Teu olhar é ruim porque eu sou bom?
Eu adoro a pergunta que abre este texto. É uma das
minhas passagens preferidas do Novo Testamento. Está
contida na Parábola dos Trabalhadores da Vinha (Mateus,
20: 1 a 16). Allan Kardec, em “O Evangelho segundo o
Espiritismo”, analisa esta parábola no cap. 20,
intitulado “Os trabalhadores da última hora”. Vamos a
ela para entender o caminho que chega à frase sobre a
qual me debruço.
Diz Jesus que o reino dos céus (estado pleno de
consciência limpa e tranquila) se assemelha a um pai de
família que saiu de madrugada para contratar
trabalhadores com o intuito de atuarem na sua vinha.
Curioso notar que o contratante não é nenhum empresário,
fazendeiro ou similar. É um pai de família, o que
pressupõe zelo, justiça e equanimidade. Afinal, pai que
é pai nunca toma partido eternamente de um só filho. Por
ser pai de todos, sabe aplicar a justiça com bondade e
sabedoria.
Àquela época, não havia trabalho fixo, carteira assinada
e similares. Os trabalhadores eram contratados por dia
de trabalho. Para consegui-lo, iam para a praça desde as
primeiras horas da manhã, a fim de aguardar quem
aparecesse para contratá-los. É por isso que, no
Pai-Nosso, Jesus diz a frase “O pão nosso de cada dia
nos dai hoje”. Se alguém não conseguisse trabalho, não
teria pagamento e, por conseguinte, não levaria para
casa os proventos necessários àquele dia.
Imaginem a praça cheia de homens por volta das 6h. Todos
ávidos por garantir o pão do dia. O pai da parábola
chega e lhes oferece um denário (moeda que correspondia
ao salário diário) pelo dia. Eles aceitam sem pestanejar
e vão para a vinha, que aqui simboliza o mundo, campo de
atividades cujo aprimoramento compete a nós.
Só que o pai precisava de mais trabalhadores e volta à
praça às 9h. Lá encontra outros homens e os chama para a
vinha. Eles topam na hora, agradecidos. Às 12h e 15h
esse paizão retorna ao local e chama outros homens para
a lida. Eles, que já deveriam estar para lá de
agoniados, aceitam de bate-pronto. Por fim, esse genitor
para ninguém botar defeito (leia-se Deus), retorna à
praça às 17h, já quase no final do expediente. Havia
homens por lá, decerto desesperados porque o dia já ia
embora e eles ainda estavam sem labor (e sem perspectiva
de ganho). O pai os chama também, e eles vão, decerto
dando graças! Notem que só houve estipulação de
pagamento com a turma que foi contratada às 6h. Os
demais foram apenas chamados e aceitaram sem se
preocuparem em saber quanto ganhariam! Esse é o pulo do
gato para que entendamos a moral da história!
Ao final do dia (18h), findas as atividades na vinha, o
pai ordenou que os que chegaram por último (17h) e só
trabalharam uma hora fossem pagos em primeiro lugar. E
recebessem o mesmo denário que foi combinado com a turma
que pegou no pesado às 6h. Os recrutados nos demais
horários também receberiam a mesma quantia.
A turma que pegou no batente às 6h não gostou, sentiu-se
injustiçada. Afinal, eles haviam aguentado o peso e o
calor do dia. Eles resolveram, então, nomear um
representante para conversar com o dono da vinha. Este,
ao ouvir a reclamação, redarguiu:
“Meu amigo, não te causo mal algum. Não convencionaste
comigo receber um denário pelo teu dia? Toma o que te
pertence e vai-te. Apraz-me a mim dar a este último
tanto quanto a ti. Não me é lícito fazer o que quero?
Tens mau olho porque sou bom? Assim, os últimos serão os
primeiros e os primeiros serão os últimos, porque muitos
são os chamados e poucos os escolhidos”.
Não está em jogo, neste ensinamento, a quantidade do
trabalho, mas a qualidade. Não importa a hora em que a
pessoa foi recrutada ou se chegou de livre e espontânea
vontade para trabalhar. O que importa é a qualidade do
que ela irá produzir.
Mas voltemos à frase que me mobilizou para escrever
estas linhas – “Tens mau olho porque sou bom?” Ou,
conforme, minha adaptação coloquial, “Teu olhar é ruim
porque sou bom?”.
Ao proferir esta frase, Jesus está querendo chamar
atenção dos que são movidos pelo despeito, sentimento
que é produzido quando nos sentimos desconsiderados;
desgosto quando algo é dado a outro e não a nós. E como
somos despeitados, não é? Sei de várias histórias a
respeito. Entre elas, a de Luísa, uma moça que armou uma
baita confusão dentro de casa porque a irmã caçula,
Lídia, havia ganhado um vestido de presente de uma amiga
da mãe. A confusão foi tanta que a mãe aconselhou à
caçula: – Lídia, dê esse vestido para a Luísa e depois
eu compro outro para você! Há também o caso de Firmino,
que sempre queria o presente que Milton, o irmão mais
velho, havia ganhado. Detalhe: Firmino também ganhava
algo do gênero. Exemplo: uma camisa, um brinquedo...
Mas, na visão de Firmino, o de Milton era sempre o mais
bonito. Puro despeito!
Despeito é achar que, quando o outro é considerado, nós
estamos sendo desconsiderados. Por quê? O outro está
sendo promovido ou agraciado pelos méritos que ele
possui, e não pelos deméritos que possuímos. Mas o
despeitado está sempre ocupado com o que o outro recebe
por mérito próprio.
É comum vermos isso em ambiente de trabalho. O
funcionário com 20 anos de empresa (será que ainda
existe isso nos dias de hoje?) sempre exerceu sua função
corretamente, mas nunca ousou. Chega outro para
trabalhar na empresa, demonstra ousadia e, em três anos
de casa, é promovido. O mais antigo sente-se preterido.
Não deveria. Talvez ele seja mais útil na função que
exerce. Como líder ou inovador, talvez não desse certo.
O recém-chegado possui pendores para tal. Quem sabe até,
será o novo chefe que fará brotar no colega acomodado
talentos que ele não sabia que possuía? Enquanto isso,
ele é produtivo e considerado na função que desempenha.
Na Parábola dos Trabalhadores da Vinha, ninguém saiu
prejudicado. No entanto, a turma que chegou primeiro
ficou incomodada pelo fato de os últimos terem recebido
o mesmo. Jesus mostra que não devemos cuidar do que o
próximo está recebendo por mérito próprio, mas, sim,
executar bem o nosso trabalho. Difícil apreender essa
lição, eu sei. Mas necessário!
A frase que me mobiliza, no entanto, leva-me mais além.
O Cristo também está se referindo a grandes benfeitores
de coletividade que, muitas vezes, são perseguidos por –
pasmem! – serem bons! Vide Chico Mendes (1944-1988),
seringueiro e ambientalista acreano premiado
internacionalmente e que foi assassinado por um grileiro
de terras, porque lutava pelo meio ambiente e por
melhores condições de trabalho para os de sua classe. É
também o caso de Irmã Dorothy Stang (1931-2005),
missionária americana naturalizada brasileira que, por
lutar pela causa ambiental e pelos pequenos agricultores
do interior do Pará, foi igualmente assassinada por
grileiros. É o caso de perguntar: – Prezado grileiro,
teu olhar é ruim porque eu sou bom?
Essa frase se encaixa em vários episódios que envolvem
perseguição e/ou morte de gente que só queria fazer o
bem. De Sócrates e Martin Luther King, de Joana
d'Arc a
Gandhi, passando pelo próprio Cristo, há sempre
despeitados à espreita, sentindo-se ameaçados em suas
intenções escusas e também ressentidos por serem
ofuscados pelos que possuem luz própria. Vide as
críticas enviesadas das quais o médium Chico Xavier era
vítima e também os muitos achaques que o papa Francisco
volta e meia recebe.
Olho para o momento atual e vejo líderes mundiais
impondo sanções econômicas a órgãos humanitários. Vejo,
também, outros tantos governantes batendo de frente com
subordinados providos de um mínimo de bom senso por mero
despeito. E enxergo, com muita tristeza, classes sociais
vociferando contra governos que querem dar melhores
condições de vida para os menos favorecidos. Em todas
essas ocasiões, a pergunta contida na Parábola dos
Trabalhadores da Vinha me vem à mente. – Teu olhar é
ruim porque sou bom?
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