Em teu seio, só rubores
A história que irei narrar aconteceu há alguns anos em
um centro espírita do RJ. O fato envolveu dois
trabalhadores: Petrônio, responsável pelo departamento
de divulgação; e Raul, o presidente da instituição.
Petrônio era (e ainda deve ser) um grande fã de cinema.
Estava sempre por dentro dos lançamentos, premiações,
opinião da crítica especializada etc. E como cinéfilo
que se preza, participava de rodas de cultura, que
promovem sessões seguidas de debates. Cinema era um
assunto que Petrônio dominava. E arrastava, com muito
prazer, esposa, filhos e amigos para o seu saudável
hobby. Tanto que todos, inclusive o pessoal do centro
espírita, vivia pedindo dicas de bons filmes para ele.
Era o ano de 2006. Um dos indicados ao Oscar de melhor
produção estrangeira foi “Feliz Natal” (“Joyeux Noël”),
uma coprodução entre França, Romênia, Bélgica, Alemanha
e Inglaterra. O filme conta a história – verídica – de
uma trégua ocorrida no front de batalha da I
Guerra Mundial (1914-1918), numa véspera de Natal. Na
ocasião, os soldados alemães, franceses e escoceses
deixaram suas trincheiras em campos opostos e, juntos,
comemoraram a data.
À época do lançamento, Petrônio não assistiu à película
no cinema. Foi vê-la meses depois, em DVD, numa sessão
de cinéfilos seguida de debate.
Todos os presentes ficaram encantados com a história.
Na tela, um soldado alemão que era também cantor lírico
sobe numa pequena elevação e canta uma música natalina.
Do lado escocês, um combatente toca uma gaita de fole.
De repente, os líderes dos três exércitos conversam
entre si e decidem estabelecer uma trégua. Então, todos
confraternizam, ceiam, jogam bola, ficam amigos, trocam
endereços e marcam visitas para depois que a guerra
terminar... E chegam ao luxo de dar o seguinte aviso ao
campo oposto: – Recebemos ordens para bombardear a
trincheira de vocês. Mas se vocês quiserem, podem se
proteger na nossa trincheira.
Inacreditável que isso tenha acontecido em plena
Primeira Grande Guerra! Mas aconteceu, virou filme
coproduzido por cinco países, fez um baita sucesso,
concorreu ao Oscar e estava sendo debatido e elogiado em
todo o mundo, inclusive no grupo cinéfilo do qual
Petrônio fazia parte. Soldados camaradas protegendo uns
aos outros, apesar de estarem em lados opostos. Uma
denúncia e tanto à imbecilidade das guerras, promovidas
por governantes e seus interesses escusos. E uma clara
evidência de que somos muito mais iguais do que
pensamos.
À mesma época em que Petrônio assistiu e debateu “Feliz
Natal” com os demais apreciadores da sétima arte, a
diretoria do centro espírita do qual ele faz parte há
mais de 20 anos resolveu montar uma programação especial
de fim de ano. Petrônio, como responsável pela
divulgação, sugeriu a exibição de “Feliz Natal”, no que
foi seguido por alguns companheiros que haviam assistido
à obra. Raul, o presidente da instituição, não havia
visto o filme, mas seguiu a sugestão dos colaboradores,
principalmente Petrônio, que viu na exibição da película
no centro espírita um ótimo ensejo para que fossem
debatidas questões como fraternidade, amor ao próximo,
aceitação de diferenças, hipocrisia de religiões
institucionalizadas etc.
No dia marcado para a exibição, Petrônio havia viajado a
trabalho para outra cidade. E foi só nesse dia, na parte
da manhã, que Raul assistiu ao DVD de “Feliz Natal”. A
exibição no centro estava marcada para o fim da tarde.
Petrônio estava almoçando quando o celular tocou. Era
Raul, e visivelmente aborrecido. Motivo: havia uma
mulher com os seios à mostra no filme e, por isso, a
exibição de “Feliz Natal” estava cancelada. Em seu
lugar, às pressas, foi colocada uma adocicada produção
norte-americana que abordava o amor além da morte.
A surpresa de Petrônio não foi tão grande quanto o
alívio por não estar presente no centro e nem na cidade
àquele dia. Mesmo assim, o suposto seio de fora o
intrigava. Afinal, o elenco da produção era masculino.
Que cena era essa que tornava o filme ofensivo ao
público de um centro espírita?
Dias depois, Petrônio pegou o filme na locadora e o
reviu em casa. A cena que causara a indignação do
presidente da instituição mostrava o já citado cantor
lírico alemão deitado na cama com a esposa, também
cantora. Ambos conversam sobre a gravidade de ele se
afastar do ofício e ter de ir para a guerra lutar por
uma causa que não lhe pertencia. Em dado momento, a
mulher se vira na cama e parte do seio esquerdo fica à
mostra. Tudo muito rápido e dentro de um contexto que
mostra a intimidade bonita e saudável entre um homem e
uma mulher que se amam. E muito antes de a grande
mensagem do filme começar a ser mostrada.
Provavelmente, Raul não assistiu à história toda. Ele se
ateve à metade esquerda do seio esquerdo da atriz. Foi o
suficiente para barrar a película.
O que terá passado pela cabeça dele? Várias coisas, eu
suponho. Ele achou o filme totalmente impróprio devido a
um seio parcialmente exposto. Talvez ele tenha ficado
com receio da reação dos demais frequentadores da casa
ao se depararem com a referida cena. Ou então, achou que
o fato faria a plateia ruborizar, a vibração baixar e
possibilitar que o centro fosse invadido por hordas de
obsessores. Até parece que é assim! Mas como muitos
espíritas gostam de subestimar os amigos espirituais, o
conservadorismo acaba dando o tom de muitos centros
espíritas.
Talvez os presentes não achassem nada demais. No
entanto, é sempre mais fácil transferirmos para os
outros um incômodo que é nosso. Sim; é isso que fazemos
quando indagamos o que os outros irão pensar. Herança de
um país colonizado por beatices católicas e que ainda
acha imoral qualquer laivo de sexualidade ou erotismo
sadios. Uma mentalidade que ainda grassa pelo movimento
espírita, pelo visto.
De qualquer forma, o episódio mostra como boa parte dos
espíritas é puritana e conservadora, a ponto de
considerar ameaçadora uma cena que é comum entre pessoas
que se amam e que foi mostrada com sensibilidade e
sutileza em “Feliz Natal”. Um lance que, de tão ligeiro,
passa despercebido por quem está interessado em absorver
a real mensagem do filme.
Lamentável da parte de Raul julgar que uma cena
docemente erótica e rápida seria mais impactante que a
lição de humanidade que o filme dá ao mostrar soldados
de tropas inimigas se tratando e se cuidando como irmãos
em humanidade. Uma mensagem e tanto para ser mostrada e
debatida pela turma do centro espírita em tempos de
festas natalinas.
Infelizmente, o tolo conservadorismo cheio de pruridos
ainda existente na cabeça de muitos espíritas falou mais
forte que a vivência do Natal em sua mais pura essência
e em meio a uma guerra que nunca é dos que são
recrutados para morrer pela pátria.
É por isso que, muitas vezes, os Petrônios da vida
desanimam e se afastam do centro espírita. Aí, são
tachados de rebeldes, obsidiados etc. Bastaria apenas
haver dirigentes espíritas com cabeça mais arejada para
transformar os centros que dirigem em locais mais
dinâmicos, abertos e desprovidos de tabus envolvendo o
corpo e a sexualidade humana.
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