O livro “Maria
de Nazaré”
do autor espiritual
Miramez, pela mediunidade de João Nunes Maia: Uma
análise crítica
O zelo doutrinário e o cuidado em não aceitar utopias
antes de elas serem confirmadas é o mínimo de critério
que todo espírita consciente deve ter antes de admitir
algo dentro do contexto do estudo espírita. Esse
critério deve ser ainda mais rigoroso antes do
espiritista sair divulgando ou citando, enquanto
expositor ou articulista espírita, tais dados ou
informações como corroborações a qualquer ideia ou
informações, ainda mais quando digam respeito a
realidades de difícil constatação, tais como detalhes da
vida do mundo espiritual; eventos espirituais envolvendo
Espíritos de elevadíssima condição, episódios
espirituais de um passado distante, entre outros. Esse
tipo de escrúpulo é o que faz com que o Espiritismo não
seja apenas uma religião convencional, mas esteja
sustentado em um tripé científico-filosófico-religioso,
cujo material de conexão dos vértices desse triângulo é
a fé raciocinada.
Temos observado confrades citarem a obra “Maria de
Nazaré”, atribuída ao Espírito Miramez pela mediunidade
de João Nunes Maia, sem a conhecerem minimamente. Por
outras vezes, percebemos escritores pinçando somente
aquilo que possa corroborar seus próprios pensamentos,
sem levarem em conta que quando uma obra tem uma série
de problemas, todo o seu conteúdo passa a ficar sob
suspeita. Aliás, esse tipo de corroboração é muito
perigosa, pois passa uma ideia de confirmação de
conceitos dentro do âmbito doutrinário, o que não
necessariamente é o caso.
A Universalidade do Ensino dos Espíritos só é
identificada com a seleção correta de obras que tenham
condições para serem pré-selecionadas. Ou seja, o
controle da concordância universal do ensino dos
Espíritos só funciona para as corroborações de autores
e/ou obras que previamente passaram por vários crivos,
abrangendo pré-requisitos mediúnicos, morais,
intelectuais etc.
Na obra “Maria de Nazaré” de Miramez/João Nunes Maia, o
autor, para defender o mito católico da suposta
virgindade de Maria (antes, durante e após a concepção,
a gestação e o nascimento de Jesus) e para encontrar uma
espécie de “meio-termo” em relação à antiga polêmica
dentro do movimento espírita sobre o corpo de Jesus
(para Kardec, o corpo de Jesus seria de carne, tal como
o de qualquer ser humano, e, para Roustaing, seria um
corpo fluídico, diferenciado de todos os outros seres
humanos que já nasceram aqui na Terra), encontra uma
hipótese deveras inusitada (nesse sentido, muito próxima
de Roustaing pela tendência ao pensamento mágico e aos
fenômenos miraculosos, bem ao estilo do Velho
Testamento). De fato, o autor defende que Jesus nasceu
realmente de um óvulo fisiológico (material) normal de
Maria, mas o espermatozoide que o fecundou era
espiritual, ou, se preferirmos, perispiritual (ou seja,
o gameta masculino seria uma espécie de gameta do mundo
espiritual ou gameta do espaço, sem uma definição de
origem, ou seja, sem um pai determinado). Essa constitui
uma das utopias mais surreais já apresentadas no
movimento espírita. Dificilmente encontraremos uma
proposta mais bizarra, das várias que já foram
enunciadas em obras que são difundidas como obras
espíritas e, infelizmente, permeiam nosso movimento.
Seria o caso de se questionar: Miramez foi o único
Espírito que teve acesso a essa informação (já que,
somente ele, que se saiba, defendeu essa ideia
heterodoxa)? E se foi o único deve ser rejeitada por
todo espírita lúcido, uma vez que não passa pelo
critério da Universalidade do Ensino dos Espíritos.
É curioso que, com base no texto bíblico, a famosa
passagem que Jesus teria afirmado “…dos nascidos de
mulher, João Batista é o maior…” (ele dizia isso porque
se referia e Ele mesmo como “O Filho do Homem”, pelo
menos em concordância com o texto do Evangelho) ficaria
totalmente sem sentido. Realmente, na hipótese de
Miramez, ninguém teria nascido tanto de mulher, e só de
mulher, quanto Jesus.
O autor alega que “…Ele era de natureza humana e
divina…” (p. 314), demonstrando a tentação de recorrer a
uma espécie de “Santíssima trindade” para explicar
Jesus. Portanto, o catolicismo marcante para destacar a
“eterna virgindade” de Maria é reforçado pela ideia de
Divindade de Jesus.
Quem ler apenas esse trecho que comenta sobre a
“inseminação espiritual” para constituir o chamado
“corpo híbrido” ou “biocorpo”, certamente ficará
impactato pela extravagância das explicações, mas,
talvez, não perceba o porquê desse mirabolante tipo de
narrativa/discussão. No entanto, aqueles que como esse
que vos escreve leram as quase 500 páginas do livro
notaram o contexto que está por detrás de tais ideias.
De fato, o livro parece ser uma obra de ficção elaborada
por alguém que tem profundas influências católicas e
também “místicas”, entendo mística em um sentido de
predileção por abordagens heterodoxas, de preferência
com um viés de sociedade secreta, isto é, conteúdo de
certa forma “hermético”. Ademais, o movimento espírita
não tem passado incólume à grande “tentação” que sofrem
seus palestrantes, escritores e editores de ficarem
famosos. Nós sofremos uma intensa “tentação”, mesmo que
inconsciente, de buscar originalidade e, quiçá, de fazer
história com uma descoberta “genial”, o que projetaria
nosso nome à fama, mesmo que estejamos correndo o risco
de contar uma grande mentira. Triste é a situação do
trabalhador espírita que prefere a fama e o
reconhecimento do mundo material em vez do trabalho de
qualidade, divulgando a Verdade, mesmo que de forma mais
anônima e sem projeção. Essa busca por notoriedade
costuma cegar todos os cuidados críticos dos autores e,
no que diz respeito aos editores, muitas vezes o
potencial mercadológico prevaleça em relação aos
cuidados doutrinários, gerando a atual crise de
qualidade do livro espírita. Lamentavelmente, ideias
esdrúxulas costumam atrair mais atenção do que reflexões
sóbrias, calcadas na realidade e no estudo persistente e
sereno dos temas espirituais.
Não satisfeito em defender tamanha “inovação”, o autor
alega que a “inseminação espiritual” ocorreu para Jesus
e também para vários outros missionários (antes e depois
de Cristo), tais como Apolônio de Tiana; Melquisedech;
Krishna; Buda, entre outros. Seria o caso de se
questionar: esses missionários também tinham uma
natureza dupla, humana e divina?!
Na obra, Jesus afirma que “não é contra a cobrança do
dízimo”. Posição estranhíssima se analisarmos o conjunto
de ensinamentos do Mestre de Nazaré. Jesus também usa
expressões estranhas para a época, tais como “direitos
humanos”. Ora, tal expressão só surgiu, com seus
significados atuais, muitíssimo tempo depois.
Em oposição a Emmanuel (“A Caminho da Luz”), Jesus achou
mais conveniente para “se preparar melhor” para sua
missão, ficar um tempo com os essênios após os treze
anos. Ora, “Antes de Abraão ser, Eu sou”, teria dito o
Mestre. Ele não tinha nada para aprender com os essênios
que justificasse o afastamento de suas obrigações
crescentes que Ele teria com sua família material, dada
a idade avançada de seu pai, José de Nazaré, e os vários
irmãos que ele precisava ajudar, além de sua própria mãe.
Segundo o texto de Miramez, o casamento de José foi meio
que “arrumado” (p. 266) pelos religiosos da época (José
nem conhecia Maria…) e muita gente já sabia (antes,
durante e depois do nascimento de Jesus) da (suposta)
situação de “virgindade eternal” de Maria.
Aliás, quando jovem, muito estranhamente Maria fazia
muitas pregações e era admirada por vários grupos
diferentes de religiosos em uma época de extremado
machismo, sobretudo por parte dos judeus daquele tempo.
Isso parece razoável?
Segundo o livro da mediunidade de João Nunes Maia, José
sentia-se inferiorizado em relação a Maria. A idolatria
a Maria, levada a verdadeiros exageros, costuma,
infelizmente, para exaltá-la em nível extremo, rebaixar,
incompreensivelmente, o valor do Espírito José de Nazaré.
Emmanuel, em um dos seus livros de mensagem da série
Fonte Viva afirma que ambos já eram Espíritos muitíssimo
elevados. Portanto, mais uma vez, Miramez está em
oposição a Emmanuel. José, segundo o volumoso livro de
Miramez, teve que ser conscientizado e convencido de que
a sua missão e a de seu casamento não seriam nem de
perto próximas de um casamento real da Terra e, por isso,
ele não poderia ter contato íntimo com Maria (mais uma
vez os atavismos da cultura religiosa mitológica pesando
no texto).
De acordo com Miramez, um curioso fato aconteceu nos
últimos anos de vida de Maria. Apolônio de Tiana a
procurou para chamá-la de mãe (p. 479).
O livro é cheio de expressões estranhas ao Espiritismo,
tais como “A Queda de um Anjo” (p. 21), e também defende
ideias esdrúxulas como aquela que estabele que Jesus
veio se aproximando da Terra gradualmente, oriundo das
esferas superiores (p. 339). Ora, Ele não está aqui
entre nós? Ele não é o governador da Terra, conforme
Emmanuel e até Kardec em “Revista Espírita”? E quando
elevamos a sintonia não nos conectamos cada vez mais com
Ele? A “distância” não seria apenas vibratória, conforme
aprendemos com Allan Kardec e as obras subsidíarias
respeitáveis do Espiritismo?
A obra também repete exaustivamente que Jesus seria da
“linhagem de Davi e de Salomão” (por exemplo, na página
266). Em primeiro lugar, se somente o óvulo era de Maria
e o espermatozoide não era de José de Nazaré, isso está
certo?! Não é José o descendente de Davi e Salomão? E o
que é mais importante: que diferença isso faz?! Altera a
elevação espiritual de Jesus ou de seu conteúdo
libertador, O Evangelho?!
No prefácio da obra (p. 10), o Espírito Lancellin (outra
entidade que publicava com João Nunes Maia) revela que
Miramez era o “mancebo rico” que teria encontrado Jesus
e que, convidado a segui-lo após dar seus bens aos
pobres, teria se afastado entristecido. Informação que
atrai o interesse de curiosos de plantão, mas que não
temos como avaliar. Ademais, observam-se excessivos
elogios no prefácio ao autor espiritual e ao livro
tratado como “essa misericórdia, transformada em
livro…”.
Teríamos um número muito maior de itens para ilustrar as
colocações no mínimo questionáveis dessa obra de
Miramez, mas consideramos que esse pequeno resumo já
possa induzir uma pequena reflexão sobre a qualidade
intrínseca da obra em questão.
Por fim, seria interessante um último registro. Na
versão utilizada na presente
leitura e
análise, há um interessante anexo no fim do livro (p.
486-487), redigido em forma de perguntas e respostas, no
qual os editores (editora FONTE VIVA) da respectiva
publicação tentam justificar o adiamento e, por fim, a
decisão pela publicação do livro “Maria de Nazaré” em
função do avanço da ciência de 1983 até a virada do
século (2000/2001) e do amadurecimento doutrinário dos
próprios editores. Isso ocorre porque o prefácio do
livro é de 25 de dezembro de 1983 e os editores
resolveram publicar dezessete (17) anos depois, uma vez
que, segundo eles, a chamada “Panspermia – que afirma
que a vida chegou do espaço…” dá respaldo às propostas
exaradas do livro (o médium desencarnou em 1991 e,
consequentemente, não estava fisicamente presente para
opinar na virada do milênio). De lá para cá, 72.000
exemplares já foram publicados (a versão lida por esse
articulista é da décima nona (19) edição – segunda
reimpressão). Resta saber que avanço científico os
editores identificaram, acompanharam e compreenderam que
justifique um retorno tão drástico a mitos religiosos do
passado e a “elucidação” do nascimento de Jesus, e de
outros líderes religiosos, com, talvez, a proposta mais
extravagante (entre muitos fortes candidatos) já
publicada.
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