Simone
Weil e o
Espiritismo
Simone Weil, filha de judeus não praticantes - seu pai
era médico - nasceu em Paris e viveu sua rica existência
no período que compreende as duas grandes guerras
(morreu com 34 anos em 24 de agosto de 1943).
A solidariedade e a compaixão com os sofredores do seu
tempo marcaram a curta vida dessa filósofa francesa,
aluna da Sorbonne, que, com o início da segunda guerra
mundial, passou a dormir no chão, em solidariedade aos
soldados franceses que no front não tinham uma
cama para se deitar. Horrorizava-se que a pusessem em
situação de privilégio, e fugia espantada de toda
solicitude que pudesse colocá-la acima do nível comum.
Deixou uma brilhante carreira acadêmica, para dedicar-se
ao ensino de filosofia para alunos do ensino médio,
tendo trabalhado, durante um ano, como operária em uma
fábrica da Renault, para sentir na própria pele a dor e
o sofrimento dos oprimidos de sua geração.
Judia apenas de nascimento, se converteu ao cristianismo
após uma experiência mística, em uma aldeia portuguesa
de pescadores, mas não assumiu a fé católica,
recusando-se ao batismo em solidariedade com aqueles
que, na história, foram condenados pela intolerância
católica.
É de impressionar a grandeza e profundidade de sua obra
- publicada em 16 volumes pela Editora Gallimar -
escrita durante os poucos e difíceis anos da guerra. Tão
notável quanto sua obra literária é o seu exemplo de
vida, seu desprendimento aos bens e prazeres terrenos e
sua luta contra a desigualdade e injustiça humanas.
Não sabemos se teve contato com obras espíritas, mas
podemos identificar em seus textos elementos contidos no
modo espírita de pensar. Apresentamos, a seguir, alguns
pensamentos de Simone, relacionando-os com temas que nos
são caros.
Deus
O problema de Deus é um problema cujos dados estão
faltando aqui embaixo e que o único método eficiente
para evitar resolvê-lo de maneira errada é não
perguntando. Estando neste mundo, cabe a nós adotar a
melhor atitude possível para com os problemas dele, e
essa atitude não depende da solução do problema de Deus.
Jesus
Se o Evangelho omitisse toda e qualquer menção à
ressurreição de Cristo, a fé me seria mais fácil. A
cruz, apenas, me basta. Para mim, a prova, a coisa
verdadeiramente milagrosa, é a beleza perfeita das
narrativas da Paixão, juntamente com algumas palavras
fulgurantes de Isaías: “Injuriado, maltratado, ele não
abria a boca”; e de São Paulo: “Possuindo a natureza
divina, renunciou a ela, esvaziou-se e aceitou a cruz”.
Deturpações do Cristianismo
A Igreja trouxe muitos frutos ruins para que não tenha
havido um erro já de início. A Europa foi
espiritualmente desenraizada, amputada daquela
antiguidade em que têm origem todos os elementos de
nossa civilização; e ela foi desenraizar os outros
continentes a partir do século XVI. Seria curioso que a
palavra de Cristo tivesse produzido esses efeitos se
tivesse sido bem entendida. Cristo disse: “Ensinai as
nações e batizai os que creem”, ou seja, os que creem
nele. Ele nunca disse: “Obrigai-os a renegar tudo o que
seus pais consideraram sagrado e a adotar como livro
sagrado a história de um pequeno povo que não conhecem”.
***
Israel e Roma deixaram sua marca no cristianismo. Israel
fazendo incluir nele o Antigo Testamento como texto
sagrado, Roma tornando o cristianismo a religião oficial
do Império, que era algo como isso com que Hitler sonha.
Essa dupla mácula quase original explica todas as
máculas que tornam a história da Igreja tão atroz no
decorrer dos séculos.
***
Tudo indica que a Igreja não cumpriu perfeitamente sua
missão de conservadora da doutrina. Nem de longe. Não só
porque ela acrescentou minúcias, restrições e
interdições talvez abusivas, mas também porque, quase
certamente, perdeu tesouros. Mas há uma quase certeza. É
a de que quiseram nos esconder alguma coisa; e
conseguiram. Não é por acaso que há tantos textos
destruídos, tantas trevas a respeito de uma parte tão
essencial da história. Provavelmente houve uma
destruição sistemática de documentos.
Religião
Unicamente as associações de ideias adequadas,
profundamente gravadas na nossa mente graças a intensas
emoções, permitem ao pensamento meditar Deus, inclusive
sem palavras interiores, através dos atos do trabalho. A
tarefa da Igreja seria a de suscitar tais emoções e
criar essas associações.
Experiências espirituais
No que vemos como milagres, os hindus veem efeitos
naturais de poderes naturais que se encontram em poucas
pessoas e, mais frequentemente, nos santos. Quanto à
autenticidade histórica dos fatos que denominamos
milagres, não há motivos suficientes para afirmá-la nem
para negá-la categoricamente. Os fatos considerados
miraculosos são compatíveis com a concepção científica
do mundo, uma vez que se admite como postulado que uma
ciência suficientemente avançada poderia explicá-los.
Esse postulado não suprime a ligação desses fatos com o
sobrenatural. Somos por demais ignorantes para poder
afirmar ou negar a respeito dessa questão.
***
Os que acreditam que o sobrenatural age de uma forma
arbitrária e que foge a todo estudo, bem que o
desconhecem assim como os que negam a sua realidade. Os
místicos autênticos, como São João da Cruz, descreveram
a operação da graça na alma com uma precisão de químico
ou geólogo. A influência do sobrenatural sobre a
sociedade humana pode ser também estudada.
***
Os erros de nossa época provêm de um cristianismo sem o
sobrenatural.
Lei Natural (Causa e efeito)
Se olharmos de perto, com um olhar realmente atento, as
almas e as sociedades humanas, veremos que por todo lado
onde a virtude da luz sobrenatural está ausente, tudo
obedece a leis mecânicas tão cegas e tão precisas quanto
as leis da queda dos corpos. O homem jamais pode sair da
obediência a Deus, uma criatura não pode deixar de
obedecer. A única escolha deixada ao ser humano como
criatura inteligente e livre é desejar a obediência ou
não a desejar. Se ele não a desejar, ele a obedecerá de
qualquer maneira, perpetuamente, enquanto coisa submissa
à necessidade mecânica.
***
Em sendo cego, o destino estabelece uma espécie de
justiça, também cega, que pune os homens armados com a
Pena de Talião; a Ilíada a formulou muito antes
do Evangelho, e quase nos mesmos termos: Ares é
equitativo, mata os que matam. Este castigo de um
rigor geométrico, que pune automaticamente ao abuso da
força, foi o objeto primeiro da meditação entre os
gregos. Foi talvez, essa noção grega, que subsistiu, sob
o nome de Kharma, em países do Oriente impregnados de
budismo; mas o Ocidente a perdeu e nem tem mais, em
nenhuma de suas línguas, uma palavra para significá-la;
as ideias de limite, de medida, de equilíbrio, que
deveriam determinar a conduta da vida, só têm um emprego
servil na técnica. Só diante da matéria somos geômetras;
os gregos foram primeiramente geômetras no aprendizado
da virtude.
Desapego
É melhor não comandar em todos os lugares em que temos
poder. Esse pensamento, caso ele ocupe toda a alma e
governe a imaginação, que é a fonte das ações, constitui
a verdadeira fé.
***
A frase de pascal “Tu não me procurarias se já não me
houvesses encontrado” não é verdadeira expressão das
relações entre o homem e Deus. Platão é muito mais
profundo quando diz: É preciso afastar-se com toda a
força daquilo que é transitório. O homem não tem que
buscar nem sequer acreditar em Deus. Só deve negar seu
amor a tudo que é distinto de Deus. A única opção que o
homem tem é a de dedicar ou não seu amor às coisas
terrenas. É preciso que ele se negue a dar seu amor às
coisas terrenas e permaneça imóvel, sem buscar nem se
agitar, em atitude de espera sem tratar sequer de saber
o que ele espera; é absolutamente certo que Deus
percorrerá todo o caminho até ele.
***
Todos nós sofremos uma certa deformação decorrente de
nossa vida na atmosfera da sociedade burguesa, e até
nossas aspirações em prol de uma sociedade melhor trazem
a sua marca. A sociedade burguesa está atacada de uma
mania única: a monomania da contabilidade. Para ela nada
tem valor se não pode ser registrado em francos e
centavos.
***
A virtude sobrenatural da justiça consiste, se formos o
superior na relação desigual de forças, em nos conduzir
exatamente como se houvesse igualdade. A pessoa que
trata como iguais aqueles a quem a proporção de forças
colocou muito abaixo dele, realmente lhes dá o dom da
qualidade de seres humanos, que o destino os privou.
Tanto quanto for possível a uma criatura, ela reproduz a
generosidade original do Criador.
Justiça
Se se sabe onde está o desequilíbrio da sociedade, é
necessário fazer tudo que se possa para agregar peso ao
prato mais leve. Ainda que esse peso seja um mal,
manejando-o com essa intenção pode ser que não manche.
Mas é necessário haver concebido o equilíbrio e estar
sempre disposto a trocar de lado como a justiça, essa
fugitiva do campo dos vencedores.
Compaixão
Há somente uma ocasião na qual realmente não tenho mais
certeza de nada. É no contato com o infortúnio de outra
pessoa [...] Esse contato me faz um mal tão atroz, me
despedaça tanto a alma de um lado a outro, que o amor de
Deus se torna quase impossível durante algum tempo.
Falta muito pouco para que eu diga impossível. A tal
ponto isso me inquieta e atormenta. Fico um pouco mais
tranquila quando lembro que o Cristo chorou ao prever os
horrores do saque de Jerusalém. Espero que Ele perdoe à
compaixão.
***
Eu jamais consigo ler a história da figueira estéril sem
estremecer. Acredito que ela seja o meu retrato. A
natureza nela também era impotente e, no entanto, ela
não foi desculpada. Cristo a amaldiçoou; [...] o
sentimento de ser uma figueira estéril para Cristo
despedaça o meu coração.
***
Os infelizes não precisam de outra coisa neste mundo do
que de seres humanos capazes de prestar atenção neles. A
capacidade de prestar atenção a um infeliz é algo raro,
muito difícil; é quase um milagre; é um milagre. Quase
todos os que acreditam ter esta capacidade não a
possuem. O calor, o impulso do coração e a piedade não
bastam. Este olhar é, antes de tudo, um olhar atento, no
qual a alma se esvazia de todo conteúdo próprio para
receber em si o ser que ela observa tal ele é, em toda
sua verdade.
Resignação
Se cairmos perseverando no amor até o ponto onde a alma
não pode segurar o grito “Meu Deus, por que me
abandonastes”, se permanecermos nesse ponto sem deixar
de amar, acabamos por tocar algo que não é mais o
infortúnio, que não é a alegria, que é a essência
central, essencial, pura, não sensível, comum à alegria
e ao sofrimento, e que é o próprio amor de Deus.
***
Quando um aprendiz se fere ou se queixa de cansaço, os
operários, os camponeses têm estas belas palavras: “É o
trabalho que está entrando no corpo”. Cada vez que
suportamos uma dor podemos dizer de maneira fidedigna
que o universo, a ordem do mundo, a beleza do mundo e a
obediência da criação a Deus entram em nosso corpo.
Ciência
Vivemos em uma época em que a maioria das pessoas sente,
confusa, porém intensamente, que aquilo que se chamava as
luzes no século XVIII, constitui – incluindo a
ciência – um alimento espiritual insuficiente.
***
Quando a inteligência, depois de fazer silêncio, para
deixar o amor invadir toda a alma, volta a se exercer,
ela sente que contém mais luz do que antes, mais aptidão
para compreender os objetos, as verdades que lhe são
próprias. Mais ainda, creio que esses silêncios
constituem para ela uma educação que não pode ter nenhum
outro equivalente e lhe permitem compreender verdades
que, de outro modo, lhe permaneceriam sempre ocultas. Há
verdades que estão a seu alcance, compreensível para
ela, mas que só pode compreender depois de terem passado
em silêncio através do inteligível.
***
Uma ciência que não nos aproxima de Deus não vale nada.
Porém, se nos aproxima mal, ou seja, de um Deus
imaginário, ainda é pior.
***
Penso que a vida intelectual, longe de dar direito a
privilégios, é, em si mesma, um privilégio quase
terrível que exige, em contrapartida, responsabilidades
terríveis.
Um sistema social está profundamente doente quando um
camponês trabalha a terra pensando que, se ele é
camponês, é porque não era inteligente o bastante para
tornar-se professor.
Desenvolvimento espiritual
Deus recompensa a alma que pensa nele com atenção e
amor, e Ele a recompensa exercendo sobre ela uma coação
rigorosamente, matematicamente proporcional a esta
atenção e este amor. É preciso abandonar-se a este
impulso, correr até o ponto preciso onde Ele o conduzir,
[...] ser objeto de uma sujeição que se apodera de uma
parte da alma que cresce perpetuamente. Quando a
sujeição se apodera de toda a alma, chegamos a um estado
de perfeição.
***
Preste muita atenção, pois se você passar ao largo de
uma grande coisa por culpa sua, isso seria uma pena.
***
Diz-se muitas vezes que a força não pode domar o
pensamento; mas para que isto seja verdade, é preciso
que haja pensamento. Onde as opiniões irracionais tomam
o lugar de ideias, a força pode tudo.
***
Só orientando meu pensamento para alguma coisa melhor do
que eu, é que esse algo me puxará para o alto.
Tolerância
Se eu não amar as pessoas como elas são, então não são
elas que eu amo.
***
O pecado é uma má orientação do olhar.
***
O caráter legal de um castigo não tem significado
verdadeiro se não lhe for conferido um aspecto
religioso, se ele não tiver algo análogo a um
sacramento; e, consequentemente, todas as funções
penais, desde o juiz, até o carrasco e o guarda da
prisão, deveriam participar de alguma maneira desse
sacerdócio.
***
Uma sessão em um tribunal deveria começar e acabar com
uma oração em comum dos magistrados, da polícia, do
acusado, do público. Cristo não deveria estar ausente
dos lugares onde trabalhamos, dos lugares onde
estudamos.
***
É preciso que as diferenças não diminuam a amizade e que
a amizade não diminua as diferenças.
Observação: os textos de Simone foram extraídos
dos livros Espera de Deus, Pensamentos desordenados
acerca do amor a Deus e A gravidade e a graça, de
Simone Weil, e também das obras Simone Weil – A força
e a fraqueza do amor de Maria Clara Bingemer e Simone
Weil – A condição operária e outros estudos sobre a
opressão de Ecléa Bosi.