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por Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

O compromisso da criação de trabalho decente 


Os dias atuais têm sido pródigos na vivência de experiências bizarras. No entanto, não se pode atribuir todas as deficiências e incoerências humanas exclusivamente à pandemia, apesar desta ter ensejado, pelo menos até aqui, mudanças profundas em nosso modo de vida. Com efeito, nesta altura dos acontecimentos, já é sobejamente conhecido o impacto negativo causado pela Covid-19 na importante variável de nossas existências.

Explicando melhor, além da colheita de inúmeros indicadores econômico-sociais indesejáveis, cresce exponencialmente o número de desempregados no planeta, assim como a precarização da atividade laboral. Mais ainda, as previsões nessa esfera são – pelo menos por ora – muito pessimistas para quem depende do trabalho para sobreviver.

Nesse sentido, cumpre destacar que a tecnologia também não está favorecendo o aumento de oportunidades benfazejas de trabalho digno e decente no mundo. Pelo contrário. O que se vê com absoluta clareza, é o abandono da consecução de compromissos e metas sociais e humanistas que contemplem, de fato, as criaturas humanas no sentido amplo. Em razão dessa visão distorcida temos, por conseguinte, crescente desilusão e miséria coletiva.

Lamentavelmente, nem mesmo o documento Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) – subscrita, frise-se, por vários líderes mundiais -, que delineia 17 objetivos globais de desenvolvimento sustentável e 169 metas correspondentes, tem conseguido arrefecer esse quadro penoso, agora substancialmente agravado pela pandemia. A propósito, cabe recordar que no seu 8º objetivo, o documento preconiza a criação de “emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos”, ou seja, algo que estamos muito longe de alcançar. 

Por outro lado, nas crises temos a excepcional condição de melhor divisar os nossos interlocutores, ou seja, pessoas e instituições com as quais lidamos direta e indiretamente. Para melhor ilustrar o meu pensamento, comentarei abaixo um episódio emblemático, que envolve o sagrado campo do trabalho (uma das leis universais, vale lembrar, segundo os maiorais da espiritualidade), particularmente nestes tempos de anormalidades.

Necessitando adquirir um telefone celular novo, já que o meu estava com a sua memória completamente esgotada, entrei num site de conhecido grupo varejista do país. Olhei as marcas, capacidades e características dos modelos ofertados, e acabei por escolher certo equipamento. Como resido muito próximo a uma das lojas da empresa, fui lá incontinenti, pois desejava ver o produto e comprá-lo por esse canal tradicional. Ao deparar com o modelo desejado notei que o aparelho era cerca de R$200,00 mais caro do que a oferta disponibilizada no website da organização. Assim sendo, questionei o vendedor sobre a razão de tão expressiva diferença nos canais de vendas da mesma empresa.

A jovem vendedora disse que poderia “chegar ao mesmo preço”. Achei o argumento bastante curioso, mas, enfim, aguardei-a entrar no sistema da rede de lojas. Passados alguns minutos, e feitas algumas simulações, ela, enfim, me confessou que não conseguiria igualar a oferta do website. Extremamente surpreso, ponderei-lhe como tal coisa poderia acontecer, isto é, sofrer a concorrência da própria empresa. Meio sem jeito, a moça não me apresentou contra-argumentos.

Inconformado, tentei a loja de outra cadeia de varejo igualmente pertencente ao poderoso grupo empresarial, e, para a minha surpresa, a mesma coisa aconteceu. Decepcionado, informei ao vendedor que não seria possível menosprezar as diferenças de preço, e, desse modo, iria adquirir o produto pelo site. Ao sair decepcionado da loja, ainda olhei para trás e contemplei alguns vendedores – todos jovens – praticamente perfilados à espera dos clientes... Contudo, na minha tela mental, ecoava uma série de questões palpitantes. Entre elas, conjecturava como esses jovens poderiam viver decentemente (eles basicamente vivem das comissões das vendas), já que, além da depressão econômica, eles enfrentavam, paradoxalmente, a competição implacável do website do próprio empregador. Imaginava as dificuldades que teriam para formar uma família e ter uma existência normal, com independência financeira. Analisava a política empresarial de vendas implementada por aquela organização, que impunha condições tão leoninas aos seus funcionários da linha de frente. Indagava-me, por último, como ter paz na vida vivendo sob tão duras condições de trabalho.

Ao avançar em minhas cogitações lembrei-me, no entanto, de Jesus e a sua sábia recomendação de não fazermos aos outros o que não desejamos igualmente para nós. Ponderei em minhas elucubrações mentais como poucos meditam sobre esse imperativo moral. Imbuído desse pensamento, considerei intimamente quantos empresários e executivos estão sendo testados pela magnanimidade divina na tarefa de construir o progresso humano, de diminuir as desigualdades sociais etc.

Recordei-me do Espírito Apóstolo Paulo, que no capítulo XV d’O Evangelho segundo o Espiritismo declara: “10. Meus filhos, na máxima: Fora da caridade não há salvação estão encerrados os destinos dos homens, na Terra e no céu; na Terra, porque à sombra desse estandarte eles viverão em paz; no céu, porque os que a houverem praticado acharão graças diante do Senhor. [...] Submetei todas as vossas ações ao governo da caridade e a consciência vos responderá [...]”.

É pertinente ressaltar que as decisões empresariais, puramente baseadas na ótica material, não deixam espaço à caridade para com os recursos humanos, cada vez mais indefesos, consoante o que descrevi acima. Dito isto, é preciso ter em mente que as crises – como a que ora vivemos - também proporcionam ensejos à elevação espiritual das criaturas humanas. Nelas, temos a ampla liberdade para exercitar a solidariedade e caridade para com os mais necessitados e indefesos. Vale esclarecer que não se trata exclusivamente de sair distribuindo dinheiro ou esmolas para todo mundo...

 Às vezes, ações pouco complexas, como equiparação de preços nos canais de vendas, emprego de recursos humanos em vez de quiosques eletrônicos, entre outras iniciativas benfazejas, podem garantir condições existenciais minimamente dignas aos que avidamente necessitam de labor. Também não se trata de execrar o avanço tecnológico, pois este não tem alma ou emoções, mas de ter um olhar mais compassivo e empático com o elemento humano, isto é, nós próprios.

A transição planetária terrena, que certamente elevará nosso orbe no ranking dos mundos habitados, não pode abdicar de permanentes iniciativas humanitárias. Posto isto, se somos “o sal da terra”, é preciso, portanto, que empreguemos todos os nossos atributos, capacidades e potencialidades na direção acima destacada, a fim de que a nossa casa maior espelhe paz, harmonia e felicidade em benefício de todos.   
  

 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita