Espinho na carne
Infância-adolescência-vulnerabilidade
social
"JR é hemofílico. Contundiu-se em um jogo de futebol.
Pai analfabeto, desempregado, não tem recursos para a
medicação indicada. JR foi
ao hemocentro que atende hemofílicos. A internação
deixou-o nervoso. O estresse prejudica o processo de
coagulação. Piorou, a ponto de sangrar em vários pontos
do corpo. Os cuidados de enfermagem tiveram que ser
constantes. Ele também está infectado pelo vírus
da AIDS.
Isolado, sozinho e com saudades, passou a ter
comportamento difícil, recusando a medicação; grita com
médicos e enfermeiras. Tornou-se
problema. No entanto, não é um paciente problema, mas
uma criança que está sofrendo, que quer levar uma vida
normal, ir para casa e brincar. JR não sabe que
tem AIDS. Seu estado emocional não permite que seja
informado. Se ele não
entende por que tem hemofilia, como explicar-lhe por que
tem AIDS? JR tem, apenas, 11 anos."
Em 1977, quarenta anos atrás, fiquei estupefato lendo a Revista
de Pediatria (vol. 43).
Um artigo relata 21 casos de tentativas de suicídio em
crianças, 9 a 14 anos, por ingestão de produtos
químicos. Ainda hoje trago o espinho na carne.
Após o atendimento médico, foi feito o estudo das
condições e circunstâncias sociais/familiares que
pudessem estar relacionadas direta ou indiretamente com
o evento, e ainda uma análise dos fatores que pudessem
permitir a distinção entre a encenação suicida e a
verdadeira tentativa.
Dentre os fatores sociais/familiares relacionados com a
tentativa e as circunstâncias precipitantes, destacam-se
o alcoolismo dos pais em 6; mau relacionamento em 5, e a
ausência em 3. Como precipitante - desavença familiar.
Em 13 casos as mães tinham atividades profissionais
diurnas fora de casa e, usualmente, seus filhos menores
ficavam apenas na vigilância do mais velho. Em 14 casos,
o número de irmãos variava de 4 a 8 e em apenas um caso
foi encontrado filho único.
Os Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (CAPSi)
são as principais instituições públicas de saúde a
oferecer atenção diária a crianças e adolescentes que
demandam cuidados em saúde mental. Nesses Centros, os
profissionais são mobilizados para casos de uso abusivo
de álcool/drogas, autismo e outros transtornos.
O trabalho
com os familiares pode se tornar um dos maiores
desafios, porque são pessoas carregadas de angústia,
buscando respostas para os sintomas, tratamento e
acolhimento dos filhos. Por outro lado, elas também
sentem muita dificuldade em lidar com a doença dos
filhos.
Os profissionais de saúde terão que ajudá-las a exercer
suas funções de cuidado, e, ainda, resistir à vontade de
assumir os seus lugares. Faz-se necessário um trabalho
clínico para que estes desenvolvam ou resgatem
capacidades maternas e paternas.
Crianças e adolescentes que fazem uso de drogas lícitas
ou ilícitas, nos dias de hoje, transformaram-se numa
questão de extrema gravidade, fazendo emergir a angústia
dos profissionais que os atendem e os posicionamentos
polêmicos que envolvem o assunto. Manter um adolescente
usuário de drogas em tratamento com outros casos e
faixas etárias distintas implica para a equipe uma série
de dúvidas relacionadas ao manejo adequado e à relação
desses sujeitos com os demais pacientes.
Sentindo-se impotente, essas equipes ainda podem se
sentir sem as possibilidades de contar com outros
setores para o cuidado desses casos difíceis e podem se
aprisionar em discussões e queixas repetidas.
O autismo é outro grande desafio para a prática clínica
onde os profissionais compartilham também muitas dúvidas
sobre a forma de intervenção, condução do tratamento,
além de incômodo diante da angústia dos familiares, que
sempre buscam respostas e resultados rápidos. (1)
Aos desafios acima, podemos somar a questão do prazo de
validade da atual definição de saúde, que é utópica e já
ultrapassada, na visão de alguns profissionais de saúde.
Dizem que ela visa a uma “perfeição” inatingível,
separando o físico, o mental e o social. Não se pode
fazer a clivagem entre mente e soma, “devendo-se tratar
o doente e não a doença”.
Temos ainda que pensar que as injunções sociais atuam no
aparato complexo que é o sujeito. O estilo e o ritmo de
vida imposto pela cultura e a modalidade da organização
do trabalho podem impedir o trabalhador de manter seu
funcionamento mental pleno. A vida, nas metrópoles,
aponta na direção de uma unidade “sociopsicossomática”.
Será que no futuro estaremos concordando com Segre &
Ferraz, que sugerem que “saúde é um estado de razoável
harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade”? (2)
Na Ética das Virtudes buscava-se “O Caminho do Meio”.
Depois, com a Ética do Amor, aprendemos a “fazer ao
outro o que gostaríamos que o outro nos fizesse”.
Estamos diante de uma ética transdisciplinar, aquela que
não recusa o diálogo, a discussão, seja qual for sua
origem – de ordem ideológica, científica, religiosa,
econômica, política ou filosófica.
Existem inteligências diversas, as mais conhecidas são:
a cognitiva e a emocional. No entanto, a espiritual é a
que parece representar o mais expressivo grau de
inteligência. Nesta, as ligações neuronais alcançariam
posições bastante complexas, com ativa participação da
base cerebral, zona do conhecido lobo límbico. Este
modelo participaria das criações psicológicas, onde a
intuição representaria a mola mestra do processo.
Inteligência emocional fala de emoções, a espiritual
fala da alma. A espiritual tem a ver com o que algo
significa para mim e não apenas como as coisas afetam
minha emoção e como reajo. Na fase evolutiva em que nos
encontramos, a inteligência espiritual coletiva é baixa
na sociedade moderna. Vivemos numa cultura
espiritualmente estúpida.
Uma síntese arriscada, a cognição nos capacita a achar
caminhos e identificar as melhores rotas. A afetividade
nos ajuda a escolher a melhor. A inteligência espiritual
nos oferece a certeza na escolha.
Bill recostou-se na cadeira alta e contou.
“Nós moramos no bairro judeu, em Varsóvia, começou
ele, pausadamente. Moramos lá, minha esposa, nossas duas
filhas e nossos três garotos. Quando os alemães chegaram
à nossa rua, alinharam a todos contra o muro e abriram
fogo com as metralhadoras. Supliquei para morrer com a
minha família, mas, porque falava alemão, eles me
botaram num grupo de trabalho.
Fez uma pausa, talvez revendo esposa e cinco filhos.
Eu tinha de decidir no ato se passava a odiar os
soldados que tinham feito aquilo. Era, realmente,
uma decisão fácil.
Eu era advogado. Minha prática, com frequência, me havia
mostrado o que o ódio podia fazer às pessoas, de corpo e
mente. Aliás, fora o ódio que acabara de matar as seis
pessoas que me eram mais importantes no mundo. Decidi
então que, fosse qual fosse o tempo que me sobrasse de
vida, iria empregá-lo no amor a todo ser, com que
viesse a entrar em contato."
Leia mais:
1. Oliveira, A. C. B &
Miranda, L. 2015. Práticas clínicas e o
cuidado possível no CAPSi: perspectivas de uma equipe
interdisciplinar. Acesso em novembro de 2019. clique
aqui
2. Segre, M. & Ferraz, F. C. 1997. O conceito de
saúde. Ponto de Vista. Rev. Saúde Pública, 31 (5):
538- 542. São Paulo. SP. Acesso em novembro 2019. clique
neste link
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