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por Cláudio Bueno da Silva

 

Uma história de egoísmo *


“Caim representa o egoísmo humano de uma raça em desenvolvimento; Abel é a vítima inocente desse egoísmo feroz” (...) ¹
    


Conversava amistosamente com um parente meu sobre assuntos triviais – desses que fazem o cotidiano das pessoas – quando nossa conversa pendeu para as questões do egoísmo da vida moderna e tudo o que dele decorre.

Havia algum tempo que não nos víamos. Eu, como representante de pequena indústria de “carne de soja”, ele como encarregado de transportes de uma casa atacadista, morando em cidades diferentes, nossas famílias se afastaram, e estávamos finalmente tendo a oportunidade de “colocar a prosa em dia”, como se costuma dizer.

Expúnhamos nossos pontos de vista, intercalando ora de lá, ora de cá, as razões pelas quais achávamos que a violência – todo tipo de violência – tinha chegado ao ponto de verdadeira calamidade moral.

Enquanto os assuntos nos permitiam – pela trivialidade que já citei –, íamos surfando nas ondas do discurso leve, sem compromisso, trocando pareceres sem peso ao mesmo tempo em que degustávamos deliciosos bolinhos de bacalhau que nossas esposas haviam preparado para temperar o nosso reencontro.

De minha parte não via necessidade alguma de aprofundar nosso “bate-papo” com ideias ou conceitos que adoto na minha vida pública e privada. Emitia breves opiniões de consenso, opiniões já aceitas por todos ou pela maioria, mais para manter acesa a tertúlia do que para dar a conhecer a eventual originalidade do meu modo de ver as coisas. Ainda mais que o meu parente quase que monopolizava a reunião, não dando a mim muita chance de mostrar o que eu pensava disto ou daquilo. Ele estava levando bem a sério a oportunidade de recuperar, naquele encontro familiar, o tempo perdido de convivência.

Se eu iniciasse uma frase, ele a tomava como início do seu parágrafo; se eu propusesse novo ângulo de um argumento, ele enumerava mais dois ou três, contando nos dedos; se eu me insurgisse contra algo que considerava injusto, ele o defendia com uma relação de pontos positivos; se eu concordasse por convicção, ele discordava por espírito de sistema. Mas, mesmo assim, aproveitando pequenos espaços de tempo que ele usava para mastigar e deglutir os bolinhos deliciosos, eu conseguia avançar, mantendo a fleuma e tentando encaixar observações que julgava úteis para arrefecer um pouco o tom dos seus comentários um pouco extravagantes. Tudo muito rápido mesmo, pois os intervalos que me cabiam eram curtíssimos e logo interrompidos pelas suas teorias.

Conhecia a sua natureza impetuosa e o jeito um tanto egoísta de conduzir os diálogos, mas desconhecia sua opinião sobre o assunto que nos entretinha: precisamente o egoísmo, esse sentimento que nos põe a perder em muitas circunstâncias e que precisamos corrigir a partir de nós, ajudando a diminuir a sua influência maléfica nas relações sociais. O egoísmo se manifesta de mil formas, nem sempre percebidas pelas pessoas. Por isso, tive a impressão de que ele falava de si mesmo o tempo todo, sem se dar conta.

Na realidade, comecei a ter a certeza de que aquele tema era totalmente impróprio para aquela ocasião ao notar que o monólogo não nos levaria a lugar nenhum. Eu estava sendo agredido pela avalanche ansiosa de argumentos do meu parente e não tinha outra escolha senão me defender com o silêncio respeitoso, entrecortado de vez em quando por um sim, claro, então, ô!... 

Sem dúvida, aquela era uma das formas sutis de violência que se pratica, em meio a tantas outras, e que faz impor a personalidade de uns sobre os outros, atrapalhando os relacionamentos. É a força do egoísmo que, desde a era de Caim e Abel, tanto pode provocar uma tragédia quanto causar apenas uma má impressão. E o efeito disso eu cuidei logo em desfazer, desculpando o meu parente.

Após as despedidas, depois da autêntica peleja verbal em que fui abatido pelo parente que nos visitara, ajudando à esposa nas pequenas arrumações, recolhi o prato dos bolinhos de bacalhau, vazio.

 

*Algumas contradições bíblicas, Ademar Faria Júnior e Cláudio Bueno da Silva, 2ª ed. 2013, Mythos Books.


(¹Visão espírita da bíblia, J. Herculano Pires, edição Correio Fraterno.


 
 
 

     
     

O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita