Uma história de egoísmo *
“Caim representa o
egoísmo humano de uma raça em desenvolvimento; Abel é a
vítima inocente desse egoísmo feroz” (...) ¹
Conversava amistosamente com um parente meu sobre
assuntos triviais – desses que fazem o cotidiano das
pessoas – quando nossa conversa pendeu para as questões
do egoísmo da vida moderna e tudo o que dele decorre.
Havia algum tempo que não nos víamos. Eu, como
representante de pequena indústria de “carne de soja”,
ele como encarregado de transportes de uma casa
atacadista, morando em cidades diferentes, nossas
famílias se afastaram, e estávamos finalmente tendo a
oportunidade de “colocar a prosa em dia”, como se
costuma dizer.
Expúnhamos nossos pontos de vista, intercalando ora de
lá, ora de cá, as razões pelas quais achávamos que a
violência – todo tipo de violência – tinha chegado ao
ponto de verdadeira calamidade moral.
Enquanto os assuntos nos permitiam – pela trivialidade
que já citei –, íamos surfando nas ondas do discurso
leve, sem compromisso, trocando pareceres sem peso ao
mesmo tempo em que degustávamos deliciosos bolinhos de
bacalhau que nossas esposas haviam preparado para
temperar o nosso reencontro.
De minha parte não via necessidade alguma de aprofundar
nosso “bate-papo” com ideias ou conceitos que adoto na
minha vida pública e privada. Emitia breves opiniões de
consenso, opiniões já aceitas por todos ou pela maioria,
mais para manter acesa a tertúlia do que para dar a
conhecer a eventual originalidade do meu modo de ver as
coisas. Ainda mais que o meu parente quase que
monopolizava a reunião, não dando a mim muita chance de
mostrar o que eu pensava disto ou daquilo. Ele estava
levando bem a sério a oportunidade de recuperar, naquele
encontro familiar, o tempo perdido de convivência.
Se eu iniciasse uma frase, ele a tomava como início do
seu parágrafo; se eu propusesse novo ângulo de um
argumento, ele enumerava mais dois ou três, contando nos
dedos; se eu me insurgisse contra algo que considerava
injusto, ele o defendia com uma relação de pontos
positivos; se eu concordasse por convicção, ele
discordava por espírito de sistema. Mas, mesmo assim,
aproveitando pequenos espaços de tempo que ele usava
para mastigar e deglutir os bolinhos deliciosos, eu
conseguia avançar, mantendo a fleuma e tentando
encaixar observações que julgava úteis para arrefecer um
pouco o tom dos seus comentários um pouco extravagantes.
Tudo muito rápido mesmo, pois os intervalos que me
cabiam eram curtíssimos e logo interrompidos pelas suas
teorias.
Conhecia a sua natureza impetuosa e o jeito um tanto
egoísta de conduzir os diálogos, mas desconhecia sua
opinião sobre o assunto que nos entretinha: precisamente
o egoísmo, esse sentimento que nos põe a perder em
muitas circunstâncias e que precisamos corrigir a partir
de nós, ajudando a diminuir a sua influência maléfica
nas relações sociais. O egoísmo se manifesta de mil
formas, nem sempre percebidas pelas pessoas. Por isso,
tive a impressão de que ele falava de si mesmo o tempo
todo, sem se dar conta.
Na realidade, comecei a ter a certeza de que aquele tema
era totalmente impróprio para aquela ocasião ao notar
que o monólogo não nos levaria a lugar nenhum. Eu
estava sendo agredido pela avalanche ansiosa de argumentos do
meu parente e não tinha outra escolha senão me defender
com o silêncio respeitoso, entrecortado de vez em quando
por um sim, claro, então, ô!...
Sem dúvida, aquela era uma das formas sutis de violência
que se pratica, em meio a tantas outras, e que faz impor
a personalidade de uns sobre os outros, atrapalhando os
relacionamentos. É a força do egoísmo que, desde a era
de Caim e Abel, tanto pode provocar uma tragédia quanto
causar apenas uma má impressão. E o efeito disso eu
cuidei logo em desfazer, desculpando o meu parente.
Após as despedidas, depois da autêntica peleja verbal em
que fui abatido pelo parente que nos visitara, ajudando
à esposa nas pequenas arrumações, recolhi o prato dos
bolinhos de bacalhau, vazio.
*Algumas contradições bíblicas,
Ademar Faria Júnior e Cláudio Bueno da Silva, 2ª ed.
2013, Mythos Books.
(¹) Visão espírita da
bíblia, J. Herculano Pires, edição Correio
Fraterno.
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