Civilização e Cidadania
A vida moderna, no campo e na cidade, já não é
compatível com determinados ritmos de movimentos,
atividades e decisões. Parece que o tempo é mais curto e
que, portanto, não chega para os afazeres que cada
pessoa tem de realizar.
A agitação é evidente, quer nos que trabalham, nos que
estudam e até nos que já se encontram na situação de
reforma, isto é, fora da atividade profissional que
exerceram ao longo de uma vida, pelo menos para a
maioria das pessoas. Ouve-se dizer a todos eles que o
tempo não lhes chega, quando se lhes solicita alguma
intervenção numa outra atividade, num qualquer trabalho,
serviço ou mesmo um favor. O mundo mudou em poucas
décadas.
Neste contexto também é comum ouvir-se, designadamente
em certas camadas da população, quando se lhes pede para
refletir sobre um determinado assunto, respostas do
gênero: “não tenho tempo”, “não sei pensar sobre
isso”, “isso é muito complicado”, mesmo e
estranhamente em pessoas adultas.
A verdade, porém, poderá ser bem diferente, porque, de
fato, pensar implica um esforço, uma análise, uma
crítica, e a sua fundamentação, enfim, uma tomada de
posição que, por vezes, poderá ser incômoda e até
prejudicial para interesses menos claros e,
eventualmente, menos éticos e/ou na melhor das
hipóteses, menos conveniente e oportuno.
Ao contrário dos antepassados, as máquinas de hoje
resolvem aqueles problemas que na antiguidade eram
solucionados pelos homens, que publicamente se assumiam,
sujeitando-se às respectivas consequências. Talvez a
hipocrisia, o cinismo e o egoísmo não fossem tão
acentuados como hoje, todavia, verifica-se, com
significativa rapidez, que urge pensar, refletir sobre
um conjunto cada vez mais vasto e complexo de situações
que afetam a humanidade. Incutir a todos os cidadãos em
geral, e à juventude em particular, o gosto pela
reflexão, cultivar o pensamento e análise crítica, será
um processo que, em poucas gerações, poderá dar os seus
frutos, certamente positivos.
Vive-se muito com um cérebro que não pensa, isto é, a
pessoa dotada de poderosos instrumentos, como são o
pensamento, a reflexão, a análise, mas que de fato, por
várias circunstâncias – proliferação da tecnologia,
preguiça, currículos escolares e agentes educativos que
não obrigam, facilitismo por parte de muitos
encarregados de educação e tantos outros educadores,
desmotivação –, não os querem utilizar, logo, a
intervenção pessoal, direta, genuína e emocional é
substituída pela artificialidade da técnica. O défice de
cidadania e o verdadeiro cidadão vão-se diluindo em
tecnologia e robotização.
A prosseguir-se neste caminho, em que até a escola, o
professor, o relacionamento interpessoal, a emoção, o
sentimento e a reação presencial são substituídos por
toda uma tecnologia a distância, também a preparação do
cidadão poderá sofrer grandes transformações, porque
educar para a cidadania através dum processo presencial,
recorrendo ao pensamento crítico, ao debate e à
conclusão fundamentada, face aos argumentos em
confronto, não será tarefa fácil para um computador.
Na verdade e em boa
lógica: «A cidadania requer aprendizagem e exige
participação, a qual, por sua vez, é fator inerente à
criação de comunidades humanas. Num contexto social
estimulante, que vai muito para além das fronteiras das
escolas, a coragem de nos expormos à multiplicidade de
influências resultante da articulação e da interação
entre instituições formativas diversas é, seguramente, a
principal condição para que todos nós, durante toda a
vida, possamos aprender e desenvolver atitudes e
competências de cidadania. » (FONSECA, 2001:38).
Continua-se a escrever muito em todo o mundo democrático
sobre cidadania, direitos humanos, democracia e todo um
conjunto de valores próprios da civilização que se
pretende para este novo século, todavia, toda esta
produção literária não tem vindo a ser total e
objetivamente acompanhada pelas correspondentes atitudes
práticas no terreno.
As elites que normalmente controlam partes
significativas de determinados setores – política,
economia, finanças, técnico-científicas e religiosas,
entre outras – não abrem mão dos poderes que detêm e,
pelo contrário, reforçam as suas posições, pelo menos
até ao dia em que as maiorias, cada vez mais pobres e
excluídas, decidam democrática e legalmente, pela
votação, manifestarem o seu descontentamento. Tem sido
assim ao longo da história democrática e Portugal é a
prova disso mesmo, quando não soube ou não quis dialogar
com o povo colonizado.
Assiste-se, nesta segunda década do século XXI, a uma
grande indiferença por parte de algumas camadas da
população, designadamente, no contexto da formação
profissional, que uma parte significativa de formandos,
entre os 18/20 e 51/55 anos, quanto aos módulos de
Cidadania e Empregabilidade e Cidadania e
Profissionalidade, alegando alguns que tais matérias não
têm interesse para as suas atividades profissionais,
revelando, afinal, com estes comportamentos que, de
fato, existe um longo caminho a percorrer, porque, de
contrário, tais comentários já não se fariam. Significa,
também uma certa obsessão pelas matérias tecnológicas
que, sendo essenciais para resolver problemas práticos
do dia a dia e que, sem as quais, hoje seria impossível
viver, ainda assim não constituem toda a vida do ser
humano.
A formação integral da pessoa humana deve ser uma
preocupação permanente para toda a sociedade em geral e
para a pessoa em particular. Sujeitar os valores da
pessoa à técnica poderá ser um grave risco cujas
consequências serão sempre imprevisíveis.
Contra certos valores materiais se opõem outros, que vêm
acompanhando a pessoa e, pelos quais, «Cresce, porém,
ao mesmo tempo a consciência da dignidade exímia da
pessoa humana, superior a todas as coisas. Seus direitos
e deveres são universais e inalienáveis. É preciso,
portanto, que se tornem acessíveis ao homem todas
aquelas coisas que lhe são necessárias para levar uma
vida verdadeiramente humana, tais são: alimentos, roupa,
habitação, direito de escolher livremente o estado de
vida e de construir família, direito à educação, ao
trabalho, à boa fama, ao respeito, à proteção da vida
particular, à justa liberdade, também em matéria
religiosa. » (GALACHE-GINER-ARANZADI, 1969:36).
A civilização da sociedade moderna assenta (ou deverá
assentar) em valores ancestrais que em nenhuma
circunstância e por quaisquer motivos pode ignorar. A
cidadania, com os seus diferentes valores de coragem,
tolerância, solidariedade, liberdade, democracia,
altruísmo, entre outros, certamente será uma referência
e, por si só, um expoente axiológico máximo que todos,
sem exceção, deveriam interiorizar e praticar em cada
instante da vida, com seriedade e, por que não, com
profissionalismo.
Qualquer que seja a civilização, na circunstância a
ocidental, os seus valores existem, devem ser
conhecidos, reconhecidos e exercidos, o que implica uma
aprendizagem desde bem cedo na vida. A família, a escola
e a Igreja, a comunidade, a empresa, seguramente, serão
os primeiros intervenientes neste longo processo.
Ainda que científica e/ou culturalmente se possa
contestar que a cidadania é um valor da civilização, a
verdade é que, por exemplo, a civilização ocidental, tal
como outras, comporta valores e práticas inerentes à
cidadania e, talvez por ser um tema, alegadamente, mais
elitista, se verifiquem algumas dificuldades na difusão
dos respectivos valores e depois na sua prática. A
verdade, todavia, é que qualquer pessoa tem condições
para assimilar e desenvolver comportamentos cívicos, com
toda a sinceridade e eficácia, desde que se predisponha
a tal atitude.
Em bom rigor, «Um novo e forte espírito de cidadania
precisa ser desenvolvido nas escolas, nas empresas, em
maior número de comunidades, nos condomínios, nos clubes
de serviço, nas associações de bairro, nas associações
de pais e mestres, nas Igrejas, nos sindicatos.
Necessário se faz alertar para que sejam evitadas
lideranças de quem pretenda de maneira oportunista,
tirar proveitos políticos e insistir em dar ao movimento
caráter ideológico político. » (RESENDE, 2000:202).
O surgimento de novos valores ou o preconceito por
valores tradicionais, por vezes ditos como valores do
século passado, eventualmente como estando
ultrapassados, é uma situação que assusta muito aqueles
que tanto têm feito pelas gerações que se exprimem
daquela forma.
Continuando-se a acreditar nas virtualidades da
juventude, nas suas potencialidades e na determinação
que parece transparecer dos jovens de hoje, no sentido
de desejarem um mundo melhor, teme-se que os principais
vícios das gerações menos preparadas no passado, quanto
aos valores fundamentais, possam contaminar as do
presente, desde logo no seio das famílias mais
materialistas.
Como grande princípio e desejo universal, também se
acredita que a não agressão e o caminho para a paz são
estratégias possíveis, respectivamente, numa ótica
otimista e de total sinceridade, sabendo-se, porém, que
o ser humano nunca está satisfeito com o que possui; que
os conflitos, as invejas, as traições e outros
malefícios vão continuar, por muitos anos.
Com efeito, «Todos nós sonhamos com uma vida melhor
numa sociedade melhor, contudo, tornou-se difícil passar
um dia que seja sem nos desiludirmos, sem nos sentirmos
desapontados, sem nos sentirmos sugados pelas pessoas
mesquinhas e egoístas que nos rodeiam. Parece que uma
grande maioria de pessoas só está interessada nos seus
ganhos pessoais. Tornam-se rudes e arrogantes, críticas
e insensíveis. As suas ações não só nos deprimem, como
também nos fazem sentir que não podemos fazer nada para
mudar este estado de coisas e que apenas os que estão no
poder têm a capacidade de fazer a diferença. » (WEISS,
2000:138).
Defender os valores da civilização, aqui considerada
como uma dimensão da pessoa humana, desde logo a partir
da sua componente cidadania, é um imperativo categórico,
que o mundo não pode descurar sob pena de agravar a já
precária situação em muitos pontos do globo.
A educação e formação são, portanto, os instrumentos
necessários para que os valores fundamentais, de toda
uma civilização, sejam preservados, aprofundados e
praticados. Não compreender a importância da cidadania,
nesta estratégia, pode significar uma profunda e
irrecuperável ruptura com o passado, que em nada
beneficia o presente e, certamente, compromete o futuro.
Ignorar quaisquer formações no âmbito da cidadania pode
levar à automecanização da pessoa, a uma robotização
humana, comandada a distância.
Bibliografia:
BENTO, Paulo; QUEIRÓS, Adelaide; VALENTE,
Isabel, (1993). Desenvolvimento Pessoal e Social e
Democracia na Escola. Porto: Porto Editora.
GALACHE – GINER – ARANZADI, (1969). Uma
Escola Social. 17ª Edição. São Paulo: Edições
Loyola.
MARQUES, Ramiro, (2001). Professores,
Famílias e Projecto Educativo. 3ª Edição. Porto:
Edições ASA.
POLE, Timothy, (1998). Ser Você.
Trad. Arlete Dialetachi. São Paulo: Editora Angra, Ltda.
REGO, Arménio, (2003). Comportamentos
de Cidadania Docente: na Senda da Qualidade no Ensino
Superior, Coimbra: Quarteto Editora.
RESENDE, Enio, (2000). O Livro das
Competências. Desenvolvimento das Competências: A melhor
Autoajuda para Pessoas, Organizações e Sociedade. Rio de
Janeiro: Qualitymark.
TOLEDO, Flávio de, (1986). Recursos
Humanos, crise e mudanças. 2ª ed. São Paulo: Atlas.
TRICHES, Ivo José, (2008). “Filosofia
versus O Segredo da Humanidade”, in Filosofia,
Ciência & Vida, S. Paulo/Brasil: Escala, Ano II, N.
24, p. 51.
WEISS, Brian L., M.D. (2000:17). “A
Divina Sabedoria dos Mestres. A Descoberto do Poder do
Amor. Tradução António Reca de Sousa. Cascais: Editora
Pergaminho.
Diamantino Lourenço Rodrigues de
Bártolo é presidente do Núcleo Académico de Letras e
Artes de Portugal
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