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por Leonardo Marmo Moreira

 

O livro “Maria de Nazaré” do autor espiritual Miramez, pela mediunidade de João Nunes Maia: Uma análise crítica


O zelo doutrinário e o cuidado em não aceitar utopias antes de elas serem confirmadas é o mínimo de critério que todo espírita consciente deve ter antes de admitir algo dentro do contexto do estudo espírita. Esse critério deve ser ainda mais rigoroso antes do espiritista sair divulgando ou citando, enquanto expositor ou articulista espírita, tais dados ou informações como corroborações a qualquer ideia ou informações, ainda mais quando digam respeito a realidades de difícil constatação, tais como detalhes da vida do mundo espiritual; eventos espirituais envolvendo Espíritos de elevadíssima condição, episódios espirituais de um passado distante, entre outros. Esse tipo de escrúpulo é o que faz com que o Espiritismo não seja apenas uma religião convencional, mas esteja sustentado em um tripé científico-filosófico-religioso, cujo material de conexão dos vértices desse triângulo é a fé raciocinada.

Temos observado confrades citarem a obra “Maria de Nazaré”, atribuída ao Espírito Miramez pela mediunidade de João Nunes Maia, sem a conhecerem minimamente. Por outras vezes, percebemos escritores pinçando somente aquilo que possa corroborar seus próprios pensamentos, sem levarem em conta que quando uma obra tem uma série de problemas, todo o seu conteúdo passa a ficar sob suspeita. Aliás, esse tipo de corroboração é muito perigosa, pois passa uma ideia de confirmação de conceitos dentro do âmbito doutrinário, o que não necessariamente é o caso.

A Universalidade do Ensino dos Espíritos só é identificada com a seleção correta de obras que tenham condições para serem pré-selecionadas. Ou seja, o controle da concordância universal do ensino dos Espíritos só funciona para as corroborações de autores e/ou obras que previamente passaram por vários crivos, abrangendo pré-requisitos mediúnicos, morais, intelectuais etc.

Na obra “Maria de Nazaré” de Miramez/João Nunes Maia, o autor, para defender o mito católico da suposta virgindade de Maria (antes, durante e após a concepção, a gestação e o nascimento de Jesus) e para encontrar uma espécie de “meio-termo” em relação à antiga polêmica dentro do movimento espírita sobre o corpo de Jesus (para Kardec, o corpo de Jesus seria de carne, tal como o de qualquer ser humano, e, para Roustaing, seria um corpo fluídico, diferenciado de todos os outros seres humanos que já nasceram aqui na Terra), encontra uma hipótese deveras inusitada (nesse sentido, muito próxima de Roustaing pela tendência ao pensamento mágico e aos fenômenos miraculosos, bem ao estilo do Velho Testamento). De fato, o autor defende que Jesus nasceu realmente de um óvulo fisiológico (material) normal de Maria, mas o espermatozoide que o fecundou era espiritual, ou, se preferirmos, perispiritual (ou seja, o gameta masculino seria uma espécie de gameta do mundo espiritual ou gameta do espaço, sem uma definição de origem, ou seja, sem um pai determinado). Essa constitui uma das utopias mais surreais já apresentadas no movimento espírita. Dificilmente encontraremos uma proposta mais bizarra, das várias que já foram enunciadas em obras que são difundidas como obras espíritas e, infelizmente, permeiam nosso movimento.

Seria o caso de se questionar: Miramez foi o único Espírito que teve acesso a essa informação (já que, somente ele, que se saiba, defendeu essa ideia heterodoxa)? E se foi o único deve ser rejeitada por todo espírita lúcido, uma vez que não passa pelo critério da Universalidade do Ensino dos Espíritos.

É curioso que, com base no texto bíblico, a famosa passagem que Jesus teria afirmado “…dos nascidos de mulher, João Batista é o maior…” (ele dizia isso porque se referia e Ele mesmo como “O Filho do Homem”, pelo menos em concordância com o texto do Evangelho) ficaria totalmente sem sentido. Realmente, na hipótese de Miramez, ninguém teria nascido tanto de mulher, e só de mulher, quanto Jesus.

O autor alega que “…Ele era de natureza humana e divina…” (p. 314), demonstrando a tentação de recorrer a uma espécie de “Santíssima trindade” para explicar Jesus. Portanto, o catolicismo marcante para destacar a “eterna virgindade” de Maria é reforçado pela ideia de Divindade de Jesus.

Quem ler apenas esse trecho que comenta sobre a “inseminação espiritual” para constituir o chamado “corpo híbrido” ou “biocorpo”, certamente ficará impactato pela extravagância das explicações, mas, talvez, não perceba o porquê desse mirabolante tipo de narrativa/discussão. No entanto, aqueles que como esse que vos escreve leram as quase 500 páginas do livro notaram o contexto que está por detrás de tais ideias. De fato, o livro parece ser uma obra de ficção elaborada por alguém que tem profundas influências católicas e também “místicas”, entendo mística em um sentido de predileção por abordagens heterodoxas, de preferência com um viés de sociedade secreta, isto é, conteúdo de certa forma “hermético”. Ademais, o movimento espírita não tem passado incólume à grande “tentação” que sofrem seus palestrantes, escritores e editores de ficarem famosos. Nós sofremos uma intensa “tentação”, mesmo que inconsciente, de buscar originalidade e, quiçá, de fazer história com uma descoberta “genial”, o que projetaria nosso nome à fama, mesmo que estejamos correndo o risco de contar uma grande mentira. Triste é a situação do trabalhador espírita que prefere a fama e o reconhecimento do mundo material em vez do trabalho de qualidade, divulgando a Verdade, mesmo que de forma mais anônima e sem projeção. Essa busca por notoriedade costuma cegar todos os cuidados críticos dos autores e, no que diz respeito aos editores, muitas vezes o potencial mercadológico prevaleça em relação aos cuidados doutrinários, gerando a atual crise de qualidade do livro espírita. Lamentavelmente, ideias esdrúxulas costumam atrair mais atenção do que reflexões sóbrias, calcadas na realidade e no estudo persistente e sereno dos temas espirituais.

Não satisfeito em defender tamanha “inovação”, o autor alega que a “inseminação espiritual” ocorreu para Jesus e também para vários outros missionários (antes e depois de Cristo), tais como Apolônio de Tiana; Melquisedech; Krishna; Buda, entre outros. Seria o caso de se questionar: esses missionários também tinham uma natureza dupla, humana e divina?!

Na obra, Jesus afirma que “não é contra a cobrança do dízimo”. Posição estranhíssima se analisarmos o conjunto de ensinamentos do Mestre de Nazaré. Jesus também usa expressões estranhas para a época, tais como “direitos humanos”. Ora, tal expressão só surgiu, com seus significados atuais, muitíssimo tempo depois.

Em oposição a Emmanuel (“A Caminho da Luz”), Jesus achou mais conveniente para “se preparar melhor” para sua missão, ficar um tempo com os essênios após os treze anos. Ora, “Antes de Abraão ser, Eu sou”, teria dito o Mestre. Ele não tinha nada para aprender com os essênios que justificasse o afastamento de suas obrigações crescentes que Ele teria com sua família material, dada a idade avançada de seu pai, José de Nazaré, e os vários irmãos que ele precisava ajudar, além de sua própria mãe.

Segundo o texto de Miramez, o casamento de José foi meio que “arrumado” (p. 266) pelos religiosos da época (José nem conhecia Maria…) e muita gente já sabia (antes, durante e depois do nascimento de Jesus) da (suposta) situação de “virgindade eternal” de Maria.

Aliás, quando jovem, muito estranhamente Maria fazia muitas pregações e era admirada por vários grupos diferentes de religiosos em uma época de extremado machismo, sobretudo por parte dos judeus daquele tempo. Isso parece razoável?

Segundo o livro da mediunidade de João Nunes Maia, José sentia-se inferiorizado em relação a Maria. A idolatria a Maria, levada a verdadeiros exageros, costuma, infelizmente, para exaltá-la em nível extremo, rebaixar, incompreensivelmente, o valor do Espírito José de Nazaré. Emmanuel, em um dos seus livros de mensagem da série Fonte Viva afirma que ambos já eram Espíritos muitíssimo elevados. Portanto, mais uma vez, Miramez está em oposição a Emmanuel. José, segundo o volumoso livro de Miramez, teve que ser conscientizado e convencido de que a sua missão e a de seu casamento não seriam nem de perto próximas de um casamento real da Terra e, por isso, ele não poderia ter contato íntimo com Maria (mais uma vez os atavismos da cultura religiosa mitológica pesando no texto).

De acordo com Miramez, um curioso fato aconteceu nos últimos anos de vida de Maria. Apolônio de Tiana a procurou para chamá-la de mãe (p. 479).

O livro é cheio de expressões estranhas ao Espiritismo, tais como “A Queda de um Anjo” (p. 21), e também defende ideias esdrúxulas como aquela que estabele que Jesus veio se aproximando da Terra gradualmente, oriundo das esferas superiores (p. 339). Ora, Ele não está aqui entre nós? Ele não é o governador da Terra, conforme Emmanuel e até Kardec em “Revista Espírita”? E quando elevamos a sintonia não nos conectamos cada vez mais com Ele? A “distância” não seria apenas vibratória, conforme aprendemos com Allan Kardec e as obras subsidíarias respeitáveis do Espiritismo?

A obra também repete exaustivamente que Jesus seria da “linhagem de Davi e de Salomão” (por exemplo, na página 266). Em primeiro lugar, se somente o óvulo era de Maria e o espermatozoide não era de José de Nazaré, isso está certo?! Não é José o descendente de Davi e Salomão? E o que é mais importante: que diferença isso faz?! Altera a elevação espiritual de Jesus ou de seu conteúdo libertador, O Evangelho?!

No prefácio da obra (p. 10), o Espírito Lancellin (outra entidade que publicava com João Nunes Maia) revela que Miramez era o “mancebo rico” que teria encontrado Jesus e que, convidado a segui-lo após dar seus bens aos pobres, teria se afastado entristecido. Informação que atrai o interesse de curiosos de plantão, mas que não temos como avaliar. Ademais, observam-se excessivos elogios no prefácio ao autor espiritual e ao livro tratado como “essa misericórdia, transformada em livro…”.

Teríamos um número muito maior de itens para ilustrar as colocações no mínimo questionáveis dessa obra de Miramez, mas consideramos que esse pequeno resumo já possa induzir uma pequena reflexão sobre a qualidade intrínseca da obra em questão.

Por fim, seria interessante um último registro. Na versão utilizada na presente leitura e análise, há um interessante anexo no fim do livro (p. 486-487), redigido em forma de perguntas e respostas, no qual os editores (editora FONTE VIVA) da respectiva publicação tentam justificar o adiamento e, por fim, a decisão pela publicação do livro “Maria de Nazaré” em função do avanço da ciência de 1983 até a virada do século (2000/2001) e do amadurecimento doutrinário dos próprios editores. Isso ocorre porque o prefácio do livro é de 25 de dezembro de 1983 e os editores resolveram publicar dezessete (17) anos depois, uma vez que, segundo eles, a chamada “Panspermia – que afirma que a vida chegou do espaço…” dá respaldo às propostas exaradas do livro (o médium desencarnou em 1991 e, consequentemente, não estava fisicamente presente para opinar na virada do milênio). De lá para cá, 72.000 exemplares já foram publicados (a versão lida por esse articulista é da décima nona (19) edição – segunda reimpressão). Resta saber que avanço científico os editores identificaram, acompanharam e compreenderam que justifique um retorno tão drástico a mitos religiosos do passado e a “elucidação” do nascimento de Jesus, e de outros líderes religiosos, com, talvez, a proposta mais extravagante (entre muitos fortes candidatos) já publicada.


 

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita