia. Onde a delegacia mais próxima? Não fazia ideia. O que eu diria para o homem do bar? Para aonde eu levaria o menino? Onde estavam seus pais ou responsáveis? Por que ele e os demais garotos à sua volta estavam na rua, perto das 18h30, vendendo sachês? Quem eu confrontaria caso me metesse no assunto? Algum esquema criminoso que aluga meninos das famílias para colocá-los na rua vendendo toda sorte de produtos? Até que horas eu ficaria retido no Rio de Janeiro para resolver aquela questão? Enfim, perguntas de quem não sabia lidar com aquela situação. Ou simplesmente desculpas que eu arranjei para não perder o ônibus, não me envolver. Sei lá, gente. Sei lá!  Naquela época, não sabia da vida o que o sei hoje, ou acho que sei. Não era tão assertivo quanto hoje. E o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) nem existia.

Olhei para o menino e disse que sentia muito, mas nada poderia fazer. Ele, então, chorando muito, foi embora chorando, seguido dos demais.

Confesso que, na hora, não atinei para a, digamos, gravidade do meu gesto. Momentos depois, vindo para Petrópolis, já havia até esquecido o ocorrido. E nunca mais vi aquele menino pelo Meneses Côrtes. Era o final da década de 80, repito, e eu trabalhei na região até meados de 1993.

O tempo passa, a vida vai nos sensibilizando, trazendo novas experiências. Não me casei e não tive filhos, mas ajudei a criar dois sobrinhos, a quem amo como filhos. Só quando comecei a lidar com os dois é que fui me sensibilizando no trato com crianças. Foi só aí que a história do menino dos sachês começou a me visitar e me fazer ver como eu fui calhorda em não acudi-lo. Aí é que entendi o seguinte: ele não queria que eu confrontasse o agressor, tampouco que chamasse a polícia ou enfrentasse alguma máfia. Ele queria simplesmente alguém para limpar aquele sangue, abraçá-lo, dar-lhe colo e beijá-lo. Era isso que ele queria: alguém que, acima de tudo, o defendesse das maldades do mundo e o socorresse. Enfim, ele queria um pai! E eu, na minha covardia, na minha falta de sensibilidade, tato, imaturidade e não sei mais o que, não me dei conta.

Até hoje minha consciência dói quando lembro essa história. E olha que já se vão quase 30 anos! Como eu anseio em reencontrar aquele menino, agora um homem de quase 40 anos! Tenho vontade de conversar com ele, pedir perdão e fazer o que não fiz no início de dezembro de 1989: dar-lhe carinho e proteção.

Certa vez, li uma matéria sobre segurança envolvendo o universo infantil. O item que mais me chamou atenção foi o que recomenda a crianças em apuros pedirem ajuda preferencialmente a mulheres. Os motivos são dois. Primeiro: raramente as mulheres são predadoras sexuais; isso é um desvio de personalidade típico do universo masculino. Segundo: as mulheres estão acostumadas a atender às necessidades das crianças. São elas que, na grande maioria dos casos, dão banho, fazem curativo, levam à escola, pegam no colo, dão comida, levam ao médico, socorrem na hora do choro, do tombo etc. Os homens se limitam, quando muito, a deixar a criança com um guarda. Já as mulheres não sossegarão enquanto aquela criança não estiver sã e salva na mão de familiares.

Sou espírita, como muitos que me leem sabem. Em “O Livro dos Espíritos”, Allan Kardec pergunta, na questão 932, por que o mal predomina na sociedade. A cortante resposta do plano espiritual afirma que é pelo fato de os bons serem omissos. Como eu, naquele dia. Enquanto os maus são audaciosos e intrigantes – algo que nossa realidade atual escancara todos os dias –, os bons são tímidos. Quando os bons quiserem, preponderarão. Não é à toa que a 932 é a minha preferida. Tanto que já escrevi sobre ela mais de uma vez.

Termino este texto com um apelo: compartilhem-no! Tenho esperanças de que ele chegue às mãos do menino dos sachês. Quem sabe vocês que me leem servirão de ponte para eu reencontrá-lo?

É um reencontro que eu peço à Providência Divina para que aconteça. Um dia, se Deus quiser, estarei de novo com aquele menino. Aí, farei por ele o que não fiz naquele dia. Não sei se será nesta ou noutra encarnação, mas eu preciso deste reencontro! Não avançarei em paz enquanto isso não acontecer!



 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita