Carta de Kardec sobre A Gênese:
uma análise de fonte primária
Em doze anos à frente da Doutrina Espírita, Allan Kardec
colecionou as cartas trocadas com correspondentes na
França e no exterior, formando o que ele denominou de
"preciosos arquivos para o Espiritismo" [1].
Parte destes arquivos foi preservada e hoje está em
acervos, como o do museu
Allan Kardec online (AKOL), contendo mais de 2.500
páginas manuscritas, como cartas e documentos da
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas [2].
Estes manuscritos, após transcritos e traduzidos via
parceria com a Universidade Federal de Juiz de Fora, são
divulgados no Portal Allan Kardec. [3].
Outro acervo desta parceria é o de Canuto Abreu, sob a
guarda da FEAL, que desde que foi divulgado no projeto
Cartas de Kardec, em outubro de 2018, levantou muita
expectativa no meio espírita ao anunciar que "Allan
Kardec revela os bastidores, a intimidade, a verdadeira
história do Espiritismo em 740 manuscritos inéditos que
sobreviveram após 150 anos de perseguição". [4]
Manuscritos, por serem fontes primárias, são um dos
focos das pesquisas publicadas nas páginas do Allan
Kardec Online [5]
e do CSI do Espiritismo [6]
que,
somando-se às consultas a outras fontes, oferecem maior
riqueza de detalhes no esforço de construir a história
do Espiritismo, respondendo perguntas como: que eventos
ocorreram? Onde? Quando? Quem foram os envolvidos?
Dentre os manuscritos pesquisados, destaca-se um
rascunho de carta que trata sobre a autorização para
tradução em alemão de A Gênese, os milagres e as
predições segundo o Espiritismo, uma das obras
fundamentais da Doutrina Espírita. Disponibilizado
originalmente no site Espírito.org.br [7],
como complemento do livro Nem Céu nem Inferno, as
Leis da Alma segundo o Espiritismo, o manuscrito
conta com a transcrição feita à máquina por Canuto
Abreu, porém não há tradução.
No intuito de demonstrarmos os resultados possíveis de
serem alcançados e os benefícios do uso desse tipo de
fonte de informação na pesquisa espírita, oferecemos
aqui uma tradução deste manuscrito, as conexões feitas
entre seu conteúdo e outras fontes de informação e as
conclusões que extraímos de sua leitura. As letras
destacadas na margem esquerda são usadas como referência
em nossas considerações:
(A) Paris, 25 de setembro de 1868.
(B) Senhor,
(C) Não estando o senhor Allan Kardec em Paris neste
momento, precisei entregar a ele a sua carta, o
que impediu que fosse respondida imediatamente, tal qual
o senhor teria desejado.
(D) Ademais,
como está muito doente, ele mesmo não pôde lhe
responder, e por isso ele me encarrega de
substituí-lo.
(E) Dado que O Livro dos Espíritos e O Livro dos Médiuns
foram traduzidos pelo Sr. Delhez, a obra mais
importante a ser traduzida, e aquela que faria, no
momento, o maior sucesso na Alemanha, é A Gênese. É
também aquela pela qual ele deseja que se comece, e,
portanto, ele [Allan Kardec] dá voluntariamente a
permissão ao Sr. Bidder, sob a condição da entrega de 50
exemplares.
(F) Essa
obra está, neste momento, na reimpressão com correções e
acréscimos importantes. É dessa nova edição que ele
[Allan Kardec] quer que a tradução seja feita.
Consequentemente, ele lhe enviará as folhas à medida que
forem impressas; já existe cerca de metade delas.
(G) O Céu e o Inferno vai igualmente ser reimpresso com
correções.
(H) Inteiramente pronto, portanto, haveria apenas O
Evangelho; mas, repito, é útil, no interesse da coisa,
começar por A Gênese, da qual eu posso lhe enviar as
primeiras folhas em poucos dias.
(I) Embora o Sr. A. K. não tenha tido o prazer de
conhecer o senhor Bidder, ele está encantado em lhe
poder ser útil nessa circunstância, visto que ele se
apresenta sob sua recomendação e à do Sr. Conde
[Poninski], com quem ele se corresponde.
(J)
Um ponto importante é a exatidão da tradução;
ele considera que o senhor e o Sr. [Poninsky] não teriam
proposto ao Sr. Bidder se não tivessem certeza de que
o trabalho seria realizado convenientemente em relação à
fidelidade da reprodução dos pensamentos e à correção do
texto em alemão. (Grifos nossos)
(K) Assim que o Sr. Allan Kardec puder, ele terá a honra
de lhe escrever; enquanto aguarda, o senhor pode ter
como certa a autorização que ele me encarrega de lhe
transmitir.
(L) Queira aceitar, eu lhe peço, senhor, a expressão de
minhas mais distintas saudações. (Grifos e textos em
colchetes nossos.)
No rascunho, na letra inconfundível de Allan Kardec, o
mestre responde a uma carta recebida por ele há algum
tempo (C), sem a identificação do destinatário (B). O
texto foi escrito em terceira pessoa, indicando que a
carta seria passada à limpo e efetivamente enviada ao
seu destinatário por alguém encarregado pelo mestre (D).
Trata-se da escolha da próxima obra da codificação a ser
traduzida para o alemão pelo Sr. Bidder, cuja identidade
ainda não localizamos. Kardec propõe que seja A Gênese e
justifica sua escolha (E).
A carta indica apenas duas obras traduzidas até aquele
momento, para o alemão pelo Sr. Constantin Delhez (E),
presidente da Sociedade Espírita de Viena [9, 10],
das quais localizamos somente a primeira [8].
Destacamos que ele também traduziu O
Espiritismo em sua expressão mais simples [11], noticiado
na Revista Espírita de junho de 1862 e não citado pela
carta.
Kardec relata a nova edição de A Gênese, em reimpressão
em setembro de 1868 (A), e de O Céu e o Inferno, a ser
reimpressa (F, G). Dentro do processo de publicação,
essa reimpressão provavelmente é a "prova" impressa pela
tipografia após montar os tipos móveis para revisão pelo
autor, visando confirmar que estes refletem o manuscrito
original, antes dele autorizar a impressão dos
exemplares para venda e a geração das matrizes, se for o
caso [12, 13].
Rousset, funcionário da tipografia, informa ter feito
matrizes de A Gênese em 1868, cobradas do Sr.
Rivail no final do referido ano, o que implica que a
montagem dos tipos móveis foi previamente aprovada [13].
Kardec ponderou que, dentre as obras não traduzidas, o
Evangelho seria a única com o texto definitivo (3a edição
de 1866) e, mesmo assim, entendeu ser mais útil traduzir
antes A Gênese, a partir da edição
recém-atualizada (H) e ainda não publicada (F, H).
Evidencia-se que o autor considerava aquele um trabalho
acabado e, portanto, se dispôs a enviar logo as folhas
já impressas.
Kardec não conhecia pessoalmente o senhor Bidder, mas
dava crédito a ele por confiar na recomendação do
destinatário, que estava intermediando a negociação da
tradução, e do senhor Conde Poninski, antigo
correspondente (J) [14],
cujo retrato encontramos na Biblioteca Estadual da
Baviera [15].
Não encontramos a tradução para o alemão realizada pelo
Sr. Bidder, o que pode significar que esta negociação
não foi finalizada ou não foi cumprida, sem interferir
na veracidade das demais informações.
A carta acima analisada, com a investigação complementar
das informações presentes nela e o cruzamento com outras
informações, demonstram o potencial que o acervo de
manuscritos propicia, dentro de uma pesquisa documental,
em nos fornecer detalhes sobre os eventos ocorridos e
enriquecer a historiografia do Espiritismo.
Referências:
1. Aos
nossos correspondentes.
Revista Espírita de novembro de 1862.
2. DOC.
1
3. DOC.
2
4. DOC.
3
5. DOC.
4
6. DOC.
5
7. DOC.
6
8. Allan Kardec. Das Buch der Geister,
nova edição, 1868.
9. DOC.
7
10. DOC.
8
11. Allan Kardec. “Der” Spiritismus in
seinem einfachsten Ausdruck, 2a edição,
1864. - DOC.
9.
12. DOC.
10.
13. DOC.
11
14. Suíte
de ‘Fictions et insinuations’,
Revista Espírita de 15 de dezembro de 1884.
15. DOC.
12
16. DOC.
13
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