Nas obras que comentam versículos bíblicos, muitas vezes encontram-se algumas
diferenças em função das traduções adotadas nas várias versões da Bíblia.
Ao elaborar O evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec adotou a
tradução feita por Lemaistre de Sacy, conhecido
por sua tradução da Vulgata (Bíblia em latim) para o francês. Essa tradução
tornou-se a mais difundida na França a partir do século XVIII.
Pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, o seu orientador Emmanuel elaborou
milhares de textos realizando interpretações de versículos do Novo Testamento.
Emmanuel é o autor espiritual de nove livros contendo comentários de versículos
do Novo Testamento: Caminho, verdade e vida; Pão nosso; Vinha
de luz; Fonte viva; Ceifa de luz, editados pela FEB; Segue-me (O
Clarim); Palavras de vida eterna e Livro da esperança (CEC); Bênção
de paz (GEEM).
De início, o autor espiritual explicou o uso da expressão “num colar de
pérolas”, na apresentação intitulada “Interpretação dos Textos Sagrados”, em Caminho,
verdade e vida, para compreendermos seus estudos sobre os versículos: “Em
certas passagens, extraímos daí somente frases pequeninas, proporcionando-lhes
fisionomia especial e, em determinadas circunstâncias, as nossas considerações
desvaliosas parecem contrariar as disposições do capítulo em que se inspiram.
Assim procedemos, porém, ponderando que, num colar de pérolas, cada qual tem
valor específico e que, no imenso conjunto de ensinamentos da Boa Nova, cada
conceito do Cristo ou de seus colaboradores diretos adapta-se a determinada
situação do Espírito, nas estradas da vida.”1
Isso pode ser observado em uma obra elaborada com participação de vários autores
lançada durante as comemorações do Sesquicentenário de O evangelho segundo o
espiritismo na qual há um capítulo que apresenta a “Listagem dos comentários
feitos por Emmanuel, não exaustiva, tratando-se, tão somente, da enumeração de
algumas de suas mensagens constantes em obras psicografadas pelo médium
Francisco Cândido Xavier.2
Registro importante é que nas edições originais dos livros citados de Emmanuel,
ele emprega versículos do Novo Testamento adotando a tradicional tradução
“revista e corrigida” de João Ferreira de Almeida, bem difundida à época no
Brasil. As epígrafes (versículos selecionados) no início de cada capítulo é que
dão o tom para as dissertações de Emmanuel. Este destaque é importante porque o
linguajar do autor espiritual foi desenvolvido em torno da tradução citada e,
eventualmente, versículos de outras traduções podem não ser coerentes com os
textos de Emmanuel.
O
respeito a esse critério orientou-nos nas transcrições e nos estudos feitos em
livros de nossa autoria relacionados com a bibliografia de Emmanuel e lançados
pela Casa Editora O Clarim: Epístolas de Paulo à luz do espiritismo (2016); Cristianismo
nos séculos iniciais. Análise histórica e visão espírita (2018); Emmanuel.
Trajetória espiritual e atuação com Chico Xavier (2020).3,4,5
Em palestras e inclusive no “Seminário sobre o estudo de O evangelho segundo o
espiritismo” realizado pela USE-SP em 29/10/2017, no Centro de Cultura,
Documentação e Pesquisa Espírita, de São Paulo, a questão das traduções bíblicas
veio à tona no momento das perguntas. A resposta à dúvida foi fundamentada nos
esclarecimentos que apresentamos em parágrafos anteriores do presente artigo.6
Emmanuel escreveu obras homenageando as obras básicas da Codificação. No Livro
da esperança focaliza O
evangelho segundo o espiritismo e no início de cada capítulo coloca uma
epígrafe do Novo Testamento articulada à transcrição de um trecho de comentários
na citada obra de Allan Kardec. Na apresentação, o autor espiritual saúda:
“No luminoso centenário de “O Evangelho segundo o Espiritismo, em vão tentamos
articular, diante de ti, a nossa gratidão jubilosa!”7
A
título de ilustração de diferenças de traduções de algumas versões bíblicas, que
por destoarem da palavra-chave do versículo selecionado por Emmanuel, podem
criar uma desarmonia com o próprio texto do autor espiritual.
Vejamos a epígrafe do capítulo 134 de Vinha de luz: "Naquele dia, quem
estiver no telhado, tendo as suas alfaias em casa, não desça a tomá-las." -
Jesus (LUCAS, 17:31).8
A
palavra chave “alfaias” tem significados amplos: utensílio,
móvel ou qualquer objeto, de uso doméstico ou pessoal. Objeto que se usa como
enfeite, adorno; bijuteria, enfeite, jóia. Paramento ou enfeite de igreja. Na liturgia
de algumas igrejas, pode significar: objeto
usado para enfeite pessoal, adorno, jóia, ornamento; ou ainda: os paramentos
são pequenos tecidos que, bordados, ganham uma função muito especial dentro do
contexto litúrgico. Na maçonaria, alfaias são os paramentos usados pelos seus
membros no ambiente das reuniões.
A
citada palavra-chave, assim aparece em algumas traduções mais recentes: na Bíblia
de Jerusalém: “utensílios”; na A Bíblia. Tradução ecumênica (TEB):
“objetos”.
Assim, ao lermos trechos da interpretação de Emmanuel sobre a citada epígrafe, e
face às diferentes traduções, entendemos que a tradicional palavra “alfaia” seja
mais condizente com o pensamento do autor espiritual: “Não sabem separar as
alfaias de adorno dos vasos essenciais, as frivolidades dos deveres justos e
sofrem dolorosos abalos no coração. [...] Um lar não vive simplesmente em razão
das alfaias que o povoam, transitoriamente, e sim pelos fundamentos espirituais
que lhe construíram as bases. Um homem não será superior porque satisfaça a
opiniões passageiras, mas sim porque sabe cumprir, em tudo, os desígnios de
Deus.”8
A propósito de traduções, há um fato histórico na área da literatura espírita. A
obra Na hora do testemunho,
uma parceria de Herculano Pires com Chico Xavier, apontou um triste incidente: a
adulteração de O Evangelho
segundo o Espiritismo, usando atualização e simplificação de
palavras em tradução publicada pela editora da FEESP, em julho de 1974. No livro
citado há mensagens, crônicas, poemas e cartas, que Herculano Pires e Chico
Xavier escolheram, para deixarem documentadas suas posições, quanto à
importância da defesa da obra de Kardec contra as tentativas de adulteração.
Leitura obrigatória para os espíritas para prevenções contra a estagnação
simplória na crença e a aceitação de “mentores” deste e do outro mundo, que por
meios tipicamente farisaicos atrelam facilmente os ingênuos e os vaidosos ao
carro fantasioso das suas pretensões. O famoso psicógrafo marcou uma posição
firme e Herculano Pires destacou: “O médium Francisco Cândido Xavier, apesar de
sua costumeira isenção em polêmicas doutrinárias, acabou manifestando-se contra
a adulteração e tomou posição firme e clara na defesa dos textos de Kardec. A
maioria dos chamados líderes espíritas não se manifestou. A hora do testemunho
provara mal, revelando a falta de convicção da maioria absoluta, e portanto
esmagadora, do chamado movimento espírita brasileiro. Mas os resultados foram se
manifestando mais tarde, com um crescente interesse do meio espírita pelas obras
de Kardec em edições insuspeitas.”9 Sabe-se que a Editora parou de
editar a tradução alterada.
Essa posição firme de Herculano Pires e de Chico Xavier, respectivamente
marcados por Emmanuel como: “o metro que melhor mediu Kardec” e a “fidelidade a
Jesus e a Kardec”, é coerente com as designações/orientações do citado mentor
espiritual e com a mensagem de São Luís:
“Se as imperfeições de uma pessoa só a ela prejudicam, nenhuma utilidade haverá
nunca em divulgá-la. Se, porém, podem acarretar prejuízo a terceiros, deve-se
atender de preferência ao interesse do maior número. Segundo as circunstâncias,
desmascarar a hipocrisia e a mentira pode constituir um dever, pois mais vale
caia um homem, do que virem muitos a ser suas vítimas. Em tal caso, deve-se
pesar a soma das vantagens e dos inconvenientes.”10
Como se vive momentos de muitos modismos na literatura e na exposição espírita,
transcrevemos trechos de mensagens do próprio Emmanuel:
“Os crentes e trabalhadores do Evangelho usam
diversos meios para lhe fixarem as vantagens, mas raros lhe abrem as portas da
vida. [...] Recebem outros as advertências e luzes evangélicas, à maneira de
negociantes ambiciosos, buscando convertê-las em fontes econômicas de grande
vulto. Ainda outros procuram os avisos divinos, fazendo valer princípios
egolátricos, em polêmicas laboriosas e infecundas. No imenso conflito das
interpretações dever-se-ia, porém, acatar o pedido de Paulo de Tarso em sua
segunda epístola aos Coríntios. O apóstolo da gentilidade roga para que ele e
seus companheiros de ministério sejam recebidos nos corações.” E aí destacamos a
epígrafe do texto: “Recebei-nos em vossos corações.” Paulo (II Coríntios,
7:2).8
Outro comentário oportuno:
“Realmente, por séculos sucessivos, temos realizado a transliteração do
Evangelho em todos os climas culturais. [...] Contudo não basta nos detenhamos
na fraseologia brilhante, no gesto sutil ou nas aparências elogiáveis para
demonstrar assimilação do ensinamento transformador. Cristianismo não é somente
a forma da civilização que nos propomos construir com Jesus. [...] Urge,
pois, configurar a revelação não apenas no tesouro verbalístico que nos lastreia
as conquistas filosóficas e artísticas de quase dois milênios. [...] Todos nos
encontramos à face do julgamento, pelo delito de lesa consciência, de vez que
temos adulterado a mensagem do Divino Benfeitor de mil modos, em cada romagem no
mundo. Jesus, porém, tolera-nos compassivo e reforma-nos o empréstimo de tempo e
de valores novos… Mas, se é verdade que nenhum de nós está em condições de
atirar a primeira pedra no irmão de caminho, cabe-nos a todos ouvir o Mestre
Inesquecível em sua amorosa e segura advertência: – ‘Vai e não peques mais’.”11
Concluindo as sugestões para estudos e reflexões,
destacamos o inolvidável Léon Denis: “O Espiritismo será o que o fizerem os
homens, Simila similibus! Ao contato da humanidade as mais altas verdades
às vezes se desnaturam e obscurecem. Podem constituir-se uma fonte de abusos. A
gota de chuva, conforme o lugar onde cai continua sendo pérola ou se transforma
em lodo.”12
Referências:
1. Xavier,
Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Caminho, verdade e vida.
1.ed.esp. Cap. Interpretação dos textos sagrados. Brasília: FEB. 2005.
2. Carvalho,
Flávio Rey. Indicações de comentários feitos por Emmanuel acerca de trechos do
Novo Testamento citados em O Evangelho segundo o Espiritismo. In:
Carvalho, Antonio Cesar Perri; Carvalho, Célia Maria Rey (Org.). O evangelho
segundo o espiritismo: orientações para o estudo. 1.ed. Cap. 13. Brasília:
FEB. 2014.
3. Carvalho,
Antonio Cesar Perri. Epístolas de Paulo à luz do espiritismo. 1.ed. Cap.
2. Matão: O Clarim.
2016.
4. Carvalho,
Antonio Cesar Perri. Cristianismo nos séculos iniciais. Análise histórica e
visão espírita. 1.ed. Cap. Apresentação. Matão: O Clarim, 2018.
5. Carvalho,
Antonio Cesar Perri. Emmanuel. Trajetória espiritual e atuação com Chico
Xavier. 1.ed. Cap. 13. Matão: O Clarim. 2020.
6. Seminário
sobre o estudo de O evangelho segundo o espiritismo. Texto bíblico usado
nos livros originais de Emmanuel. Link: clique
aqui (Acesso
em 28/09/2020).
7. Xavier,
Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Livro da esperança. 17.ed.
Cap. Obrigado, Senhor! Uberaba: CEC. 2002.
8. Xavier,
Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Vinha de luz. 1.ed.esp.Cap.
134 e 147. Brasília: FEB. 2005.
9. Xavier,
Francisco Cândido; Pires, José Herculano. Na
hora do testemunho. 1.ed. São Paulo: Paidéia. 1974. 120p.
10. Kardec, Allan. Trad.
Ribeiro, Guillon. O evangelho segundo o espiritismo. 131.ed. Cap. X. Item
21. Brasília: FEB. 2013.
11. Xavier,
Francisco Cândido. Pelo espírito Emmanuel. Construção
do amor. 17.ed. Cap. Ante o Evangelho. São Paulo: CEU. 2002.
12. Denis,
Léon. Trad. Cirne, Leopoldo. No invisível. 26.ed. Introdução. Brasília:
FEB. 2014.
O
autor foi presidente da USE-SP e da Federação Espírita Brasileira.