Ainda sobre o bom espírita e o espiritão
No artigo anterior – O bom espírita e o espiritão –
falei sobre os espiritões, seres que pululam pelo
movimento espírita. Eles, em geral, se julgam modelos de
espíritas a serem seguidos e vivem se comparando com os
demais companheiros do movimento espírita.
Principalmente com aqueles que, na visão dos espiritões,
não se encaixam no modelo por eles criado. Para tanto,
inventei um personagem chamado João, o espiritão.
Quando cheguei ao final, disse que, no artigo seguinte,
contaria uma história muito boa envolvendo um espiritão.
Trata-se de um episódio que me foi narrado por um antigo
trabalhador do movimento espírita aqui de Petrópolis
(RJ), minha cidade natal. Estávamos em meados da década
de 80 do século passado. Eu tinha pouco tempo de
mocidade espírita e era todo empolgado, cheio de ideais
(sou até hoje). Num evento, esse trabalhador, já de
idade avançada, me passou essa história que nunca mais
saiu da minha memória e que, pela primeira vez,
transcreverei. Não sei onde o fato ocorreu e não faço
ideia de quais seriam os protagonistas. Aliás, não
lembro sequer da fisionomia do homem que me fez a
narrativa.
Era uma vez um centro espírita como outro qualquer.
Tarefas, trabalhadores, atividades e reuniões públicas
doutrinárias semanais, nas quais comparecia toda sorte
de público, incluindo um homem a quem chamarei de
Arnaldo.
Bonachão, simpático e bem-apessoado, Arnaldo tinha uma
particularidade: gostava de beber conhaque de vez em
quando. Por causa disso, volta e meia chegava ao centro
com cara de quem havia tomado uns tragos. Ele não
chegava trocando as pernas, muito menos caindo pelas
tabelas, tampouco bêbado como um gambá, como se diz por
aí. Chegava na boa, mas dava para notar que havia
colocado uma ou duas (quem sabe três) doses da bebida
para dentro.
Arnaldo não era trabalhador do centro espírita; somente
um frequentador de reuniões públicas. Gostava sempre de
sentar na última fila do salão de palestras. E toda vez
que chegava exalando conhaque, dormia durante a
preleção, o que provocava a indignação de alguns
trabalhadores do centro. Entre eles, aquele a quem me
referirei como Sebastião, o outro espiritão.
Era comum o Sebastião e vários outros tarefeiros
comentarem entre si, com censura e desdém: – Mas que
absurdo! Onde já se viu um espírita chegar ao centro
cheirando a conhaque e ainda por cima dormir na
palestra, na cara de todo mundo! Que mau exemplo!
Certo dia, Arnaldo não apareceu mais no centro. Como era
apenas um frequentador de palestras, demoraram algumas
semanas para dar pela falta dele. Até que chegou a
notícia de que Arnaldo havia desencarnado devido a uma
doença súbita. O fato não causou muita comoção e em
pouco tempo ninguém mais se lembrava daquele sujeito.
Principalmente Sebastião, que nunca vira com bons olhos
aquele ser que às vezes chegava ao centro recendendo a
álcool e dormia na cadeira no decorrer das palestras.
Seis anos depois, Sebastião, devido a uma moléstia que o
acometera meses antes, também desencarnou. E para sua
felicidade, despertou numa aprazível e bucólica colônia
espiritual.
Por ser espírita, entendeu perfeitamente o que lhe
acontecera, recebeu a visita de amigos e parentes já
desencarnados e se adaptou com facilidade ao local. Em
pouco tempo, lá estava Sebastião trabalhando alegremente
na colônia que o acolhera com tanto carinho.
Tempos depois, o administrador do local reuniu os
presentes para avisar que a colônia seria visitada por
um Espírito de escol, habitante de esferas mais
elevadas. Essa entidade faria uma palestra com
ensinamentos que seriam bastante proveitosos para todos.
Sebastião se encheu de contentamento e expectativa, já
que seria o primeiro contato dele com um Espírito
elevado.
No dia e horário aprazados, os habitantes da colônia se
reuniram. Foi feita uma sentida prece e, em segundos,
adentrou o recinto a tão esperada presença. Tratava-se
de uma senhora de aspecto sereno e sorriso jovial. Uma
entidade veneranda, vamos assim dizer, que irradiava uma
intensa luz que emocionou a todos.
Essa senhora, no entanto, não veio sozinha. Trouxe
consigo alguns de seus colaboradores mais diretos. Entre
eles, Arnaldo!
Sebastião não conseguiu esconder a estupefação ao ver
Arnaldo integrando aquela equipe de trabalhadores
espirituais elevados. Como um reles biriteiro podia
fazer parte daquela plêiade? Não seria mais justo,
Sebastião, trabalhador espírita com décadas de serviços
prestados, estar junto àquela entidade no lugar de
Arnaldo?
Quando terminou a preleção e a caravana liderada pela
senhora partiu, Sebastião pediu para falar com o
administrador da colônia e expôs suas inquietações, no
que foi ouvido com atenção e carinho. Falou que havia
nascido em berço espírita, que fora presidente do centro
por duas vezes, que exercera as funções de expositor,
doutrinador de Espíritos, responsável pelo bazar, entre
outras atribuições. Por isso, não entendia como Arnaldo,
que nunca havia tido tarefa no centro e ainda por cima
aparecia alcoolizado de vez em quando, estava em
situação mais favorável que a dele, que, inclusive, era
abstêmio.
Nosso caríssimo espiritão, então, ouviu o
seguinte do administrador: - Entendo perfeitamente o seu
assombro, Sebastião. Tanto que já esperava que você me
procurasse para conversar. Ninguém nega quão
significativa foi sua contribuição para o bom
funcionamento do centro espírita do qual você fez parte.
No entanto, a balança da vida não leva em consideração
somente o que fazemos de bom dentro das instituições
religiosas às quais somos vinculados. No quesito
coletividade, Arnaldo saiu na frente, meu amigo. Tudo o
que ele ouvia nas palestras, praticava na vida de
relação. Ele sempre foi uma boa pessoa, apesar do hábito
de tomar uns conhaques de vez em quando. A partir do
momento em que travou contato com o Espiritismo, Arnaldo
se aprimorou como filho, esposo, pai, colega de trabalho
e cidadão. Atendia a todos com um sorriso, amava a
esposa com extrema dedicação, apoiava os filhos em todos
os momentos bons e ruins. Além disso, era um excelente
colega de trabalho, e quando galgou postos mais elevados
na empresa, soube ser um excelente chefe. Implantou,
inclusive, várias iniciativas que aumentaram a
produtividade e também trouxeram inúmeros benefícios aos
funcionários. Na via pública, era também um exemplo.
Implantou a coleta seletiva de lixo no bairro em que
morava, incentivando os vizinhos a manterem as ruas
sempre limpas e o lixo embalado adequadamente. Para você
ter uma ideia, até casca de banana ele recolhia da
calçada e jogava na lixeira mais próxima, com receio de
que alguém escorregasse e se machucasse. Arnaldo,
contudo, não parou por aí. Foram dele várias iniciativas
que resultaram em atividades culturais e esportivas para
os jovens do bairro onde morava. Por tudo isso e muito
mais, Arnaldo conquistou o lugar que hoje ocupa. E
convém ressaltar que ele jamais cogitou estar onde está.
Ele serviu pelo simples prazer de ser útil. O fato de
ele gostar de tomar umas doses de conhaque de vez em
quando pesou muito pouco contra ele.
Ante o silêncio revelador de Sebastião – que não
conseguia esconder o assombro pelo revelado, o incômodo
por ter desdenhado de Arnaldo por tantos anos e a
vergonha diante de uma folha corrida tão magnífica –, o
administrador perguntou: – Você está insatisfeito na
nossa colônia? Algo te incomoda?
– Não! – rebateu Sebastião. – Eu estou muito feliz aqui!
As tarefas que exerço são ótimas! Idem as pessoas que
aqui encontrei.
O administrador, então, finalizou: – Então, meu amigo!
Volte para os seus afazeres e deixe à Providência Divina
a tarefa de dar “a cada um segundo suas obras”, conforme
ensinado por Jesus, nosso modelo e guia.
Sebastião voltou bem mais leve e animado à lida depois
do ocorrido. A lição fora inesquecível!
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