O dia em que fui omisso
Já escrevi sobre dois episódios ocorridos comigo e nos
quais, a meu ver, comportei-me como um cristão. São os
textos intitulados “O dia em que fui ao céu” e “O dia em
que minha prece foi ouvida”, ambos publicados aqui.
Hoje é dia de ir pelo lado oposto. Vou contar sobre o
dia em que vacilei feio. Afinal, nem sempre acertamos na
mosca. Há dias em que erramos fragorosamente.
Como já relatado nos textos anteriores, trabalhei e
estudei na cidade do Rio de Janeiro durante muitos anos.
Em épocas de faculdade, quando eu não ficava no Rio,
voltava de ônibus para Petrópolis pela Rodoviária Novo
Rio. Fora isso, caso estivesse de férias dos estudos,
saía do trabalho, no Centro do Rio, e pegava o ônibus
para casa no Terminal Meneses Côrtes, bem próximo da
empresa onde eu atuava.
Eu tinha o hábito de comprar a passagem na hora do
almoço, pois, na hora do rush, é comum tomarmos chá de
espera no Meneses Côrtes, que não é um local dos mais
confortáveis. Por isso, garantia de antemão o meu
assento para subir a serra.
O Meneses Côrtes era (não sei se ainda é) coalhado de
gente pedindo dinheiro, vendendo bala etc. Geralmente,
moradores de rua, jovens mães solteiras, crianças sujas
e sem perspectiva... Coisa muito comum nessa barafunda
injusta chamada Brasil. Ora eu ajudava, ora não.
Dependia muito da condição do meu bolso de assalariado
às voltas com muitas contas a pagar.
Havia, no entanto, um menino que eu ajudava sempre. Não
era um menino comum. Era especial. Era um menino doce,
meigo, cândido, educado... Diferentemente das demais
crianças que circulavam pelo local (quase todas negras e
morenas), esse menino era lourinho, lourinho. Ele vendia
sachês. Todos bem embalados, perfumados e sempre bem
arrumados num tabuleiro. Sempre que ele me via, vinha em
minha direção porque sabia que eu compraria um ou mais
sachês, que eu colocava nas gavetas dos armários aqui de
casa. Conversávamos, eu fazia um carinho na cabeça dele,
trocávamos sorrisos. Era um menino que me fazia bem. Até
então, nunca havia me passado pela cabeça por que um
menino de cerca de oito anos, em vez de estar na escola,
brincando ou em casa com a família, andava sozinho pelas
ruas do Centro do Rio de Janeiro vendendo sachês.
Era o final da década de 80. Eu tinha 27 anos. E homem
solteiro, nessa idade, não se liga muito na questão
infantil. Eu via o menino, conversava com ele, mas não
tinha olhos de ver o cenário social que envolvia aquela
venda de sachês via mão de obra infantil.
Estava na época de final de período letivo. Já havia
feito boa parte das provas. Como não havia necessidade
de ir todos os dias à faculdade, estava voltando para
Petrópolis quase todos os dias via Terminal Meneses
Cortes. Por isso, encontrava o menino com mais
frequência.
Num desses dias, acabei não comprando a passagem na hora
do almoço. Era sexta-feira, lembro bem. Dia em que o
número de gente subindo para Petrópolis aumenta muito.
O expediente da empresa terminava às 17h. Nessa sexta,
saí depois das 17h30. Cheguei ao Meneses Côrtes às
17h40. Só havia passagem para o ônibus das18h20, ou
seja, teria de ficar andando pelas imediações para fazer
hora, como dizemos aqui no Rio. Era final de ano. Lembro
bem porque, apesar do fim de tarde, estava bem claro por
causa do horário de verão.
Perambulava eu pela região esperando chegar a hora do
meu embarque. De repente, vi o menino vindo em minha
direção. Como sempre, com o tabuleiro cheio de sachês.
Só que ele não vinha sozinho. Outros tantos meninos
vendedores de sachês, balas etc. estavam com ele. E
diferentemente da fisionomia doce e singela dos
encontros anteriores, o menino estava triste. Mais do
que isso: ele chorava. E junto com as lágrimas, algo
mais descia pelo rostinho do menino dos sachês: sangue.
Havia um filete de sangue escorrendo do canto esquerdo
de sua boca. Um vermelho que em nada combinava com a sua
singeleza habitual e nem com os tons pastéis dos sachês
por ele vendidos.
Ele e os demais meninos pararam diante de mim. Ele
chorava, soluçava de dor, de medo e de carência.
Perguntei o que havia acontecido. Meu cândido menino
havia entrado num bar para vender os sachês e tomara um
soco de um dos funcionários, talvez do dono. Daí seu
choro copioso. Choro de criança agredida em sua
infância, em sua dignidade, em sua candura, em sua
carência de não ter um familiar por perto para lhe
proteger e defender.
A boca não falava porque estava ocupada em soluçar e
chorar. Mas eu entendi perfeitamente o que ele e os
demais meninos queriam de mim. Queriam que eu fosse com
eles até o bar e confrontasse o agressor. Ou queriam que
eu chamasse a polícia. Ou queriam que eu tomasse
qualquer providência, fosse qual fosse.
Consultei meu relógio de pulso; faltavam 15 minutos para
o ônibus. E eu já com a passagem comprada. Um turbilhão
de pensamentos veio à minha mente. Onde encontrar um
policial? Não sabia. Onde a delegacia mais próxima? Não
fazia ideia. O que eu diria para o homem do bar? Para
aonde eu levaria o menino? Onde estavam seus pais ou
responsáveis? Por que ele e os demais garotos à sua
volta estavam na rua, perto das 18h30, vendendo sachês?
Quem eu confrontaria caso me metesse no assunto? Algum
esquema criminoso que aluga meninos das famílias para
colocá-los na rua vendendo toda sorte de produtos? Até
que horas eu ficaria retido no Rio de Janeiro para
resolver aquela questão? Enfim, perguntas de quem não
sabia lidar com aquela situação. Ou simplesmente
desculpas que eu arranjei para não perder o ônibus, não
me envolver. Sei lá, gente. Sei lá! Naquela época, não
sabia da vida o que o sei hoje, ou acho que sei. Não era
tão assertivo quanto hoje. E o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) nem existia.
Olhei para o menino e disse que sentia muito, mas nada
poderia fazer. Ele, então, chorando muito, foi embora
chorando, seguido dos demais.
Confesso que, na hora, não atinei para a, digamos,
gravidade do meu gesto. Momentos depois, vindo para
Petrópolis, já havia até esquecido o ocorrido. E nunca
mais vi aquele menino pelo Meneses Côrtes. Era o final
da década de 80, repito, e eu trabalhei na região até
meados de 1993.
O tempo passa, a vida vai nos sensibilizando, trazendo
novas experiências. Não me casei e não tive filhos, mas
ajudei a criar dois sobrinhos, a quem amo como filhos.
Só quando comecei a lidar com os dois é que fui me
sensibilizando no trato com crianças. Foi só aí que a
história do menino dos sachês começou a me visitar e me
fazer ver como eu fui calhorda em não acudi-lo. Aí é que
entendi o seguinte: ele não queria que eu confrontasse o
agressor, tampouco que chamasse a polícia ou enfrentasse
alguma máfia. Ele queria simplesmente alguém para limpar
aquele sangue, abraçá-lo, dar-lhe colo e beijá-lo. Era
isso que ele queria: alguém que, acima de tudo, o
defendesse das maldades do mundo e o socorresse. Enfim,
ele queria um pai! E eu, na minha covardia, na minha
falta de sensibilidade, tato, imaturidade e não sei mais
o que, não me dei conta.
Até hoje minha consciência dói quando lembro essa
história. E olha que já se vão quase 30 anos! Como eu
anseio em reencontrar aquele menino, agora um homem de
quase 40 anos! Tenho vontade de conversar com ele, pedir
perdão e fazer o que não fiz no início de dezembro de
1989: dar-lhe carinho e proteção.
Certa vez, li uma matéria sobre segurança envolvendo o
universo infantil. O item que mais me chamou atenção foi
o que recomenda a crianças em apuros pedirem ajuda
preferencialmente a mulheres. Os motivos são dois.
Primeiro: raramente as mulheres são predadoras sexuais;
isso é um desvio de personalidade típico do universo
masculino. Segundo: as mulheres estão acostumadas a
atender às necessidades das crianças. São elas que, na
grande maioria dos casos, dão banho, fazem curativo,
levam à escola, pegam no colo, dão comida, levam ao
médico, socorrem na hora do choro, do tombo etc. Os
homens se limitam, quando muito, a deixar a criança com
um guarda. Já as mulheres não sossegarão enquanto aquela
criança não estiver sã e salva na mão de familiares.
Sou espírita, como muitos que me leem sabem. Em “O Livro
dos Espíritos”, Allan Kardec pergunta, na questão 932,
por que o mal predomina na sociedade. A cortante
resposta do plano espiritual afirma que é pelo fato de
os bons serem omissos. Como eu, naquele dia. Enquanto os
maus são audaciosos e intrigantes – algo que nossa
realidade atual escancara todos os dias –, os bons são
tímidos. Quando os bons quiserem, preponderarão. Não é à
toa que a 932 é a minha preferida. Tanto que já escrevi
sobre ela mais de uma vez.
Termino este texto com um apelo: compartilhem-no! Tenho
esperanças de que ele chegue às mãos do menino dos
sachês. Quem sabe vocês que me leem servirão de ponte
para eu reencontrá-lo?
É um reencontro que eu peço à Providência Divina para
que aconteça. Um dia, se Deus quiser, estarei de novo
com aquele menino. Aí, farei por ele o que não fiz
naquele dia. Não sei se será nesta ou noutra encarnação,
mas eu preciso deste reencontro! Não avançarei em paz
enquanto isso não acontecer!
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