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por Valéria Xavier

 

O amor que não se cansa


O cansaço e a exaustão nos remetem sempre a uma limitação individual, algo que nos impede de seguir com toda energia rumo à consecução de nossos objetivos.

Atentei-me que vivemos refletindo sobre nossas vidas aqui no orbe, nossas atividades, a natureza, mas quase nunca falamos sobre os nobres trabalhadores do Cristo que, em silêncio, operam os mandamentos do evangelho sem cessar. Por isso gostaria de falar sobre a amorosidade da espiritualidade superior para conosco.  Saímos de tempos remotos em que achávamos que a assessoria dos Espíritos em nossas vidas só se dava porque eles tinham metas idênticas às humanas, precisando que fizessem sacrifícios os mais variados, para operarem assim a nosso favor. Passamos por longos séculos num verdadeiro escambo com Deus e seus emissários, procurando satisfazer nossas necessidades materializadas, e dando em troca, ao mundo espiritual, algum tipo de sacrifício coisificado. Podemos refletir que nessa época, devido à nossa falta de uma fé mais refinada, Deus seria como nosso capataz, apto a nos atender, mas que poderia também “se cansar” da gente, caso materialmente não lhe rendêssemos as devidas honrarias. Isso fez com que criássemos tantos templos e atos puramente externos, uma vez que falar com a divindade começou a precisar de um local “sagrado”, paramentos adequados, que representassem quão especial e superior era o momento do contato com o sobrenatural.

Minha mente, como sempre, procura Francisco de Assis para refletir. Procuro o que hoje ele poderia me dizer a respeito da permanência do amor de Deus. Uma vez ele e Frei Leão estavam vindo, durante o inverno de Perúgia, para Santa Maria dos Anjos. E como estavam atormentados pelo frio, o poverello chama seu colega que ia mais à frente e diz assim: “Irmão Leão, ainda que o frade menor desse na Terra inteira grande exemplo de santidade e de boa edificação, escreve e anota diligentemente que nisso não está a perfeita alegria. E vai durante o caminho, cada vez com mais entusiasmo, enumerando onde a alegria não está. Frei Leão depois de ouvir todas as afirmações de Francisco, lhe indaga sobre onde então a alegria estaria. Francisco responde:  “Quando chegarmos a Santa Maria dos Anjos, inteiramente molhados pela chuva e transidos de frio, cheios de lama e aflitos de fome, e batermos à porta do convento e o porteiro chegar irrigado e disser: “Quem são vocês?”, e nós dizermos: “Somos dois dos vossos irmãos”, e ele disser: “Não dizem a verdade; são dois vagabundos que andam enganando o mundo e roubando as esmolas dos pobres. Fora daqui, e não nos abrir e deixar-nos estar ao tempo, à neve e à chuva, com frio e fome até à noite... Então, se suportarmos tal injúria e tal crueldade, tantos maus-tratos, prazenteiramente, sem nos perturbarmos e sem murmurarmos contra ele, e pensarmos humildemente e caritativamente que o porteiro verdadeiramente nos tinha reconhecido e que Deus o fez falar contra nós: ó Irmão Leão, escreve que nisso está a perfeita alegria”.

Quem ler a história toda, irá perceber que ele nomeia todas as circunstâncias que estavam passando pela sua mente, e que poderiam ser obstáculos à manutenção de seu contato espiritual permanente com Deus. Uma a uma, conforme falava, ia se desprendendo mentalmente das armadilhas morais que todas elas possuíam, quando afirmava, ao final da frase, que a alegria verdadeira não se encontrava nelas. Essa era a única preocupação permanente em seu coração: se desfazer de tudo o que lhe mantinha distante de Nosso Senhor. 

Hoje em dia, estamos começando a compreender que a não aproximação ou distanciamento de Nosso Senhor não se fará pelas nossas posses, pelos templos e ornamentos que fazemos em homenagem a Deus. Estamos nos voltando aos princípios franciscanos, cada vez mais, compreendendo que deveria ser um anseio nosso a busca pelo teste que vem pelas mãos alheias. Francisco nos fala do verdadeiro “piacere” que existe em se consumir através da renúncia das próprias vontades, colocando-se à disposição do que o outro tem a nos oferecer. Essa seria a primeira parte presente em toda atitude franciscana, que podemos chamar de recepção. A segunda parte é de devolução: trata de devolver ao outro todo o bem que for possível ao seu coração com extrema humildade, tendo a consciência exata de que o outro sabe que está sendo injusto com você (o porteiro teria fingido não reconhecer os dois frades), sabe como e quando lhe ferir, e assim o faz, porque pode na ocasião. Francisco insiste que quanto mais for assim, mais verdadeira se fará a alegria. Na terceira parte do movimento, Francisco diz para Frei Leão que a alegria verdadeira estaria em compreender que o porteiro, o frio, o abuso, a fome, as injúrias tratavam-se de pura e amorosa permissão divina para nosso aprendizado. Francisco falava a respeito da Onisciência de Deus de todos os momentos de nossas vidas, podendo esse derradeiro movimento de sua atitude se chamar de submissão. Podemos imaginar que, por isso, amava tanto a natureza. Porque mantinha constante o pensamento de que nem uma folha cai sem a vontade de Nosso Pai. Então o fechamento do pensamento, que contém as 3 ações que costuram de luz nossa roupagem nupcial para com o divino, tem a ver com o entendimento da subalternidade e presença plena de Deus para conosco, em cada instante de nossas vidas. Recepção, ação e submissão à vontade divina. Será sempre nesse movimento de ações que encontremos a verdadeira alegria de ser e viver, segundo o poverello. Podemos aplicar em todos os movimentos da vida essa regra de luz, e ela brilhará nos mostrando a verdade de sua prática.

A espiritualidade amiga que nos acompanha não se cansa nunca de nós, porteiros imprevidentes de castelos em construção. Creio que seja porque eles aplicam as 3 etapas que compõem o agir franciscano, constantemente em nós. Seja no frio quando deixamos Perúgia, ou no Verão de nossa chegada em Assis, invariavelmente, continuam conosco nos amparando, nos amando e nos orientando o caminho mais adequado a seguir, nos lembrando suavemente quando permitimos que não haverá contato mais íntimo, com Nosso Senhor e com eles próprios, do que nossas ações na alegria do bem servir, sem reservas.

 

Valéria Xavier é palestrante e articulista espírita radicada no Distrito Federal.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita