Um singelo conto simples
Há alguns anos, fui diagnosticada com câncer, operada, e
submetida a forte quimioterapia. Hoje, estou curada.
Fiquei um mês num Hospital em São Paulo e, minha casa em
Vinhedo, onde moro sozinha, ficou fechada.
Eu sonhava voltar para minha casa, dormir na minha cama,
meus livros, meu som, o computador, meu jardim de flores
lindas e cair na piscina com a água morninha.
Porém, ao chegar em casa, vinda de São Paulo, abri a
porta da frente e tive o maior choque: água escorreu
para fora e das luminárias esguichava água abundante,
copiosa como se um chuveiro aberto no máximo; armários,
sofás, livros, computador, televisão, roupas, sapatos,
colchões, o piso de madeira... tudo havia apodrecido com
a água que vazava pelas luminárias da casa sem parar. O
cheiro a mofo, meus livros, oh meus queridos livros
encharcados, com as folhas onduladas e se
desprendendo... havia em toda a casa uma altura de cerca
de 20 cm de água. O cheiro era nauseabundo! A bomba da
pressão da caixa de água estourara e a água da rua
ficara correndo contínua e constante durante todo aquele
tempo em que eu estivera no Hospital.
Ali estava eu, siderada, incapaz nem sequer de chorar.
Fui para um hotel e ali fiquei por cerca de três meses e
meio até praticamente reconstruir e reequipar a casa
toda.
Entretanto, os operários trabalhavam, mas a meu ver eram
lentos e poderiam agilizar o trabalho. Então, para os
pressionar, marquei uma data e falei que, estivesse a
casa pronta ou não, eu viria morar nela enquanto eles
continuavam o trabalho. Chegando à data marcada, ainda
faltavam janelas, portas e só meu quarto podia ser
utilizado, já com portas e janelas.
Escureceu e, ali sozinha, sentindo uma tristeza enorme,
uma fadiga grande porque a quimioterapia me enfraquecia
bastante, sentei num sofá velho, numa sala escura, sem
portas e sem janelas. Chorei, chorei muito e conversei
com Deus e disse:
– Senhor, estou com medo, me ajuda, não aguento mais.
Como vou dormir nesta casa toda devassada, sozinha?
Imploro, Senhor, que me ajudes. Tu, meu Senhor, sempre
me estendeste a tua mão. Não me abandones agora, por
favor. Preciso de Ti, meu Pai.
Nisso, senti um pouco de paz e reclinei a cabeça para
trás e fechei os olhos. Eu cedia ao cansaço, mas fazia
um esforço para me manter alerta. O sono se aproximava a
passos leves e lentos. Os sons ficavam longínquos, mais
e mais...
De repente, senti que algo estava próximo de mim. Abri
os olhos e deparei com um enorme pastor alemão sentado a
poucos passos de mim e me olhando atento. Ainda hoje me
arrepio ao rever aquela cena. Adoro animais e, em geral,
existe entre mim e qualquer animal uma empatia mútua. Em
voz suave e baixa falei:
– Você veio para me proteger?
E, num ato de submissão, ele deixou as patas da frente
deslizarem e se deitou praticamente aos meus pés.
Levantei, fui à cozinha onde estava um lanche que havia
trazido e dividi com ele. Coloquei água e ele bebeu
sofregamente. Com a luz acesa vi que ele tinha um olho
azul e um olho marrom. Com cuidado, aproximei a mão da
cabeça dele e ele lambeu minha mão. Eu o afaguei, cocei
as orelhas dele, e perguntei:
– Sem Nome, você veio para ficar comigo?
Fui para o meu quarto, único cômodo com janelas e porta
e uma cama nova e ele me acompanhou. Ao fechar a porta,
vi o Sem Nome deitar-se do lado de fora, no corredor, e
ali velou e dormiu a noite toda. Eu dormi profundamente,
porque Sem Nome estava vigiando.
Bem, Sem Nome era um cachorro de rua. Pulava a cerca
alta como um cavalo numa competição hípica. Mas, tirou
uns dias para ficar do meu lado. Se um operário chegasse
perto de mim, ele rosnava e eles tinham medo dele. Sem
Nome infundia respeito. E toda a noite dormia encostado
na porta do meu quarto. Eu estava tranquila e feliz e já
pensava ficar com ele, mas ele preso não ficava de forma
alguma.
Passados uns dias, os operários finalmente colocaram as
portas e janelas em toda a casa.
De repente, procuro o Sem Nome e cadê? Sem Nome sumira!
Justamente no dia em que as portas e janelas foram
colocadas! Como se eu já não precisasse mais dele. Ai,
meu coração ficou apertado e triste, mas havia tanto
para ser feito, que os dias foram passando e só, de
quando em quando, eu pensava nele.
Uma madrugada, acordei com um barulho de algo arranhando
o store metálico do meu quarto. Pensei receosa: –
O que foi isso? E aí ouvi um latido e pulei da cama como
uma criança na manhã de Natal para ver seus presentes.
Corri para a cozinha e abri a porta e Sem Nome pulou com
as patas nos meus ombros e lambeu meu rosto. E eu o
abracei e falei com ele como se falasse com outro ser
humano. Chorei abraçada a ele. Preparei uma comida, um
pote com água e ele comeu e bebeu e veio dormir na porta
do meu quarto de novo.
Mas, ele ia e vinha. Desaparecia durante dias e depois
voltava. As janelas de minha casa são muito baixas e
quando abria as vidraças, de repente, do nada, Sem Nome
pulava para dentro da sala e eu ria feliz.
Um dia, sumiu para sempre. Procurei-o por Vinhedo
inteiro e soube que ele havia sido atropelado e que uma
senhora o pegou sangrando na calçada e cuidou dele.
Falei com ela e ela me contou que Sem Nome estava bem,
não ficara com nenhuma sequela e ela o havia levado para
um sítio próximo, onde ele estava feliz, vivia solto,
correndo com outros cachorros.
Não sei se ainda está vivo ou não, mas nunca vou
esquecer o Sem Nome de um olho azul e outro marrom!
Alguns dirão:
– Foi só uma coincidência.
Outros, e me incluo nesse grupo, dirão:
– Não há coincidências, há deusdências!
|