Viver para Deus
Ainda nos dias de hoje temos ordens religiosas
inteiramente divorciadas do mundo, em completo
isolamento, com a justificativa de que seus membros
“vivem para Deus”, e assim trabalham para retirar de si
qualquer resquício de paixões e vícios. Ficam em
meditação, trabalhos manuais, orações, jejuns, cantos e
silêncio, isolados da convivência social. Segundo essas
ordens religiosas, as mais diversas, seus adeptos
candidatam-se ao reino dos céus pelo virtuosismo que
demonstram, mortificando o corpo, não se contaminando
com as impurezas humanas e, assim, alcançando pureza
espiritual. Perguntamos: será que esse é o caminho para
sublimação espiritual e conquista da felicidade após a
morte? Será que o isolamento da vida social é sinônimo
de autoconhecimento em plenitude?
O ser humano, por natureza, é um ser relacional, assim,
a vida social é-lhe natural, pois com os outros ele tem
a possibilidade de realizar aprendizados e de se
desenvolver, enquanto que, sozinho, isolado, ele não
encontrará oportunidades de desenvolver seu potencial
divino, seja no campo intelectual quanto no campo
afetivo. Mesmo na alegoria bíblica da criação da
humanidade, temos um casal, Adão e Eva, que geram filhos
que, por sua vez, vão se relacionar com outros viventes.
Desde a criação divina o homem convive com outros
homens, e isso os estudos antropológicos, remontando ao
início de nossa civilização, demonstram. Nas
aglomerações pela sobrevivência à formação da família,
depois da tribo, chegando às vilas e cidades, sempre
vemos o viver coletivo prevalecer sobre a vida isolada.
Tratando desse tema, Allan Kardec apresenta excelente
raciocínio lógico, que sempre o caracterizou, no item 8,
capítulo 3, de O Céu e o Inferno¹. Ao tratar da
encarnação como necessária para o Espírito realizar seu
progresso intelectual e moral, ele afirma:
“O progresso intelectual é realizado pela atividade que
é obrigado a desenvolver nos seus trabalhos. O progresso
moral, pela necessidade das relações mútuas entre os
homens. A vida social é a pedra de toque das boas e das
más qualidades”.
Sem a vida social, sem o relacionamento com outros
Espíritos encarnados, como haveremos de nos desenvolver?
Não é possível explorar a natureza, criar técnicas e
ampliar conhecimentos vivendo isoladamente, sem contato
com outro ser vivente. O trabalho ficará restrito ao
necessário para a sobrevivência e o progresso se
arrastará indefinidamente, o que não condiz com a
grandeza e perfeição de Deus. Do ponto de vista moral,
somente provaremos nossas virtudes e combateremos nossos
vícios na relação com os outros. As qualidades morais
que enobrecem o caráter não surgem sem esforços e sem as
provas necessárias que somente podem acontecer na vida
social, vivendo com os outros.
Como a vivência com os outros nem sempre é pacífica,
muitas pessoas almejam um dia sair da cidade para ir
morar no campo ou na praia, em local mais reservado,
longe dos outros, sonhando com uma vida mais sossegada.
Momentos de isolamento, de meditação, de reflexão
íntima, de relaxamento são importantes e necessários,
mas não devemos fazer desses momentos uma eternidade, um
modo de vida, pois nos privaríamos das provas
necessárias para nossa evolução, o que retardará nossa
chegada à finalidade para a qual fomos destinados: a
perfeição!
Ao final de suas
considerações, Allan Kardec nos remete a uma séria
reflexão: “Para
o homem que vive só não há vícios nem virtudes; se, pelo
isolamento, ele se preserva do mal, também anula as
possibilidades do bem”.
Essa é a razão pela qual o Espiritismo se coloca
totalmente contrário ao isolamento do homem, mesmo
quando utiliza como justificativa a necessidade de viver
inteiramente para Deus. Essa justificativa não se
sustenta diante da realidade da vida que, em todos os
sentidos, é dinâmica, interativa, da natureza selvagem à
sociedade humana. Tudo interage, tudo se completa. O
desenvolvimento intelectual e o desenvolvimento moral
acontecem na dinâmica da vida social, da interação com
os outros.
Quem foge da vida, isolando-se, está fugindo, em
verdade, de si mesmo e da felicidade que tanto almeja,
pois é ilusão achar-se feliz longe de tudo e de todos.
Não é possível que a finalidade da encarnação seja estar
no mundo sem estar com os outros, pois somos irmãos,
filhos de Deus, e irmãos devem se relacionar,
construindo laços afetivos e auxiliando-se
reciprocamente.
Que as religiões compreendam a necessidade de
transformar essas ordens religiosas isoladas em
mosteiros, conventos e templos os mais diversos.
Precisamos ser úteis ao próximo e à sociedade. O
verdadeiro viver para Deus está em colocar em prática o
amor ao próximo através da caridade, da solidariedade e
da fraternidade. O atento estudo do Espiritismo nos tira
dessa falsa ideia de vida isolada, levando-nos a
compreender que é nossa ação, na sociedade, o motor de
transformações que nos levarão para a moralização e
espiritualização de nós mesmos e dos outros.
Bibliografia:
(1) KARDEC, Allan. Céu e o Inferno, O.
Tradução de J. Herculano Pires. São Paulo: Lake, 2017.
Marcus De Mario é educador, escritor e palestrante.
Coordena o Grupo Espírita Seara de Luz, na cidade do Rio
de Janeiro. É fundador e diretor do Ibem Educa. Colabora
na programação espírita da Rádio Rio de Janeiro.
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