A tradução do Novo Testamento originalmente adotada por
Emmanuel e suas razões
Desde as comemorações do centenário de nascimento de
Francisco Cândido Xavier, ocorridas em 2010, seguidas
pelos 150 anos de O Evangelho segundo o Espiritismo,
em 2014, o interesse pelo estudo de aspectos do Novo
Testamento, à luz das obras de Emmanuel, aumentou
consideravelmente. Sob a euforia dessas circunstâncias,
nem todas as pessoas teriam se inteirado dos
pressupostos adotados por esse autor espiritual, na
coerente exposição de seu pensamento. Nesse sentido,
este artigo procura destacar alguns pontos essenciais
para a compreensão do evangelho segundo Emmanuel.
Nos
últimos anos, em dissonância com os critérios adotados
por Emmanuel, a harmonia do conjunto de suas obras teria
sido comprometida, terminando por prejudicar a coesão de
suas ideias em torno do evangelho redivivo. Em termos
práticos e efetivos, a substituição dos versículos
originais, baseados na tradução de João Ferreira de
Almeida (“revista e corrigida”), por versões mais
“modernas” e “acadêmicas” que viessem a refletir os
“avanços” realizados no campo da “crítica literária”,
desde os anos 1960. Esses “avanços” teriam adquirido
impulso por influência de ações emanadas do seio da
Igreja Católica, durante o papado de João XXIII
(1958-1963). Entre elas, destacar-se-ia a criação do Secretariado
para a união dos cristãos (1961) – que, em 1968, viria
a apresentar o documento A cooperação
interconfessional da tradução da Bíblia, no qual
consta a recomendação ao recurso às “edições críticas”
do Novo Testamento grego na realização de novas
traduções − e a realização do Concílio Vaticano II (1962-1965) –
que, congregando os expoentes da hierarquia católica e
também figuras representativas da Igreja Ortodoxa e do
protestantismo, embora na posição de observadores –
viria a convencionar, em 1965, a Constituição
Dogmática Dei Verbum (Palavra de Deus),
figurando, entre suas diretrizes, a aplicação do
“método histórico-crítico” à leitura da Sagrada
Escritura.[1,2]
Em meio a esse processo de atualização da tradição
religiosa, alguns
textos tradicionais do Novo Testamento grego viriam a se
tornar alvo de críticas, o que teria gerado certa
resistência de segmentos religiosos mais afeiçoados a
uma versão textual grega específica, originada em 1516,
fruto do trabalho de compilação de manuscritos,
atribuído ao humanista Erasmo de Roterdã (1466-1536).[1,3] Esse
texto serviu de pilar para um intento de regeneração da
religião, subsidiando muitas das ações ligadas à Reforma
Protestante, iniciada em 1517. Ao comentar o assunto,
sob a visão da espiritualidade maior, Emmanuel destacou:
“A
essas atividades reformadoras não poderia escapar a
Igreja, desviada do caminho cristão. O plano invisível
determina, assim, a vinda ao mundo de numerosos
missionários com o objetivo de levar a efeito a
renascença da religião, de maneira a regenerar os
seus relaxados centros de força. Assim, no século
XVI, aparecem as figuras veneráveis de [Martinho]
Lutero, [João] Calvino, Erasmo [de Roterdã], [Filipe]
Melanchton e outros vultos notáveis da Reforma
[...]”.4
Assim o trabalho legado por Erasmo de Roterdã −
posteriormente consagrado como Textus receptus (Texto
recebido) – viria a ser escolhido, no século XVII,
como a base textual do Novo Testamento grego a ser
utilizada pelo religioso protestante, de origem
portuguesa, João Ferreira de Almeida (1628-1691), na
tradução para a língua portuguesa. Esta foi publicada em
1681, em Amsterdam, porém, em virtude dessa primeira
edição apresentar muitos erros tipográficos, algumas
revisões teriam sido realizadas; daí ter surgido, em
1898, uma versão denominada “revista e corrigida”, que
se tornaria popular na primeira metade do século XX. Em
paralelo, com o surgimento de outras fontes textuais (na
forma de pergaminhos e papiros antigos), entre meados do
século XIX e os anos 1930, a fidedignidade dos conteúdos
exarados no Textus receptus passaria a ser
questionada por muitos “críticos literários” –
preludiando a convenção chancelada pela Igreja Católica,
nos anos 1960, em favor das “edições críticas” do Novo
Testamento grego, bem como ao “método
histórico-crítico”, para a realização de novas
traduções. [3]
Apesar do acentuado impulso após os anos 1960, do ponto
de vista temporal, cabe situar que o início desse
processo remontaria à transição do século XVII para o
XVIII: época em que teriam despontado as primeiras
“críticas” às leituras confessionais, de caráter
“pietista” da Bíblia, ou seja, centrado nos âmbitos da
fé e do sentimento religioso.[2] Tratar-se-ia
de um esforço direcionado a desqualificar – como
“ingênuo” e “acrítico” − esse viés interpretativo, até
então centrado na valorização da fé e do sentimento
religioso, em prol de uma análise guiada pelo
equacionamento de soluções “racionais”, construídas
objetivamente, com base em indícios “materiais” − como
“vestígios arqueológicos”, “documentos administrativos”
(contas, arquivos, registros etc.) e “documentos
literários” (histórias, descrições, testemunhos etc.).[1,2] Na
esteira desse enfoque, surgiria esforço investigativo
para se delinear um “Jesus histórico”, em detrimento de
um “Jesus da fé”, circunscrevendo a sua vida (atos,
exemplos e lições) a um conjunto de episódios próprios e
limitados a uma circunstância pretérita.2
Desse modo, o Novo Testamento passaria a ser visto como
uma “obra de estudos” do “passado”, caudatária dos
costumes e da cultura de seu tempo, e não como um
conjunto de ensinamentos atemporais capaz de
“iluminar o presente”.[2] No entanto,
Emmanuel não partilharia desse ponto de vista,
pois, ao expressar o seu modo de ver o assunto,
destacou que “[...] cada conceito do Cristo ou de seus
colaboradores diretos adapta-se à determinada situação
do Espírito, nas estradas da vida”.[5] Por
isso, em manifesto tom de reprovação ao modus
operandi da “crítica histórica”, adotada pelas
modernas “escolas literárias”, o autor espiritual teceu
o seguinte comentário em A caminho da luz:
“Muitas escolas literárias se formaram nos
últimos séculos, dentro da crítica histórica,
para o estudo e a elucidação desses documentos. A
palavra ‘apócrifo’ generalizou-se como o espantalho de
todo o mundo. Histórias numerosas foram escritas. Hipóteses
incontáveis foram aventadas, mas os sábios
materialistas, no estudo das ideias religiosas, não
puderam sentir que a intuição está acima da razão e,
ainda uma vez, falharam, em sua maioria, na exposição
dos princípios e na apresentação das grandes figuras do
Cristianismo.
A grandeza da doutrina não reside na circunstância [...]; está
na beleza imortal que irradia de suas lições divinas,
atravessando as idades e atraindo os corações. Não
há vantagem nas longas discussões [...], quando o
raciocínio absoluto não possui elementos para a prova
concludente e necessária. A opinião geral
rodopiará em torno do crítico mais eminente, segundo as
convenções. Todavia, a autoridade literária não
poderá apresentar a equação matemática do assunto. É
que, portas adentro do coração, só a essência deve
prevalecer para as almas e, em se tratando das
conquistas sublimadas da fé, a intuição tem que
marchar à frente da razão, preludiando generosos e
definitivos conhecimentos”. [4]
Assim, fica evidente que Emmanuel não via com bons olhos
os desenvolvimentos empreendidos nos últimos séculos,
pelas “escolas literárias”, sob o critério
racionalizante e materialista da “crítica histórica”.
Seu pensamento estaria mais alinhado com os propósitos
regeneradores iniciados por um grupo de Espíritos
“missionários”, “veneráveis” e de “grande vulto”, que
teriam atuado no século XVI − entre eles, a figura de
Erasmo de Roterdã, responsável pela tarefa de
restabelecer a essência primitiva dos ensinos contidos
no Novo Testamento. Portanto, considera-se que a tese da
“opção” editorial direcionada a alterar as obras
originais de Emmanuel, no sentido de atualizá-las sob a
perspectiva dos “avanços” realizados desde os anos 1960,
seria anacrônica às pré-concepções do autor espiritual.
Referências:
[1] MALZONI,
Cláudio Vianney. As edições da Bíblia no Brasil.
São Paulo: Paulinas, 2016, passim.
[2] MOSCONI,
Luís. Para uma leitura fiel da Bíblia. 2. ed. São
Paulo: Loyola, 1997, passim.
[3] KONINGS,
Johan. A Bíblica, sua origem e sua leitura. 8.
ed. Petrópolis: Vozes, 2014, passim.
[4] XAVIER,
Francisco Cândido. A caminho da Luz: história da
civilização à luz do Espiritismo. Pelo Espírito
Emmanuel. 37. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2008, passim,
grifo nosso.
[5] XAVIER,
Francisco Cândido. Caminho, verdade e vida. Pelo
Espírito Emmanuel. 26. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2006,
“Interpretação dos Textos Sagrados”.
Flávio Rey de Carvalho é Mestre em História e Doutor em
Ciência da Religião; colaborador em São Paulo do Centro
de Cultura, Documentação e Pesquisa Espírita e do Grupo
Espírita Casa do Caminho.
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