Minha
verdade,
minha
medida
“Não julgueis, pois, para não serdes julgados; porque,
com o juízo com que julgardes os outros, sereis
julgados; e com a medida com que medirdes, vos medirão
também a vós.” (Mateus, VII: 1-2) in O Evangelho segundo
o Espiritismo – Cap. X – itens 11 a 13.
Se há algo que coloca todos os seres humanos em condição
de igualdade indiscutível é a sua subjetividade. Todos
nós temos a capacidade de perceber os fatos, as pessoas,
os momentos, as dificuldades e as oportunidades, de
maneira totalmente pessoal e, por conseguinte,
subjetiva.
A minha “verdade” é diferente da “verdade” alheia
exatamente pelos pontos de vista diferentes sobre um
mesmo assunto, gerando muita discussão e até mesmo
disputas acirradas pela sua posse.
Entendido que a subjetividade é um traço que nos
caracteriza – de nossa natureza –, torna-se, então, que
julgar é natural.
A percepção é o instrumento que utilizamos para realizar
esse julgamento. O que percebemos (subjetivamente)
passa, mesmo que por instantes, a ser a nossa “verdade”
até que se consiga perceber os fatos com outros olhos
(de ver), e refaçamos, então, o nosso entendimento.
Mas se a percepção é uma característica humana, e julgar
é sua consequência natural, por que será então que Jesus
a condenou dizendo para não julgarmos, ou seja, não
exercermos algo que é natural em todos nós?
A resposta a essa questão está no próprio item 13 do
capítulo X de O Evangelho segundo o Espiritismo, citado
na epígrafe, onde Kardec nos afirma textualmente: “Não
se deve, pois, tomar no sentido absoluto este princípio:
‘Não julgueis para não serdes julgados’, porque a letra
mata e o espírito vivifica” (negrito nosso). Aliás,
essas palavras de Kardec são constantemente citadas em
conversas, palestras e textos, sem nos apercebermos do
quanto ainda estamos aferrolhados à letra!
Infelizmente, até mesmo por causa da subjetividade que
nos caracteriza, tomamos ideias como “verdades
absolutas”, sem exercer a nossa capacidade analítica
(racional), buscando uma conclusão mais clara e efetiva.
É muito complicado aplicar-se alguma coisa que não está
clara em nossa mente e isso também se dá com o
Evangelho. É preciso conhecer-lhe as nuances para que
não nos deixemos levar por falsos aforismos ou
expressões vazias, cujo sentido acaba se perdendo num
amontoado de palavras repetidas mecanicamente e sem
efeito prático.
Tomando-se o alerta de Kardec de que não devemos
interpretar ao pé da letra (ou seja, devemos raciocinar
sobre o ensinamento, o que é igual à FÉ RACIOCINADA),
vamos entender que Jesus não proibiu o julgamento de
forma generalizada, impedindo-nos de PERCEBER
(identificar) cada situação como ela se apresenta ao
nosso olhar. Diz-nos Kardec, também em sua análise no
capítulo citado, que devemos nos preocupar não com o
julgamento em si, mas com as ações decorrentes de
suas conclusões.
Há dois pontos salientados pelo Codificador nos quais
devemos atentar: “A censura de conduta alheia pode
ter dois motivos: reprimir o mal, ou desacreditar a
pessoa cujos atos criticamos” (negrito nosso).
Sabemos que o segundo ponto está por si mesmo em
desalinho com os padrões cristãos do “amai-vos uns aos
outros” ou “faça aos outros o que gostaria que lhe
fizessem”, e que, portanto, neste caso específico, o
silêncio deve ser adotado como regra.
Porém, em relação ao primeiro ponto – reprimir o mal – o
Codificador é claro e transparente como água, que tal
atitude se torna um dever, pois não se deve compactuar
com o mal, de maneira alguma e onde quer que ele exista.
Jesus não quis impedir que ao se enxergar algo de errado
no comportamento alheio deixássemos de apontar o fato
para quem de direito, ou seja, para o alvo de nossa
percepção ou julgamento. Quanto a esse aspecto,
lembremos do ensinamento do Mestre nesse sentido: “Ora,
se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele
só; se te ouvir, terás ganho teu irmão” (Mateus,
18:15).
Todavia, não raras vezes, tendemos mais a optar pela
segunda forma apontada por Kardec que é “desacreditar
a pessoa cujos atos criticamos”, descambando para a
maledicência declarada, numa atitude nada ética e muito
menos cristã.
Compreendemos, até aqui, portanto, que não estamos
proibidos de julgar de forma generalizada, mas sim de
utilizar o nosso julgamento de forma inapropriada e em
contraposição com os Evangelhos. É o momento para
aplicarmos o “vigiai e orai”; neste caso, vigiar a nós
mesmos e não o outro, logicamente.
No entanto, há outra afirmativa de Jesus nesse
ensinamento que devemos também atentar. Ele nos indica
que “com a mesma medida com que medirdes, vos medirão
a vós” (grifo nosso).
A que medida estará o Mestre se referindo?
Refletindo um pouco mais sobre esse tema e com a devida
inspiração necessária, concluímos que essa medida que
utilizamos para medir os outros, e pela qual seremos
também medidos, é a nossa própria consciência.
Kardec nos diz no mesmo capítulo X, item 13: “A consciência
íntima, ao demais, nega respeito e submissão
voluntária àquele que, investido de um poder qualquer,
viola as leis e os princípios de cuja aplicação lhe cabe
o encargo”.
Para entendermos melhor esse comentário de Kardec, vamos
lembrar a passagem da mulher adúltera apresentada a
Jesus pelos Fariseus - apegados à letra! Ao perceber que
aqueles que clamavam justiça e que exigiam o cumprimento
do mandamento de Moisés, que exigia o apedrejamento
daquela mulher, traziam suas consciências (medidas
individuais) completamente conspurcadas pelos equívocos
praticados e que não lhes atribuíam nenhuma autoridade
moral para exigir qualquer reparação àquela mulher
exposta à execração pública.
Jesus usando de seu poder moral incontestável expôs-lhes
a própria condição de cada um, dizendo que “aquele que
estiver sem pecado (isto é, consciência limpa), que
atire a primeira pedra”. Para julgar os erros alheios é
preciso estar isento de sua prática e ter a consciência
tranquila para apontar a correção dos mesmos, visando ao
crescimento e não à crítica e condenação.
Jesus nos alerta que a misericórdia deve ser a escolha
de todos nós sempre, e que, quando agimos de forma
implacável, mesmo que de maneira justa, estamos
esquecendo-nos de nossos próprios “pecados”, isto é, de
nossos equívocos. Exigir justiça com ferocidade, dureza
de coração e violência expressa a nossa condição
espiritual pouco evoluída que ainda trazemos.
O Espírito José, escrevendo sobre a indulgência, afirma
categoricamente: “Sede, pois, severos para convosco,
indulgentes para com os outros” (grifo nosso), pois
sabe esse amigo iluminado que o “autodesculpismo” é
francamente utilizado, fazendo-nos permanecer cegos
quanto às nossas questões individuais, exercendo mais
misericórdia para nós mesmos do que para os outros; é a
constatação clara de que não seremos medidos por algo
fora de nós, mas sim dentro de nós mesmos, que é a nossa
consciência que pesa todos os nossos atos em comparação
com as Leis Divinas perfeitas que têm regido nossa
caminhada.
Essa é a recomendação que deve ficar em nossas mentes
para guiar-nos os passos diariamente: ver o mal, pois
ele existe, e reprimi-lo com indulgência e misericórdia
através de uma ação junto à pessoa, alvo de nossa
observação, expondo os equívocos praticados somente
quando as suas consequências impactarão outros,
constituindo-se isso num dever moral.
Em suma, é a prática do ensinamento maior deixado pelo
Cristo e Senhor, nosso Jesus!