Sobre abortos e abortos
Júlia foi minha colega de trabalho. Quando ela ingressou
na empresa, estava vindo de uma fase de desemprego.
Meses depois, ela engravidou do quarto filho, que nasceu
em novembro, lembro até hoje. Após a
licença-maternidade, voltou com mil histórias para
contar sobre a menina que tinha nascido para dar mais
cor à vida dela, do marido e dos três filhos mais velhos
– duas meninas e um menino.
Certa vez, quando almoçávamos juntos, ela me perguntou
sobre a visão espírita do aborto. Disse, então, que o
aborto não convinha porque o Espírito se liga ao feto no
momento em que óvulo e espermatozoide se encontram, que
já há vida plena no embrião etc. Júlia, então, para o
meu espanto, começou a chorar. E de remorso. Motivo: ela
havia feito um aborto na época em que estava
desempregada. Detalhe: o marido também estava sem
trabalho. Desesperados, com orçamento apertado e três
filhos para criar, acabaram optando pela interrupção da
gravidez do quarto rebento. Disse a ela para ficar
tranquila. Afinal, tempos depois de ela e o marido terem
voltado a trabalhar, engravidara novamente e tivera a
criança. A meu ver, os amigos espirituais haviam
compreendido o sufoco material que a família atravessava
e resolveram dar uma chance até a situação se recompor.
Como ambos já estavam reinseridos no mercado de
trabalho, nova gravidez acontecera e aquele Espírito que
tanto queria reencarnar havia tido o tão esperado
ensejo. Ao saber disso, Júlia compreendeu a grandeza das
leis de amor que regem o universo, respirou aliviada e
almoçou em paz. E até onde eu percebera, dera adeus ao
remorso.
Clarice estava grávida do primeiro filho. Quarto
decorado, enxoval comprado. Seria também o primeiro neto
de ambos os lados do casal. Por isso, os pais, os
sogros, os irmãos e os cunhados de Clarice enchiam-na de
mimos. Só que o menino nasceu com sérios problemas e
durou pouquíssimas horas. Luto na família! Frustração
geral! Clarice entrava no quartinho que seria do bebê e
começava a chorar. Só que, em dado momento, deu-se conta
que estava viva, era moça, tinha um marido e uma
carreira e seguiu adiante, na certeza de que
engravidaria novamente. E engravidou! Só que, por volta
do terceiro mês, teve rubéola, doença que costuma
acarretar malformações no feto, microcefalia, surdez,
cegueira... Alguns familiares começaram a falar em
aborto. Clarice e o marido, no entanto, resolveram dar
uma chance à criança. Ela viria ao mundo e seria amada
do jeito que viesse! E nasceu uma menina com uma
anomalia mínima: um dedo faltando em uma das mãos.
Somente isso! Depois dela, o casal teve mais dois
filhos. A primogênita, hoje, é uma profissional liberal
e mãe de família. E quase ninguém percebe que ela tem
quatro dedos na mão esquerda. Ou será na direita? Nem
sei, pois nunca prestei atenção!
Valéria tinha dois anos de casada quando o marido
precisou viajar para o exterior a trabalho. Anos 60 do
século XX, muitas novidades acontecendo pelo mundo. O
marido estava em ascensão na empresa, e o ensejo de
passar seis meses na matriz, na Europa, faria com que
ele voltasse ocupando um cargo melhor, o que seria ótimo
para a vida do casal.
Só que, um mês após a viagem, Valéria foi assaltada e
estuprada. E descobriu-se grávida tempos depois! Apesar
de estarmos na década dos hippies, dos Beatles e afins,
a tradicional família brasileira de então jogava (e
ainda joga) a culpa na mulher. Os pais e sogros de
Valéria eram bem rígidos, e ela não contara a ninguém
que havia sido estuprada, tamanha a vergonha! Como
contar agora que engravidara! Como explicar ao marido o
ocorrido quando ele retornasse? Como justificar a
barriga de grávida que fatalmente apareceria? Ele
acreditaria que a esposa havia sido vítima de um assalto
seguido de estupro? Como provar?
Desesperada e sozinha, Valéria recorreu ao aborto.
Apesar do procedimento agressivo e traumático, respirou
aliviada. Tempos depois de o marido ter regressado,
Valéria engravidou da primeira filha. Um menino e outra
menina vieram nos anos subsequentes. Quando Valéria
contou essa história ao marido, ambos já estavam na casa
dos 50 anos. Abraçaram-se emocionados, e ele entendeu
perfeitamente a dor, a angústia e a solidão pelas quais
a amada passara. Seguiram felizes, com o amor
fortalecido.
A gravidez de primeira viagem havia chegado para Marisa.
Muita esperança e alegria entre ela e o amado. Jovem e
professora de educação física, ela sabia o que era
preciso para manter o corpo saudável. Por isso,
exercitava-se e mantinha uma alimentação balanceada.
Tudo para manter a própria saúde e a do bebê.
Subitamente, aos três meses de gravidez, Marisa teve um
sangramento intenso. A família correu com ela para o
hospital, mas não teve jeito. Aborto espontâneo.
A vontade que Marisa sentiu nos primeiros dias depois da
alta hospitalar foi de nunca mais sair de casa. Queria
ficar no quarto, deitada. As forças lhe faltavam.
Incentivada pela família e amigos, ela foi retomando o
ritmo das atividades e recuperou a alegria de viver. Ao
comentar comigo o acontecido, observou que a iminência
ante a perda do filho fora, até então, a dor mais aguda
que sentira. E completou: – Se eu, que sofri um aborto
espontâneo, experimentei uma agonia indescritível a
caminho do hospital, fico imaginando a dor moral pela
qual passa a mulher que se dirige rumo a um aborto
decidido por ela própria. Um aborto que ela fará por
estar sozinha, desesperada, sem condições de criar a
criança, pressionada ou abandonada pelo companheiro.
Nenhuma mulher que tomou a decisão de fazer um aborto
encara o procedimento como se fosse uma cirurgia
corriqueira. A dor moral que senti ante o aborto
espontâneo que sofri foi intensa, mas a dor que uma
mulher que opta pela interrupção proposital da gravidez
deve ser bem pior. Pensei, então, com os meus botões: –
Ainda mais se levarmos em conta o local e as condições
em que tudo é feito.
*
Estas são apenas quatro histórias que mostram como é
complexa para a mulher a questão do aborto. Mostram
também, como já observado em outro artigo de minha
autoria, que um aborto nunca é igual a outro. Por isso,
não dá para analisá-los sob a mesma ótica. Muito menos
julgá-los.
Se para nós, míseros humanos imortais, essa premissa
precisa prevalecer, imaginem para Deus, que é amor,
conforme a bela e exata definição do apóstolo João. Se
Deus é amor, ele não condena, não julga, não discrimina,
não castiga. Nem perdoar ele perdoa, pois, para perdoar,
ele precisa ter se ofendido. Mas como Deus não é uma
pessoa, e sim uma força maior que não cabe dentro da
estreiteza do nosso raciocínio, ele apenas ama!
A Providência Divina, uma espécie de sistema operacional
do Criador, entendeu a angústia de Lúcia e lhe
possibilitou, em nova gravidez, receber a menina que
fora abortada porque ela e o marido estavam em situação
difícil. Também consolou Clarice quando da perda do
primeiro filho e incentivou-a a levar a segunda gravidez
a termo. Também deu a mão à Valéria no momento de
decisão tão difícil, entendo-lhe os motivos e
possibilitando, mais adiante, o ensejo de ter três
filhos com o homem que amava. E finalmente, amparou
Marisa no momento do aborto espontâneo e deu-lhe forças
para reerguer-se, preparando-a, futuramente, para ser
mãe.
Deus age de forma diferente por diversas formas e
circunstâncias. Conhece nossas forças e fraquezas,
ampara-nos nos momentos de dor, entende nossas
limitações e nos dá o ensejo de refazermos a jornada.
Por mais duras que sejam as críticas dos homens e os
preceitos dessa ou daquela religião acerca do aborto,
tenhamos em mente que Deus conhece intimamente cada um
de nós. E que, quando muitos nos apedrejam e nos ferem,
é ele que nos abraça e restaura nossas forças.
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