O
compromisso da criação
de trabalho decente
Os dias atuais têm sido
pródigos na vivência de
experiências bizarras.
No entanto, não se pode
atribuir todas as
deficiências e
incoerências humanas
exclusivamente à
pandemia, apesar desta
ter ensejado, pelo menos
até aqui, mudanças
profundas em nosso modo
de vida. Com efeito,
nesta altura dos
acontecimentos, já é
sobejamente conhecido o
impacto negativo causado
pela Covid-19 na
importante variável de
nossas existências.
Explicando melhor, além
da colheita de inúmeros
indicadores
econômico-sociais
indesejáveis, cresce
exponencialmente o
número de desempregados
no planeta, assim como a
precarização da
atividade laboral. Mais
ainda, as previsões
nessa esfera são – pelo
menos por ora – muito
pessimistas para quem
depende do trabalho para
sobreviver.
Nesse sentido, cumpre
destacar que a
tecnologia também não
está favorecendo o
aumento de oportunidades
benfazejas de trabalho
digno e decente no
mundo. Pelo contrário. O
que se vê com absoluta
clareza, é o abandono da
consecução de
compromissos e metas
sociais e humanistas que
contemplem, de fato, as
criaturas humanas no
sentido amplo. Em razão
dessa visão distorcida
temos, por conseguinte,
crescente desilusão e
miséria coletiva.
Lamentavelmente, nem
mesmo o documento Agenda
2030 da Organização das
Nações Unidas (ONU) –
subscrita, frise-se, por
vários líderes mundiais
-, que delineia 17
objetivos globais de
desenvolvimento
sustentável e 169 metas
correspondentes, tem
conseguido arrefecer
esse quadro penoso,
agora substancialmente
agravado pela pandemia.
A propósito, cabe
recordar que no seu 8º
objetivo, o documento
preconiza a criação de
“emprego pleno e
produtivo e trabalho
decente para todos”, ou
seja, algo que estamos
muito longe de
alcançar.
Por outro lado, nas
crises temos a
excepcional condição de
melhor divisar os nossos
interlocutores, ou seja,
pessoas e instituições
com as quais lidamos
direta e indiretamente.
Para melhor ilustrar o
meu pensamento,
comentarei abaixo um
episódio emblemático,
que envolve o sagrado
campo do trabalho (uma
das leis universais,
vale lembrar, segundo os
maiorais da
espiritualidade),
particularmente nestes
tempos de anormalidades.
Necessitando adquirir um
telefone celular novo,
já que o meu estava com
a sua memória
completamente esgotada,
entrei num site de
conhecido grupo
varejista do país. Olhei
as marcas, capacidades e
características dos
modelos ofertados, e
acabei por escolher
certo equipamento. Como
resido muito próximo a
uma das lojas da
empresa, fui lá
incontinenti, pois
desejava ver o produto e
comprá-lo por esse canal
tradicional. Ao deparar
com o modelo desejado
notei que o aparelho era
cerca de R$200,00 mais
caro do que a oferta
disponibilizada no
website da organização.
Assim sendo, questionei
o vendedor sobre a razão
de tão expressiva
diferença nos canais de
vendas da mesma empresa.
A jovem vendedora disse
que poderia “chegar ao
mesmo preço”. Achei o
argumento bastante
curioso, mas, enfim,
aguardei-a entrar no
sistema da rede de
lojas. Passados alguns
minutos, e feitas
algumas simulações, ela,
enfim, me confessou que
não conseguiria igualar
a oferta do website.
Extremamente surpreso,
ponderei-lhe como tal
coisa poderia acontecer,
isto é, sofrer a
concorrência da própria
empresa. Meio sem jeito,
a moça não me apresentou
contra-argumentos.
Inconformado, tentei a
loja de outra cadeia de
varejo igualmente
pertencente ao poderoso
grupo empresarial, e,
para a minha surpresa, a
mesma coisa aconteceu.
Decepcionado, informei
ao vendedor que não
seria possível
menosprezar as
diferenças de preço, e,
desse modo, iria
adquirir o produto pelo
site. Ao sair
decepcionado da loja,
ainda olhei para trás e
contemplei alguns
vendedores – todos
jovens – praticamente
perfilados à espera dos
clientes... Contudo, na
minha tela mental,
ecoava uma série de
questões palpitantes.
Entre elas, conjecturava
como esses jovens
poderiam viver
decentemente (eles
basicamente vivem das
comissões das vendas),
já que, além da
depressão econômica,
eles enfrentavam,
paradoxalmente, a
competição implacável do
website do próprio
empregador. Imaginava as
dificuldades que teriam
para formar uma família
e ter uma existência
normal, com
independência
financeira. Analisava a
política empresarial de
vendas implementada por
aquela organização, que
impunha condições tão
leoninas aos seus
funcionários da linha de
frente. Indagava-me, por
último, como ter paz na
vida vivendo sob tão
duras condições de
trabalho.
Ao avançar em minhas
cogitações lembrei-me,
no entanto, de Jesus e a
sua sábia recomendação
de não fazermos aos
outros o que não
desejamos igualmente
para nós. Ponderei em
minhas elucubrações
mentais como poucos
meditam sobre esse
imperativo moral.
Imbuído desse
pensamento, considerei
intimamente quantos
empresários e executivos
estão sendo testados
pela magnanimidade
divina na tarefa de
construir o progresso
humano, de diminuir as
desigualdades sociais
etc.
Recordei-me do Espírito
Apóstolo Paulo, que no
capítulo XV d’O Evangelho
segundo o Espiritismo declara:
“10. Meus filhos, na
máxima: Fora da
caridade não há salvação estão
encerrados os destinos
dos homens, na Terra e
no céu; na Terra, porque
à sombra desse
estandarte eles viverão
em paz; no céu, porque
os que a houverem
praticado acharão graças
diante do Senhor. [...]
Submetei todas as vossas
ações ao governo
da caridade e a
consciência vos
responderá [...]”.
É pertinente ressaltar
que as decisões
empresariais, puramente
baseadas na ótica
material, não deixam
espaço à caridade para
com os recursos humanos,
cada vez mais indefesos,
consoante o que descrevi
acima. Dito isto,
é preciso ter em mente
que as crises – como a
que ora vivemos - também
proporcionam ensejos à
elevação espiritual das
criaturas humanas.
Nelas, temos a ampla
liberdade para exercitar
a solidariedade e
caridade para com os
mais necessitados e
indefesos. Vale
esclarecer que não se
trata exclusivamente de
sair distribuindo
dinheiro ou esmolas para
todo mundo...
Às vezes, ações pouco
complexas, como
equiparação de preços
nos canais de vendas,
emprego de recursos
humanos em vez de
quiosques eletrônicos,
entre outras iniciativas
benfazejas, podem
garantir condições
existenciais minimamente
dignas aos que
avidamente necessitam de
labor. Também não se
trata de execrar o
avanço tecnológico, pois
este não tem alma ou
emoções, mas de ter um
olhar mais compassivo e
empático com o elemento
humano, isto é, nós
próprios.
A transição planetária
terrena, que certamente
elevará nosso orbe no
ranking dos mundos
habitados, não pode
abdicar de permanentes
iniciativas
humanitárias. Posto
isto, se somos “o sal da
terra”, é preciso,
portanto, que
empreguemos todos os
nossos atributos,
capacidades e
potencialidades na
direção acima destacada,
a fim de que a nossa
casa maior espelhe paz,
harmonia e felicidade em
benefício de todos.